O que as strippers dos EUA podem ensinar sobre a Reforma Trabalhista

Justiça Federal americana reconhece que trabalhadoras dos clubes de strip-tease são empregadas e não autônomas.

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 08/03/2018

Os Estados Unidos estão testemunhando a “revolta das strippers“. Por aquele imenso país afora, mulheres que trabalham nos famosos clubes de strip-tease estão processando os patrões, pedindo que a Justiça Federal reconheça o vínculo de emprego entre elas e as casas noturnas, de modo que elas sejam enquadras na Federal Labor Standards Act – FLSA (a CLT dos EUA, de 1938).

Para quem não conhece a atividade, é conveniente registrar que os clubes de strip-tease funcionam legalmente como empresas formais e não são casas de prostituição, já que esta atividade é ilegal nos EUA e não pode ser explorada com o beneplácito de autoridades, salvo no condado de Las Vegas, em Nevada.

As strippers são consideradas pelo governo como “artistas” e classificadas oficialmente como “dançarinas exóticas” (exotic dancers). Elas assinam um contrato formal com os clubes. Ocorre que até pouco tempo atrás todas estas profissionais assinavam “contratos de prestação de serviços autônomos” (independent contractors), pois as casas noturnas diziam que elas eram “artistas independentes”, que administravam suas próprias “carreiras”, apenas “alugando espaços” naqueles estabelecimentos.

Porém, a realidade é bem mais dura e nada glamourosa. A vida das garotas não é nada fácil. As strippers têm que “bater cartão”, ou seja, cumprem horário rigoroso, em longas jornadas (até 54 horas por semana) e em caso de atraso ou falta recebem multas pesadas. As casas noturnas estabelecem as regras de vestimenta (o que pode ou não ser usado), de conduta (por exemplo, não podem tocar o cliente em certas partes do corpo, não podem beber ou fumar) e muitas ainda as obrigam a distribuir flyers nas ruas (propaganda em panfletos), antes das apresentações.

Alguns estabelecimentos exigem a apresentação de um atestado médico, incluindo teste antidrogas. As meninas precisam pagar ao clube para usar os melhores “slots” (posições privilegiadas nos tablados). Elas recebem apenas gorjetas e não têm assegurado um salário mínimo. Em consequência, em dias de baixo movimento muitas pagam para trabalhar e amargam prejuízo.

Mas a situação começou a mudar em razão de uma avalanche de processos judiciais. Desde 2012, uma enxurrada de ações, decisões da justiça e acordos milionários vêm reconhecendo o vínculo de emprego entre as dançarinas e os clubes de strip-tease. Na Califórnia, o clube The Spearmint Rhino fechou um acordo de US$ 13 milhões na justiça federal para indenizar ex-dançarinas de suas muitas filiais naquele estado e também em Nevada, Florida, Idaho, Kentucky e Texas, depois de ter sido condenada em primeira instância pela Juíza Virginia Phillips.

Na cidade de Nova Iorque, em uma ação judicial, o clube Rick’s Cabaret foi condenado a pagar cerca de US$ 11 milhões a duas mil strippers que trabalharam lá entre 2002 e 2012. Cada uma vai receber uma indenização proporcional ao tempo de serviço; o valor médio é, portanto, de cinco mil dólares, mas algumas integrantes da ação receberão até 100 mil dólares.  Em Michigan, em fevereiro deste ano, após uma decisão favorável da justiça federal em uma class action, a empresa Déja Vu celebrou acordo de US$ 6,5 milhões para indenizar suas dançarinas em várias filiais por todos os EUA (Doe v. Deja Vu Servs., Inc. , E.D. Mich., No. 16-10877).

A maior parte das ações foi resolvida por acordo, pois os patrões já perceberam que esta é uma batalha perdida.  Mas alguns ainda insistiram e recorreram até onde foi possível – e foram derrotados em decisões unânimes dos tribunais.  É o caso da class action (ação coletiva) ajuizada por strippers de Maryland contra os clubes “Fuego” e “Extasy”.

