O terror da “Reforma” Trabalhista — 3 anos depois

Fotografia: Dolores Ochoa

Não há dúvidas de que para o capitalismo se reproduzir é preciso que se reduza o valor da força de trabalho como forma de contrarrestar a tendência à queda da taxa de lucro das empresas e do setor financeiro. Para o capital, é preciso que seja mantido, a todo o custo, o lucro às custas da exploração da mão de obra, seja pelo aumento das jornadas de trabalho, intensificação com aumento da produtividade ou flexibilização das relações trabalhistas. Nesse contexto de crise sistêmica, a reforma trabalhista no Brasil, aprovada em 2017 no formato da lei ordinária 13.467, foi talvez a medida mais contundente do neoliberalismo, nos últimos anos, para garantir que o capital sobreviva a qualquer forma de resistência e conquistas dos trabalhadores.

Em 11 de novembro último, a reforma que desregulamentou a mediação jurídica do capital-trabalho no País completou três anos de vigência. Ao contrário do discurso cantado em verso e prosa por seus defensores de que a flexibilização das relações trabalhistas traria mais emprego e atrairia mais investimentos externos, o que se viu neste período foi exatamente o contrário. No segundo trimestre de 2020, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD/IBGE), o desemprego atingiu 14,1 milhões de pessoas, superando os 13,2 milhões de desocupados, em média, do ano de 2017.

Os seis milhões de empregos prometidos a partir das alterações na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) não só não foram criados como a política neoliberal aumentou a força de trabalho excedente ou subutilizada de brasileiros, especialmente de mulheres. A taxa de desocupação entre as mulheres chegou a 16,8%, este ano. Entre os homens está em 12,8%. A taxa total de desempregados, no País, hoje, é de 14,6%.

Quanto ao aumento de investimentos externos para alavancar a economia, outra promessa alardeada, o que assistimos foi uma fuga de capitais recorde ainda antes da Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar o estado de pandemia do novo coronavírus. Em 4 de março último, foi registrada a retirada de R$ 44,8 bilhões da bolsa de valores brasileira, superando o recorde anterior de 2019 de R$ 44, 5 bilhões, segundo informações da Agência InfoMoney.

Reforma e pandemia

Por conta da pandemia, o ano de 2020, segundo o economista e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Marcio Pochmann, é atípico para análises de desenvolvimento econômico e índice de desemprego, não só no Brasil, mas em todo o mundo. Mas os efeitos da reforma, aqui, não estão relacionados à pandemia. “As medidas de desregulamentação do mercado de trabalho a partir da reforma trabalhista não vieram acompanhadas de geração de empregos. Isso é o que se pode comprovar nesses últimos três anos. O Brasil não recuperou o nível de ocupação que havia perdido, inclusive, em função da recessão dos anos de 2015 e 2016 e da ausência de uma recuperação econômica”.

Segundo Pochmann, ainda antes da pandemia da Covid-19, a economia brasileira se encontrava bem abaixo do que em 2014, ano no qual o Produto Interno Bruto (PIB) fechou com alta de 3,5%. Em 2019, o PIB fechou o ano com crescimento de 1,1%. “Vejo com dificuldade as comparações, mas obviamente se a nossa situação já era difícil, agora, é ainda mais. Isso porque as indicações de queda no nível de atividade para 2020 apontam que o Brasil deverá encolher entre 5% a 7%. E se de fato isso vier a se confirmar a partir de janeiro, o País terá sua economia valendo cerca de 90% do que era em 2014”.

Reforma agudiza precarização

A expansão da ocupação nesses três anos de reforma se deu com o crescimento de postos de trabalho precários, muitos sem qualquer vínculo ou direitos. De lá para cá cresceu enormemente o número de Microempreendedores Individuais (MEIs), que nada mais são do que “empresários de si mesmo” ou trabalhadores que têm uma relação contratual na qual precisam “empreender” sua força de trabalho arcando com todo o investimento material e laboral. Como não são considerados assalariados, mesmo cumprindo jornadas de trabalho às mais variadas, não têm direito a 13o terceiro, férias ou qualquer garantia caso a prestação de serviço seja suspensa pelo “patrão” contratante.

