O que 3 pessoas trans pensam sobre mudanças e conquistas no mercado de trabalho formal

Perspectiva na vida. Sentir-se capaz. Não ser refém da prostituição compulsória. Esses são alguns dos sentimentos de pessoas trans após conseguirem um emprego “como outra qualquer”: com carteira assinada, nome social respeitado, autonomia para utilizar o banheiro que melhor as representa. Pode parecer algo simples para alguns, mas para Ariel, Vênus e Azre foi uma mudança e uma conquista. 

Após experiências difíceis e obstáculos no mercado de trabalho, foi com projetos e programas de diversidade que essas pessoas encontraram abertura e a chance que tanto buscavam. “Fui contratada tem um ano já e é uma coisa que me satisfaz muito, é um programa que recomendo para várias meninas que estão na minha faixa etária e não conseguiram ingressar no mercado de trabalho. Eu indico porque foi muito bacana a experiência para mim”, diz Ariel Louise, 23 anos, sobre o programa Aprendiz Legal.

Atualmente, a jovem é aprendiz na Uber e trabalha com atendimento ao público. A iniciativa tem o objetivo de inserir pessoas entre 14 e 24 anos no mercado de trabalho e, cada vez mais, tem tido esse olhar para a empregabilidade de jovens trans.

Foi através de um projeto também que Vênus Montovani, 23 anos, conseguiu seu posto de agente de aceleração na área de vendas da SumUp. E isso transformou muita coisa em sua vida. “É algo muito importante porque hoje em dia eu compreendo que além de todas as coisas eu tenho que provar que eu sou humana, que minha identidade existe”, define.

Mesma situação de Azre Azevedo, que conseguiu o primeiro emprego graças ao programa Multicor. “O Multicor é um dos projetos de inclusão do Grupo Cataratas que tem uma função social muito importante de abrir essa porta para que os corpos trans possam entrar no mercado formal e ter sua carteira assinada”, explica.

Assim como elas, outras pessoas trans passaram pelos mesmos processos e hoje podem vislumbrar novos caminhos para suas carreiras e seus futuros. Gabriela Augusto, da Transcendemos, consultoria que atua com diversidade e possui também o projeto Comuto ― em que empresas e pessoas trocam experiências para que todos discutam a diversidade e aprimorem suas atividades dentro do mundo corporativo ―, explica a iniciativa.

“É um programa oferecido para empresas que levam a diversidade a sério. Ele ajuda essas organizações a se aproximarem de pessoas que fazem parte de grupos minorizados, como LGBTs, negros e negras, mulheres, entre outros. Essa aproximação é uma oportunidade incrível de aprendizado para todas as pessoas envolvidas e, também, momento oportuno para eventuais contratações”, explica Gabriela, que é uma mulher trans.

Segundo ela, as duas edições do programa, realizadas com pessoas trans, foram bem-sucedidas e terminaram com contratações. Para Gabriela, é um tipo de iniciativa que só possui pontos positivos.

“Eu gostaria de ressaltar o aspecto ‘ganha-ganha’ da diversidade. Quando alguma organização desenvolve iniciativas no sentido de promover o respeito e a inclusão, toda a sociedade ganha: os sócios, os colaboradores, os eventuais candidatos a processos seletivos, os clientes e as demais pessoas no entorno. O preconceito e a intolerância definitivamente não valem a pena”, avalia.

A violência contra pessoas trans em números

O Brasil é o País que mais mata pessoas trans no mundo, segundo a ONG Transgender Europe. De acordo com levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em conjunto com o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), 163 pessoas trans foram assassinadas no País em 2018.

O HuffPost Brasil conversou com Ariel, Vênus e Azre, pessoas trans que ainda enfrentam barreiras no mercado de trabalho, mas puderam vislumbrar um novo futuro após participação em programas e projetos especializados de inclusão.

Leia trechos da conversa abaixo:

Vênus Montovani, 23 anos

“Fiquei alguns dias na rua. Até que uma prima de consideração me cedeu o lugar que eu moro até hoje.”. Fotografia: Arquivo Pessoal

Quem sou eu: “Sempre fui a típica criança viada, não me encaixava nos padrões esperados de masculino e para mim era algo muito natural usar batom, colocar uma saia, eu nunca relacionei isso a querer ser mulher, para mim era algo que estava lá e que eu podia usar e conforme tentava isso e recebia negativas, fosse dos meus pais [fosse de] bullying na escola, eu fui sendo ensinada que aquilo era errado e não era aceito e isso fez com que eu ficasse mais travada.