Como é um dos poucos processos que chegou até a segunda instância (pois a maioria está sendo transacionada), vamos analisar este caso para o leitor, comentando os fundamentos da decisão, que por sinal nos remetem a uma reflexão oportuna, porque a reforma trabalhista veio criar uma série de “válvulas de escape” da legislação trabalhista, permitindo “novas formas” de contrato, que muitas vezes não passam de apanágio para descaradas fraudes.

E, é bom lembrar, o argumento de muito “reformadores” era o de que deveríamos adotar o modelo “flexível” dos EUA. Então, veremos que este modelo “flexível” não é assim tão flexível e – mais importante – que o Poder Judiciário dos EUA, no exercício da jurisdição trabalhista, não se deixa enganar por fraudes estapafúrdias, que aqui são tidas como “modernidade”.

Vamos, então, ao caso das meninas de Maryland que contou, inclusive, com apoio, na qualidade de amicus curiae, do Departamento de Trabalho dos EUA (equivalente ao nosso Ministério do Trabalho).  A lei federal trabalhista dos EUA (FLSA) não contém definição clara sobre quem é empregado e quem é empregador. Ela tipifica “empregado” como “qualquer indivíduo empregado por um empregador” e “empregador” como “qualquer pessoa agindo direta ou indiretamente no interesse de um empregador em relação a um empregado” FLSA, 29 U.S.C. §§ 203 (d), (e)(1), (g).

Evidentemente, esta definição, além de obscura, não dá conta de distinguir situações limítrofes, onde há dúvida sobre a natureza da relação de trabalho, isto é, se se cuida de um trabalho subordinado (employee) ou autônomo (independent contractor). Por isso, a jurisprudência dos tribunais desenvolveu um “teste”, isto é, um conjunto de requisitos para verificar se, diante das circunstâncias fáticas da relação de trabalho, o trabalhador é empregado ou autônomo.  Este teste contém seis elementos, e por isso passou a ser denominado de “six factors test”.

Ele se baseia nas “realidades econômicas” da relação entre o trabalhador e a empresa, sendo por este motivo também conhecido como “economic realities doctrine”. O atilado leitor logo perceberá que isto nada mais é do que o que na doutrina brasileira denominamos de “contrato realidade”.  Pois bem, segundo os tribunais federais americanos, a pedra angular do teste das “realidades econômicas” é verificar se o trabalhador é “economicamente dependente do negócio para o qual ele presta serviço ou se ele está, como uma questão de realidade econômica, atuando por conta própria.” Schultz v. Capital Int´l Sec, Inc., 466 F 3d 298, 304-05 (4th Cir. 2006).

Também aqui, o leitor familiarizado com a jurisprudência laboral brasileira observa que se trata do critério que aqui denominamos “dependência econômica”.  E é justamente para avaliar a ocorrência ou não da dependência econômica que os americanos estabelecem o teste dos “seis fatores”, que são os seguintes:  (1) o grau de controle que o suposto empregador detém sobre a maneira pela qual o trabalho é prestado; (2) as oportunidades do trabalhador para lucrar ou perder dependendo de suas habilidades profissionais; (3) o investimento do trabalhador em equipamentos ou materiais, ou sua eventual contratação de outros trabalhadores; (4) o grau de especialidade exigida pelo trabalho; (5) a permanência da relação de trabalho; (6) o grau em que os serviços prestados constituem parte integral do negócio do suposto empregador.

Tudo isto, repita-se, não está previsto em lei, é uma construção jurisprudencial consolidada, como é típico na Common Law. A jurisprudência americana não exige a presença concomitante de todos eles, pois estes fatores devem ser sopesados conforme as característica de cada caso.

Bem, já se percebe que todos esses “seis fatores” são também usados na jurisprudência brasileira sobre vínculo empregatício, com outra denominação, respectivamente: (1) subordinação jurídica; (2) e (3) assunção dos riscos do negócio; (4) especialização do trabalho; (5) continuidade ou não eventualidade e (6) atividade-fim (sim, a polêmica atividade-fim, os tribunais americanos também a usam, caros “reformadores” brasileiros).

