O trabalho na Era das crises climáticas

Qualquer transição justa para uma economia verde deve ter lugar nos termos do trabalho, não nos do capital.

Stefania Barca

Fonte: Jacobin Brasil
Tradução: Paula Sequeiros
Data original da publicação: 24/09/2019

As alterações climáticas devem ser paradas. Mas quem irá parar? Quem, por outras palavras, poderia ser o sujeito político de uma revolução climática anti-capitalista?

Estou convencida de que este agente social podia, e certamente tem de ser, a classe trabalhadora  global. Contudo, para desempenhar este papel, a classe trabalhadora deve desenvolver uma consciência de classe ecológica emancipatória.

Felizmente, a história tem abundantes exemplos deste tipo de ligação verde-vermelha – o ambientalismo trabalhista é tão velho quanto o movimento sindical.

Em muita da sua existência, o ambientalismo trabalhista focou-se no local de trabalho e no ambiente em que viviam as comunidades da classe trabalhadora, ligando saúde ocupacional e segurança à proteção da saúde pública e ambiental.

Nos anos 90, o ambientalismo trabalhista começou a abraçar os conceitos de “desenvolvimento sustentável” e de “economia verde”. Mais recentemente, ao intensificarem-se as alterações climáticas, a “transição justa” (TJ) tornou-se a ideia “do dia”. A TJ baseia-se na noção de que os trabalhadores não têm de suportar o impacto da mudança para uma economia de baixo carbono, seja sob a forma de perda de postos de trabalho, seja pela desestabilização das comunidades locais.

Para este fim, os sindicatos operários ― particularmente os da indústria pesada, transportes e energia ― forjaram as chamadas alianças azul-verde com grupos ambientalistas por todo o mundo. Estas convergências demonstram um crescente consenso em torno da necessidade de lidar com as alterações climáticas, promovendo o envolvimento sindical e a sustentabilidade como meio para tal fim.

No entanto, existem importantes clivagens dentro deste consenso, especialmente em relação à transição justa. Alguns grupos simplesmente pressionam para a criação de empregos numa economia esverdeada. Outros, recusando-se a aceitar soluções de mercado, adotaram uma crítica radical ao capitalismo.

O que resultar deste cisma decidirá se o trabalho involuntariamente vai reforçar o capital ou  confrontar o capital e as alterações climáticas.

A mesa de negociações

Atendência predominante de TJ, satisfeita em pressionar por uma economia mais ecológica dentro do capitalismo, está representada da maneira mais fiel pela Confederação Sindical Internacional (CSI).

Formada em 2006 pela fusão de duas confederações do trabalho transnacionais, a CSI lançou o primeiro programa do trabalho internacional sobre políticas de alterações climáticas nesse mesmo ano. Pouco depois, surgiram gabinetes sindicais especializados para formular posições oficiais sobre o aquecimento global ― posições que têm cada vez mais assumido o conceito de transição justa.

Para grupos como a CSI, a TJ significa investir em tecnologias e setores de baixas emissões e com alta intensidade de emprego, a par de programas de formação e apoio ao rendimento dos trabalhadores recém desempregados dos setores poluentes. 

Eles imaginam uma transição livre de conflitos e com ganhos para ambas as partes, que um capitalismo mais sustentável pode surgir através de “diálogo e consulta democrática” com “os parceiros sociais e as partes interessadas,” a par de “análise local e planos de diversificação económica a fim de ajudar os governos locais a gerir a transição para uma economia de baixo carbono e permitir um crescimento verde”.

Encaram essas “partes interessadas” como tendo um papel maior para além da mera consulta: os governos aprovam medidas de estímulo económico; as empresas implementam políticas de responsabilidade social; os académicos e os líderes políticos defendem legislação para a “modernização ecológica”; as organizações internacionais emitem diretivas, relatórios e recomendações.

A Organização Internacional do Trabalho da ONU (OIT) tem sido, possivelmente, das mais ativas na promoção desta abordagem transicional, promovendo um modelo consensual que convida grandes empresas, Estados e sindicatos para a mesa de negociações. Eles vêm a responsabilidade do sindicato como sendo simplesmente a de propor metas de redução para os gases de efeito de estufa e para os níveis de produção, com um olho nos efeitos sobre o emprego.

A OIT e a CSI estão interessadas em enfatizar também os benefícios econômicos da transição justa. Fazendo eco do essencial Relatório Stern (Stern Review)― lançado em 2006, a mando do governo britânico, que alegava que os custos econômicos da luta contra as alterações climáticas eram muito menores do que os custos da inação ― a CSI declarou que a ação de mitigação na verdade ajuda o emprego. A noção de que a intervenção do governo pode equilibrar os custos e distribuir benefícios entre as partes sociais é central para a sua abordagem.