Avanço do neoliberalismo

Para Pochmann, a reforma trabalhista é mais uma tentativa de se implementar as políticas neoliberais no Brasil. A primeira, segundo o economista, aconteceu durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando foram criadas modalidades de redução do custo da força de trabalho e medidas que facilitaram a contratação e demissão dos trabalhadores. “Naquela oportunidade, apesar da retórica governamental favorável às políticas desregulamentatórias do mercado de trabalho como forma de alavancar o crescimento econômico, o resultado em termos de geração de empregos e até mesmo de formalização das ocupações foram pífios. O balanço que se pode fazer é, mais uma vez, que políticas neoliberais produzem um resultado pífio. O emprego não cresceu e os postos de trabalho são muito precários, o faz com que as pessoas que exercem esse tipo de trabalho permaneçam excluídas de quaisquer direitos.”

A retórica da desregulamentação do trabalho como forma de facilitar a vida dos empregadores para de alavancar a economia voltou com tudo a partir do golpe de 2016, avalia Marcio Pochmann. “Não mais associada a essa ideia da incapacidade de o país criar assalariados, mas a de que os empregos assalariados seriam gerados justamente pela redução do custo de contratação e pela facilitação em termos de contratação e demissão. É esse, de forma simplificada, o objetivo geral tanto da aprovação da lei da terceirização que ocorreu também em 2017 quanto da própria reforma.”

Para o economista, esse seria o equívoco central dos que acreditam que reduzir o custo do trabalho e cortar direitos dos trabalhadores vai fazer com as empresas contratarem ou abram mais postos de trabalho. “O que estamos vendo é o efeito inverso com todas as reformas. No caso da Reforma da Previdência, foi passada a ideia de que o objetivo era reduzir um trilhão de reais em dez anos. Cerca de cem milhões de reais deixariam de ser transferidos para os aposentados e pensionistas. Mas se estes receberem menos dinheiro, terão menos dinheiro para o consumo. Então o efeito é inverso. Se se consome menos, a demanda por produtos e serviços que poderiam gerar empregos é menor. A não ser que o país se transformasse numa plataforma de exportação e a demanda vir do exterior. Mais isso está distante de ocorrer no caso brasileiro porque temos problemas de competitividade e ao mesmo tempo o cenário internacional é de baixo dinamismo e de muita oferta de produtos de vários países”, explica.

Caráter ideológico da reforma

O pesquisador e professor do Departamento de Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Marcelo Castañeda diz que reforma trabalhista afetou apenas uma parcela da população economicamente ativa. Castañeda destaca o caráter ideológico da reforma, que estabeleceu uma posição contrária dos trabalhadores que foram precarizados em relação aos que ainda conseguem manter seus empregos formais e alguma regulamentação. “Boa parte da população já não usufruía de todos os direitos estabelecidos pela CLT, em função da terceirização, quarteirização e da precarização, que são anteriores à reforma. A lei foi aprovada sem grandes mobilizações, o que mostra que uma parcela da classe trabalhadora organizada em entidades formais de classe, assim como em partidos de esquerda, na época do governo Temer, acabou não tendo um papel tão relevante no sentido do enfrentamento e de explicar para a população o significado dessas perdas e que era necessário que os trabalhadores da informalidade lutassem em conjunto com os formais para que as garantias trabalhistas fossem mantidas. Quem hoje ainda tem direitos acaba sendo visto como privilegiado.”

Individualismo e meritocracia

Segundo o docente da UFRJ, a uberização e a pejotização são recursos das empresas para desregulamentar o mercado e imprimir uma lógica individualista e meritocrática. E o trabalhador acaba comprando a ideia de que pode se manter sua trabalhabilidade negociando diretamente com os contratantes ou empregadores sem que tenham seus direitos garantidos. “A chamada uberização que vem exatamente no sentido da desregulamentação total do mercado de trabalho. Temos uma perspectiva cada vez mais individualizada de relações, o que se reflete nos discursos de mérito. Só se recebe o que se produz e essa lógica individualista acaba criando várias barreiras para a organização coletiva. Cada vez mais o caráter de classe se faz necessário. Precisa haver uma inter-relação e integração entre os que ainda têm uma relação de trabalho formal e direitos e os que foram precarizados e estão por si só, tendo que negociar sua força de trabalho diretamente seja com um contratante ou uma plataforma tecnológica. São empreendedores de si que na verdade não empreendem nada. Simplesmente são explorados.”

Uberizados

Os que trabalham de forma uberizada têm parte de seu trabalho expropriada por plataformas digitais que extraem seus lucros diretamente a partir do desconto de percentuais do que é produzido em serviços pelo trabalhador. Esses trabalhadores encaram jornadas de até 16 horas para garantir uma remuneração suficiente para pagar as contas e se manter ativo, em um regime totalmente desregulado pelo Estado, sem garantia de qualquer direito trabalhista.