Esse debate de gênero mais forte chegou um pouco depois quando eu era lojista em um shopping. Tinha contato com público o dia inteiro, era meu primeiro emprego e eu podia comprar as coisas que eu queria, podia deixar meu cabelo como eu queria e deixei crescer e as pessoas às vezes me tratavam no feminino e fui permitindo usar maquiagem, ser mais feminina, me tratar no feminino foi me dando uma sensação de conforto e isso foi muito bom. Foi quando comecei a reconhecer que era o que eu queria para mim. Tive processos em casa, fui expulsa. Fiquei alguns dias na rua. Até que uma prima de consideração me cedeu o lugar que eu moro até hoje.”

Primeiros obstáculos: “Passei por situações difíceis. Eu trabalhava com vendas para uma empresa de telefonia e era tudo por chat, atendia de 7 a 12 pessoas ao mesmo tempo e tinha um bom rendimento e isso acabou chamando atenção dos chefes do meu chefe e a gente ia ter um alinhamento a respeito dos processos e fui convidada a participar da reunião e pouco antes disso esse chefe queria me conhecer pessoalmente e me parabenizar. Ele foi até minha mesa e parou a alguns palmos e ficou me encarando um bom tempo e falou ‘isso é o Montovani?’”. Depois minha supervisora me chamou e falou que não tinha mais espaço para mim na reunião e não ia ter tempo de eu falar e que poderia acontecer em outra oportunidade. Mas dava para perceber no olhar dela que não era isso. Ela me abraçou e pediu desculpas. Nessa mesma empresa, um tempo depois, abriram vagas para ser supervisora e me candidatei. E falaram que não poderia me aprovar mesmo tendo o perfil porque não poderia ter uma pessoa como eu liderando uma equipe. Foram essas as palavras. E isso foi o fim para mim. Eu queria crescer e evoluir e sai de lá”.

O que mudou na minha vida: “Eu estava nesse processo de sair da outra empresa. Um amigo viu que aconteceria o Comuto, fiz a inscrição e foi muito maravilhoso. Além de ver só pessoas trans do meu lado, via pessoas em posição importante dentro da empresa. Foi maravilhoso para mim. Me deu uma nova perspectiva de vida. Eu não tinha só três caminhos na minha vida. Quando pensava em profissão era prostituição, salão de beleza e telemarketing e o programa me mostrou que eu tinha perspectivas de vida, que poderia fazer coisas novas, poderia ser o que eu quisesse e eles não estavam só falando com palavras vagas de um coach, mas estavam mostrando. Fui percebendo o quão singular eu era e que isso não era necessariamente ruim. Então além de me trazer um emprego, me deu inspiração para continuar vivendo, de que eu podia ser o que eu quisesse e que tinha gente que acreditava em mim. Pude perceber que minha vivência era importante.

Hoje trabalho em uma empresa de tecnologia de soluções de pagamento e lá me chamam por Vênus, me reconhecem como mulher, me tratam de uma maneira igualitária às outras pessoas, tenho certeza que meu trabalho não vai ser subjugado por algo que eu sou. Isso é algo muito importante e tão cliché…usar o banheiro em que me sinto confortável e ter o crachá com o meu nome, Vênus. É algo muito importante porque hoje em dia eu compreendo que além de todas as coisas eu tenho que provar que eu sou humana, que minha identidade existe.”

O que as empresas podem fazer pela diversidade: “Atualmente eu sou a primeira pessoa trans que algumas ali tem contato e convivência. Então chegam com dúvidas e sou super aberta a respondê-las e ensinar, e é um processo de aprendizado mútuo e isso é muito bom. Antes me sentia um bicho exótico e hoje percebo que não. Fomos tão excluídas e marginalizadas que fomos privadas de contato social, algo tão simples.

É complexo pensar em diversidade no mercado de trabalho. Cada diversidade tem sua singularidade e particularidade e quando a gente pensa em uma pessoa trans, muitas vezes não adianta a empresa só abrir as portas. Não adianta falar que aceita e respeita se a vaga exige experiência, fluência em inglês, faculdade sendo que a maioria das pessoas trans mal tem acesso à educação básica. Então para promover a diversidade no mercado, você tem que pensar em todo o caminho também, é meio que pavimentar a rua para que a pessoa trans consiga ter as mesmas condições de caminhar e chegar até a empresa. É uma questão de estruturar o candidato para que ele tenha as mesmas chances, oferecer um curso online básico de inglês, por exemplo. Além das coisas simples como usar o banheiro que ela se sente confortável, ser chamada pelo nome que ela escolheu, ter espaço seguro para reportar qualquer tipo de agressão e preparar o ambiente, falar que vai entrar uma pessoa trans, que é assim, fazer um processo de imersão. A segurança está em saber que podemos contar com elas e que não vamos ouvir alguém nos xingando no elevador e que vai ficar por isso mesmo”.