Se planeada cuidadosamente, por exemplo, a infra-estrutura para a mitigação e a adaptação poderá tornar as alterações climáticas em criadoras, e não destruidoras, de empregos. A CSI vê inclusivamente os investimentos que protegem as populações e os territórios de eventos climáticos futuros como uma fonte potencial de crescimento económico.

Mas estas visões de harmonia e benefícios partilhados negligenciam o impacto enorme que os projetos de infra-estruturas provavelmente teriam sobre os ecossistemas e as comunidades locais. E a ênfase colocada pelo plano da OIT/CSI na consulta e no diálogo social, na boa governação e na comunicação melhorada encobre as inescapáveis tensões e fissuras.

Por um lado, o plano de ILO/ITUC não reconhece as barreiras erguidas pelos acordos de comércio internacional que pressionam os governos a reverter políticas sociais, a ignorar (se não destruir) economias locais e a adotar um modelo de competitividade baseado em ainda mais baixos custos laborais e a estripar os sindicatos.

Não admira pois que ― como altos executivos da CSI admitem ― o “círculo virtuoso” entre as políticas de ação climáticas e as políticas do trabalho promovido pela OMT, CSI e outras agências das Nações Unidas não tenham conseguido ganhar qualquer poder de arranque nas negociações do clima.

O potencial de criação de emprego através da mitigação das alterações climáticas (por exemplo, substituição de combustíveis fósseis por energias renováveis) também está longe de garantido. Porque o investimento nos projetos irá variar, é mais provável que aumentem o desenvolvimento desigual e a desigualdade – algo muito pouco considerado no plano. 

Em vez disso, as duas organizações vêm a criação extraordinária de novos postos de trabalho: 6 milhões em energia solar, 2 milhões em energia eólica e 12 milhões em agricultura e indústria associadas a biocombustíveis, até 2030. Este prognóstico escamoteia o fato de que fontes de “energia limpa” em grande escala e intensivas em capital, como biocombustíveis e energia hidroelétrica, já demonstraram o seu ambíguo, e por vezes totalmente prejudicial, impacto social.

A rotulagem verde é similarmente suspeita. Usando este truque, muitas formas tradicionais de produção ― como monoculturas industriais ― são simplesmente re-etiquetadas como “sustentáveis” e empregues para fazer crescer os livros de registo da economia verde. No Brasil, por exemplo, a produção de biocombustíveis ― principalmente derivados de cana ― atinge mais de 50% dos empregos verdes do país.

Além do mais, as condições de trabalho nas plantações de cana de açúcar estão muito abaixo dos padrões internacionais, com violação habitual de direitos humanos, laborais e indígenas. A mecanização planeada para o setor vai colocar milhares de trabalhadores sem posto de trabalho, sem compensação ou alternativa de emprego. E a transformação e monocultura de cana ameaçam o meio ambiente e a saúde pública, tudo isto enquanto alimentam conflitos com as comunidades ao destruir a produção local de alimentos.

Ainda assim, a indústria de biocombustíveis brasileira consegue apoio contínuo do governo, dos sindicatos e da OIT devido ao seu estatuto como produtor de “energia verde”.

Uma grande parte do problema é que, ao avaliar e prever soluções, tanto a CSI como a OIT dão prioridade à investigação científica em economia ambiental mais mainstream e orientada para o mercado em relação a estudos mais radicais e orientados politicamente. Os conhecimentos a partir da base, produzidos das perspetivas dos movimentos de justiça ambiental e ecossocialista são ambos praticamente ignorados no discurso oficial da transição justa.

Consequentemente, nenhuma das declarações da OIT/CSI faz a conexão entre as crises ecológicas e económicas, por um lado, e o sistema político-económico global do outro. Em vez disso, quando é sequer discutida, a economia é apresentada como sendo capaz de ser reformada por dentro. Como? Coordenando diferentes regimes económicos nacionais, cada qual calibrado para o estado de desenvolvimento desse país.

Além disso, ao colocar uma fé incondicional no “crescimento verde”, a CSI parece ignorar que tal crescimento já está a ocorrer, e não apesar da crise económica, mas precisamente por causa dela. O capital acolhe o “crescimento verde” como uma nova forma de acumulação que irá fazer reviver os negócios privados, tal como a 2ª Guerra Mundial e a reconstrução do pós-guerra retiraram o capital da depressão dos anos 30.