Essa é realidade do motorista de aplicativo Juarez Emmerick, 43 anos, que foi taxista até 2018, quando as plataformas digitais já alcançavam uma grande parcela do mercado de serviços de transporte e entrega no Brasil. Nesse período precisou vender sua autonomia e migrar como motorista para os aplicativos que ofereciam aos passageiros preços menores em relação ao transporte individual regular. “O preço das corridas feitas pelo Uber ou outros aplicativos era bem menor e não conseguimos mais concorrer como taxistas. Precisei vender meu carro e investir nessa modalidade. Hoje, com o retorno dos uberes após o confinamento, os aplicativos aumentaram os descontos e reduziram o valor da quilometragem. Isso aumenta nossa exploração e reduz nossa renda e até os recursos para manutenção do veículo”.

À margem da legislação

Priscila Damiana tem 35 anos e nunca trabalhou com carteira assinada. É um exemplo de quem vive à margem de qualquer regulamentação trabalhista. Há dez anos trabalha como diarista em seis casas diferentes, mas em nenhuma delas usufrui da regulamentação da Lei das Empregadas Domésticas. Como milhões de mulheres no Brasil, Priscila sustenta sozinha a casa e seu filho Ryan, de 12 anos. Trabalhando de segunda a sexta, em jornadas que chegam a 10 horas, em média, Priscila ainda consegue com sacrifício pagar as parcelas de sua casa, “uma laje”, no bairro de Realengo, na Zona Oeste do município do Rio de Janeiro.

Na pandemia, como a maioria dos informais, a prestadora de serviços domésticos contou apenas com o auxílio emergencial e com a solidariedade de uma de suas “patroas” que manteve o pagamento das faxinas durante o confinamento. Priscila diz que o trabalho precário é apenas uma forma de sobrevivência. “Hoje consigo sobreviver, mesmo sem a ajuda do pai do meu filho, mas a faxina é um trabalho pesado. Não sei até quando vou conseguir manter essas duplas, triplas jornadas, de trabalhar fora, fazer as tarefas em casa e cuidar do meu filho. E sei que não conto com o apoio do governo para garantir nada.”

Um novo sujeito social

Durante a pandemia do novo coronavírus, o confinamento aumentou as vendas online principalmente no setor de alimentação. Nesse processo, emergiu uma certa consciência de classe por parte dos entregadores de aplicativos, incluindo muitos que perderam seus empregos nesse período, e que “se viram” como categoria essencial. Utilizando seus próprios meios, a maioria motos e bicicletas, aderiram a essa ocupação precária para garantir uma mínima renda diária para sobreviver ao aumento do desemprego. Esses trabalhadores que fazem “bicos” estão na ponta da precarização. Muitos se viram entregando comida, sem sequer ter o que comer. Nessa situação extrema, a ideia individualista sucumbiu à necessidade de algum tipo de organização coletiva. Durante a pandemia, ganhou força movimentos como o dos Entregadores Antifascista, cuja pauta principal é justamente o fim da uberização e a garantia de diretos. O movimento chegou a organizar duas greves nacionais, em junho e julho, que, apesar da pouca adesão e visibilidade, demonstraram que é possível a organização de trabalhadores informais.

Para Marcio Pochmann, esse processo de intensificação da precarização do trabalho pode estar criando um novo sujeito social. “Guardadas as devidas proporções, o movimento dos informais pode reproduzir o que ocorreu nos anos 1970. Tendo em vista a alta inflação e as condições de vida inadequadas, operários vindos de outras regiões para as capitais do sudeste, atraídos pelo processo de industrialização, acabaram constituindo uma base social importante que se traduziu numa rebeldia que renovou o sindicalismo e que terminou de certa maneira fazendo com que esse sujeito social se tornasse um novo sujeito político relevante. Parece-me que, guardadas as devidas proporções, estamos diante de um movimento equivalente”.

E conclui: “essas pessoas precisam se submeter aos ‘bicos’ para sobreviver. Talvez o aumento dessa massa de trabalhadores sobrantes estabeleça uma contradição importante que é o fato de esses trabalhadores informais terem uma capacidade de organização e reação diferente dos trabalhadores formais que têm seus sindicatos e condições, em tese, melhores para poder reagir e resistir. Essa é uma contradição a qual precisamos considerar.”

Fonte: Outras Palavras
Texto: Manuella Soares
Data original da publicação: 07/12/2020

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