E como esses fatores foram aplicados às dançarinas de strip-tease?  A Corte de Apelações do Quarto Circuito (equivalente aos nossos Tribunais Regionais Federais) entendeu que: (1) há um excessivo grau de controle dos clubes sobre o trabalho das dançarinas, pois eles estabelecem o horário de trabalho, as normas (em regulamento escrito) de conduta e comportamento dentro das casas noturnas e até em suas cercanias (as garotas não podem convidar amigos para assistir os shows e são proibidas de ficar à toa no estacionamento depois do expediente) e há poder disciplinar, com possibilidade de punições; (2) as oportunidades das dançarinas para lucrarem dependem essencialmente mais dos investimentos dos proprietários do que seu trabalho em si; (3) elas não necessitam de praticamente nenhum investimento e não têm empregados; todos os investimentos e a organização econômica da atividade empresarial são feitos pelas casas noturnas; (4) o trabalho não é especializado, pois os clubes, ao contratá-las, não exigem nenhuma qualificação ou experiência profissional anterior; (5) os contratos são permanentes, por tempo indeterminado, com comparecimento diário, em horários certos e (6) o negócio dos clubes de strip-tease depende, para sua existência, da contratação de dançarinas de strip-tease.

Tendo a Justiça Federal americana entendido que todos os fatores estavam presentes, as dançarinas de strip-tease de Maryland venceram a causa em primeiro e segundo grau e o processo transitou em julgado, encontrando-se na fase de liquidação de valores (milionários, como se pode imaginar).

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Kabrina Hudnell é uma ex-dançarina em clubes de strip-tease de Baltimore, Maryland, que será beneficiada pela decisão. Ouvida pela jornal Baltimore Sun, ela explica assim porque decidiu processar o empregador: “Eles sequer nos pagam.  Ficamos sentadas lá nuas por oito horas (…). Se você não tem dançarinas, você também não tem um clube de strip”.  Bem, a seu modo, ela está dizendo o seguinte: não parece razoável que uma empresa não tenha nenhum empregado em sua atividade-fim (fator número 6).

Vejam só, uma jovem “dançarina exótica” de Baltimore parece ser mais arguta do que o legislador brasileiro, que acha possível “terceirizar tudo” e transformar empregados da noite para o dia em “pessoa jurídica”. Esperemos que os Juízes do Trabalho, diante de fraudes semelhantes, tenham a mesma argúcia da Senhorita Hudnell, percebendo que não é razoável a existência de colégios sem professores, hospitais sem plantonistas, empresas de transporte sem motoristas e por aí afora.

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Uma excelente reportagem sobre as strippers e os seus processos trabalhistas foi elaborada pela jornalista Jessica Anderson, do jornal Baltimore Sun, onde se pode ler o depoimento de Kabrina Hudnell.  Há também uma boa reportagem do Washington Post sobre o caso.

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Com bom faro e ajuda do Google, podem ser encontradas na internet dezenas de petições iniciais e decisões judiciais sobre class actions de strippers nos EUA.  Para o leitor do JOTA, apresento aqui algumas peças do processo comentado acima, como a petição inicial, a decisão proferida na primeira instância da Justiça Federal, a petição de amicus curiae do Departamento de Trabalho dos EUA e a decisão da Corte de Apelações do Quarto Circuito.

Dada a importância do tema neste momento, elaborei ainda uma tradução da decisão do Corte de Apelações do Quarto Circuito.  Divulgo-a em nossa língua na esperança de que os operadores do Direito, especialmente os entusiastas da modernização do Direito do Trabalho, façam uso aqui no Brasil desta importante jurisprudência da Justiça Federal dos EUA, conforme permite o art. 8o da CLT, sobretudo naquelas situações em que os trabalhadores forem fraudulentamente contratados como “autônomos”, “pessoa jurídica” ou “terceirizado”.

Cássio Casagrande é professor de Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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