Preocupa-os menos, claro, se o (suposto) esverdeamento da economia capitalista irá produzir condições de trabalho decente e emprego estável. Pelo contrário, os empregadores provavelmente aproveitar-se-ão desta reestruturação para eliminar os direitos residuais dos trabalhadores, como o caso da indústria de biocombustíveis brasileira torna claro.

Reivindicar a economia verde?

Odomínio crescente do discurso da transição justa não é completamente mau. Pelo menos, abriu novas possibilidades para as políticas do clima orientadas para o trabalho ― algumas das quais são bastante radicais.

O exemplo mais interessante é o da campanha por Um Milhão de Empregos Climáticos (UMEC). Inicialmente lançada por uma aliança de sindicatos do Reino Unido que têm uma agenda de crescimento verde, a campanha foi abraçada também por uma aliança sul-africana de movimentos trabalhistas, ambientais e sociais em 2011.

Originalmente, a campanha favorecia um esquema de investimento keynesiano desenhado para criar “empregos climáticos” ― distintos dos genéricos “empregos verdes” por procurarem reduzir drasticamente as emissões de dióxido de carbono, metano e outros gases de efeito de estufa.

No Reino Unido, estes “empregos climáticos” estavam compreensivelmente ligados às oito toneladas anuais de emissões de CO2 produzidas pelos setores da eletricidade, construção e transporte. Mas esse foco também reduziu o potencial da iniciativa. Restringindo a sua visão aos empregos classicamente operários, a campanha negligenciou outros setores, como as indústrias da alimentação e serviços e o trabalho reprodutivo, regenerativo e de subsistência. Ao fazê-lo, apagou um eixo central do bem-estar social e económico em qualquer economia e um ponto de partida crucial para qualquer reconcetualização da economia.

Contudo, quando pegaram na campanha na África do Sul, tornaram-na em algo muito mais radical, ressaltando o potencial da campanha para mobilizar abordagens mais críticas, transformadoras. Na África do Sul, o efeito combinado das duas crises globais ― crescente desigualdade sócio-económica e alterações climáticas ― produziu enormes tensões entre compromissos oficiais para descarbonizar a economia e reduzir a pobreza (incluindo a pobreza energética).

Como argumenta a socióloga Jacqueline Cock, esta tensão tem empurrado o movimento trabalhista para a transição justa a ancorar-se em “demandas para uma mudança profunda, transformadora que signifique formas completamente diferentes de produção e consumo”. Para Cock, tal mudança requer “uma abordagem integrada às alterações climáticas, desemprego e desigualdade, assim como uma rejeição dos mecanismos de mercado para resolver estes problemas. Ao contrário de algumas outras formulações da economia verde, neste modelo a ligação entre a justiça social e as alterações climáticas é reconhecida e a necessidade de mudança radical, estrutural, é enfatizada”.

Essa conceção anticapitalista de TJ teme que uma economia descarbonizada possa simplesmente reproduzir as atuais relações de poder e de desigualdade se irromper de noções conservadoras de crescimento sustentável e financeirização.

Os sindicalistas sul-africanos desenvolveram a sua postura crítica depois de assinar o Acordo para a Economia Verde 2011, que usou o “diálogo social” para unir governo, negócios e trabalho em torno de um plano para criar milhares de postos de trabalho numa nova base industrial verde.

Em vez disso, as falhas e limitações do acordo ― alegações aumentadas não suportadas por factos, padrões e salários persistentemente baixos, perdas de emprego ― acabaram por fazer ressaltar como os “empregos verdes… são dirigidos mais pelos interesses do mercado do que pelas necessidades sociais”.

O Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (COSATU) adotou uma “política quadro sobre alterações climáticas” que, entre outras coisas, reconheceu o capitalismo como causa subajcente ao aquecimento global e rejeitou os mecanismos de mercado como meio para reduzir as emissões de carbono.

Da mesma forma, o Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul (NUMSA) absteve-se de empregos verdes e de um capitalismo mais sustentável em favor de uma visão alternativa da TJ “baseada na propriedade social democrática dos principais meios de produção e meios de subsistência, controlada pelos trabalhadores”. O Sindicato da Alimentação e Trabalhadores Aliados também exprimiu apoio a uma “compreensão de classe de uma transição justa para uma economia verde” e a “alternativas radicais à agricultura industrial, particularmente da agroecologia”.

Mais tarde nesse ano, COSATU e o Conselho Nacional de sindicatos (NACTU) uniram-se a ONGs e movimentos sociais vários para lançar uma campanha de UMEC sul-africana.

Visando “excluir tentativas do capital para usar a crise climática como uma oportunidade para a acumulação”, escreve Cock, a campanha foi fortemente influenciada pelas organizações ambientalistas e de justiça climática e usou “um número de projetos prefigurativos para demonstrar a viabilidade de [suas] propostas políticas”.