Ariel Louise, 23 anos 

“Agora tenho uma perspectiva sobre minha vida.”. Fotografia: Arquivo Pessoal

Quem sou eu: Minha transição se deu quando eu estava com 19 anos, [quando estava] para iniciar a faculdade e pensei que seria melhor eu iniciar minha transição antes mesmo de me conhecerem com nome antigo. Já que eu estava indo para um novo ambiente, por que não começar com outro nome?

Primeiros obstáculos: Os desafios que tive ao longo da vida foram muito relacionados a questão de eu concorrer a uma vaga e depois ter um problema por minha documentação não estar devidamente retificada. Ocorreu de eu fazer um processo seletivo, correu tudo bem, fiz a entrevista e deixei meus documentos para assinarem minha carteira e daí um dia me ligaram informando que queriam meus documentos e quando cheguei lá [para levar de novo] falaram que já tinham preenchido a vaga e que tinha ocorrido um engano.

Também tive problemas no meu primeiro trabalho, em um salão de beleza, e a moça não me permita ser chamada de Ariel, ela falava que tinha que me chamar pelo nome de registo e se fosse usar meu ‘nome de guerra’, que fosse da porta pra fora, que ali era trabalho, coisa séria e tinha que chamar pelo meu nome como constava nos meus documentos, sendo que eu nem tinha carteira assinada.

O que mudou na minha vida: Fui contratada tem um ano já e até agora não tive problema de transfobia. É uma coisa que me satisfaz muito. Quando entrei [no programa Aprendiz Legal] não tinha retificado minha documentação e não tive problema com isso, tudo veio com meu nome certinho, Ariel, e quando retifiquei minha documentação não tive problema para trocarem meu nome em todas as identificações. Também achei bacana abonarem meus atrasos porque teve um dia que tive que ir na Receita Federal para trocar meu nome no CPF e quando a gente pensa em incluir uma pessoa trans a gente tem que pensar nos processos que essa pessoa pode ter. E se a gente não pensa em todas as especificidades que essa pessoa carrega com ela, acaba não sendo uma coisa tão boa. Então sou feliz com a minha experiência porque pensaram em todas as minhas especificidades. 

O que mudou foi ter um emprego, uma fonte de renda estável. Você saber que pode contar com aquilo, isso é muito bom, você não fica refém da prostituição compulsória. Agora tenho uma perspectiva sobre minha vida. Outra coisa foi que me senti capaz, vi que posso ter uma vida comum como qualquer pessoa, e é muito bom pensar que sou uma garota como outra qualquer, fazendo coisas que uma garota de 23 anos faz. Acho que isso é uma coisa muito incrível para mim porque sempre pensei que tudo seria muito mais difícil e foi. Mas depois do programa, acho que me trouxe mais esperança para a vida e espero muito que as coisas sigam correndo da forma como estão.

O que as empresas podem fazer pela diversidade: A diversidade é uma coisa muito boa e as empresas sabem que é uma coisa muito boa então se temos 5 funcionários com vivências totalmente diferentes e de locais diferentes, identidade de gênero diferente, tudo, acho que temos chance de somar cada vez mais com novas ideias e inovações. Agora sobre como fazer isso… tem que entender que as pessoas têm suas especificidades sabe? Na empresa onde eu trabalho atualmente, fizeram questão de falar com todas as pessoas sobre transgeneridade, transexualidade e tem toda uma questão de não ao preconceito, tolerância zero à homofobia, isso é uma coisa muito bacana. A gente promover a diversidade é bom, mas é bom também quando a gente faz desse espaço um espaço seguro para todas as pessoas que estão ali ocupando. E não falo só do espaço da empresa porque não adianta a gente colocar a travesti no 5º andar de uma empresa e ela ouvir desmoralização no 1o andar, na portaria, no elevador. Temos que pensar em um todo.

Azre Azevedo, 19 anos

“Arte e discussões de gênero são pautas intrínsecas a mim.”. Fotografia: Arquivo Pessoal

Quem sou eu: Sou uma identidade transfeminina não-binária, estudante de pedagogia e teatro, formada em multimídia e web design, artista plástica-visual, aderecista e indumentária experimental, drag e embaixadora Multicor de Treinamento e Desenvolvimento na área de Gente, Cultura e Carreira do Grupo Cataratas. Eu gosto de doces e de pensar, produzir e refletir sobre arte. Arte e discussões de gênero são pautas intrínsecas a mim. O meu processo de experimentação de gênero começou em meados de 2016. Mas só comecei a de fato me questionar e me entender enquanto corporalidade transvestigenere no final do mesmo ano. E esses questionamentos foram muito próximos de quando pensava sobre a minha sexualidade.