Na visão sul-africana, a passagem para a energia renovável faz parte de uma transição mais ampla para produção de energia, de propriedade pública, local. Firmemente sob controlo da comunidade, esta organização forneceria acesso à energia a preços acessíveis a todas as pessoas. Pretendem algo semelhante à produção e distribuição de alimentos, favorecendo a agroecologia em relação à agricultura empresarial para livrar o mundo da insegurança alimentar.

No que é provavelmente a divergência mais reveladora das estratégias típicas da TJ, a campanha UMEC sul-africana aponta as pessoas “cuidadoras comunitárias” como exemplo do setor de emprego mais relevante, prevendo a criação de até 1,3 milhões de empregos nos setores domésticos e de cuidados de saúde, restauro da terra e agricultura urbana.

Ainda assim, a campanha UMEC sul-africana não deixa de ter as suas fraquezas. Os laços próximos do COSATU com o partido neoliberal do Congresso Nacional Africano, já responsável por uma profunda crise no seio da Federação e pela decorrente expulsão do NUMSA, poderia desencadear uma divisão irreparável na Confederação também.

Houve um resultado positivo. Segundo o estudioso sul-africano Vishwas Satgar, o NUMSA adotou uma plataforma mais explicitamente socialista que propõe renováveis de propriedade social e ação concertada com organizações pela justiça ambiental. Este esforço poderia formar o coração de um novo projeto de esquerda organizado em torno de uma visão democrática, ecossocialista.

Mas outros obstáculos permanecem. A campanha tem lutado para se desvencilhar do Estado que favoreceu uma abordagem conduzida pelas empresas para limpar a energia que serviu apenas para reproduzir a pobreza e a desigualdade.

O NUMSA está a responder a este desafio, mudando as engrenagens a nível municipal, como se viu na sua luta para usar o poder do governo local sobre a distribuição de eletricidade para fazer entrar as renováveis.

Ao mesmo tempo, a campanha corre o risco de ficar armadilhada por uma abordagem de desenvolvimento comunitário, de pequena escala, que não consegue transformar as políticas energéticas a nível nacional. Como observa Satgar, muitas das intervenções da UMEC “têm sido centradas em problemas específicos e dissiparam-se depois da promoção de agendas de campanha particulares”.

Para sair desta armadilha, mantém Satgar, o NUMSA deve desenvolver uma estratégia mais ampla de alianças sociais que una lutas locais por acesso a renováveis com projetos ecológicos claristas e maiores.

Até agora, os dois desenvolvimentos mais promissores têm sido o esforço para formar uma ampla aliança contra planos governamentais de energia nuclear ― que iria levar à falência o Estado sul-africano e ter consequências catastróficas para a maioria pobre ― e o plano para usar os fundos de pensões do sindicato para investir em energias renováveis de propriedade social para separar os interesses dos trabalhadores dos da indústria do carvão e do petróleo.

A campanha por UMEC resume, assim, tanto os desafios como as oportunidades de trabalho organizado engendradas pelas crises económicas e ecológicas. Mas sem dúvida, uma aliança vermelho-verde e uma alternativa ecossocialista na África do Sul representa uma alternativa à ortodoxia de transição justa ― uma política do trabalho verdadeiramente radical na era das alterações climáticas.

Nos termos do Trabalho

Trabalhadores e sindicatos estão a traçar um novo curso na longa história do ambientalismo trabalhista ― um curso em que crescimento verde e transição justa prometem o crescimento econômico e a segurança com que o sonho fordista sobreviveu antes.

Mas cair neste novo sonho não salvará o trabalho organizado das insuficiências e constrangimentos que apenas destruíram a sua força na maioria dos países. Se continuarem a apoiar a reestruturação da economia global pelo capital “verde”, os sindicatos irão se encontrar do lado oposto ao das comunidades camponesas e indígenas, dos trabalhadores rurais sem terra, dos trabalhadores da reprodução doméstica e social não pagos, dos agricultores de subsistência e de todas as pessoas que suportam os custos do capitalismo “verde” ― promovendo ciclos renovados de desapropriação e subjugação.

A alternativa é mais promissora, se bem que mais desafiadora: um ecossocialismo alimentado por uma consciência de classe ecológica, emancipatória. Isso exigiria luta de classes a um nível mais elevado ― o nível da ecologia política global. Mas iria oferecer a possibilidade de um mundo realmente sustentável, forjada nos termos do trabalho ao invés dos do capital

Stefania Barca é investigadora doutorada do CES – Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

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