Eu desenvolvi dois projetos onde pude experienciar mais as minhas questões de gênero e onde entrei mais no meu relacionamento com a arte drag. O primeiro se chama “ELO”, um ensaio fotográfico que fiz com a minha amiga fotógrafa Ana Beatriz Macieira, durante o nosso ensino médio. E o segundo se chama “Dragazine”, uma revista LGBTQIAP+, junto com a mesma Ana Macieira. Desenvolvi esses projetos no colégio técnico integral que estudei durante o ensino médio. Então passava o meu dia inteiro fora de casa. E foi lá onde tive a oportunidade e um espaço em que eu pude ser eu mesma e explorar as possibilidades de quem eu poderia ser.

Devido a uma foto desses projetos que chegou aos meus pais a minha relação com eles se tornou muito complicada no final de 2016. Eu passei por muita chantagem emocional. Foi uma época bem difícil para mim. E no primeiro semestre de 2018, tive que deixar a faculdade de artes que eu sonhava. E até agosto eu só ficava em casa e ia para igreja com os meus pais. As coisas foram piorando ao longo do ano passado. Eu consegui voltar para o espaço acadêmico, mas não estudando artes. Mas voltei para universidade e consegui, em outubro, sair de casa. Eu sabia que não era mais viável para mim e tão pouco saudável continuar lá.

Morei por vários lugares desde então e me envolvi muito com a cena drag e LGBTQIAP+ do Rio, que me acolheu bastante. Fiz várias amizades. Consegui me desenvolver, me experimentar e crescer mais enquanto artista. E por uma das amizades que fiz, fiquei sabendo do processo seletivo da empresa que estou hoje.

O que mudou na minha vida: Eu entrei aqui no Grupo em junho deste ano através do Multicor [projeto de inclusão do Grupo Cataratas]. Mas eu sempre tive um medo enorme de me candidatar para uma vaga emprego sendo uma pessoa trans. Eu ficava sempre no limbo de bater no peito me afirmando como sou e de conseguir um emprego assim ou ter que me submeter a me passar por um homem cis para conseguir sobreviver.

Fiquei nisso por um tempo. Tanto que a primeira entrevista que fui, foi aqui no Grupo Cataratas. Aí, em maio, eu recebi uma mensagem sobre um processo seletivo voltado para pessoas trans que aconteceria no AquaRio, já no dia seguinte. E eu fui. Quase desisti porque me atrasaria um pouco, mas ainda bem que não fiz isso. Eu nunca tinha visto tantas pessoas trans num mesmo lugar. Acho muito quando eu vou nos lugares e somos mais de cinco. E lá naquele auditório eram mais de 40 pessoas trans participando do processo seletivo. Fomos maioria naquele momento. E eu me senti muito bem com isso.

O Multicor é um dos projetos de inclusão do Grupo Cataratas que tem uma função social muito importante de abrir essa porta para que os corpos trans possam entrar no mercado formal e ter sua carteira assinada. E, dessa forma ter um impacto na redução de corpos trans que vivem na marginalidade. Além do que, nesse processo, acontece a representatividade dos nossos corpos nos espaços e a naturalização dessas pessoas nos lugares públicos.

O que as empresas podem fazer pela diversidade: É muito fácil as pessoas quererem incluir sem de fato prepararem ou darem as condições básicas mais adequadas para receber a diversidade. Quando se quer de fato incluir, é necessário que as pessoas sejam capacitadas para entender e nos receber melhor, proporcionar treinamentos para as pessoas. Uma coisa que aconteceu aqui, foi que eles colocaram uma pessoa trans em cada GCUCA, na Holding e nos parques do Grupo. É importante, além de capacitação, termos projetos de inclusão de minorias. Pessoas diversas pensam diferente. A diversidade traz inovação, desde pessoas refugiadas, idosos, pessoas trans e quaisquer outros recortes sociais. E isso é parte do que temos implementado aqui no Grupo Cataratas.

Outras iniciativas de inclusão 

Existem hoje alguns projetos e empresas especializadas em promover a inclusão no mercado de trabalho no país. Veja a seguir alguns exemplos dessas iniciativas voltadas para diversos públicos minorizados na sociedade. 

TransEmpregos

Banco de dados de currículos e vagas para pessoas Trans do país

Camaleão

Iniciativa que conecta as oportunidades de emprego com a comunidade LGBT+

EmpregueAfro

Consultoria em RH e diversidade étnico-racial 

Talento Incluir

Atua na inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho

Fonte: Huffpost Brasil
Texto: Ana Ignacio
Data original da publicação: 27/11/2019

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