‘O Irlandês’: auge e decadência do sindicalismo americano no século XX

Cena de “O irlandês”, com Al Pacino como Jimmy Hoffa (centro). Fotografia: IMDB

Cássio Casagrande

FonteJota
Data original da publicação: 02/12/2019

Quem tiver disposição para acompanhar as três horas e vinte e nove minutos do filme “O Irlandês” não apenas apreciará a majestosa obra de Martin Scorsese e as interpretações viscerais de Robert Niro, Al Pacino e Joe Pesci. O enredo central sobre o envolvimento do maior sindicato norte-americano com a máfia é uma excelente lição sobre a história recente dos Estados Unidos, de inestimável valia para quem se interessa sobre o Direito do Trabalho e o movimento sindical naquele país.

O sistema de organização dos sindicatos nos EUA guarda algumas semelhanças com o modelo brasileiro, especialmente a unicidade sindical e a organização confederativa. Ambos os sistemas foram criados nos anos 1930, por Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos e por Getúlio Vargas no Brasil. Embora, é claro, os correspondentes regimes políticos fossem bastantes distintos, os juristas que conceberam ambos os sistemas beberam na mesma fonte ideológica: o corporativismo e o positivismo sociológico, que preconizavam para o Estado um papel de moderação nas disputas classistas.

Para isso, órgãos estatais foram encarregados de “legitimar” sindicatos de trabalhadores “oficiais”, que se organizam sob forma de confederação, em estruturas hierarquizantes.

Se no Brasil, em razão do advento do Estado Novo, os sindicatos foram postos sob estrita tutela absoluta do governo, nos EUA eles ganharam relativa independência, especialmente financeira, e seus dirigentes assumiram posições de grande protagonismo político – Jimmy Hoffa, o dirigente sindical retratado no filme de Scorsese, foi certamente o mais emblemático deles.

Hoffa, nascido em uma cidade curiosamente chamada Brazil, no Estado de Indiana, alcançou fama como presidente do Sindicato Internacional dos Caminhoneiros (IBT -International Brotherhood of Teamsters). Essa era uma das organizações sindicais mais antigas dos EUA, embora fundada oficialmente em 1903, suas origens remontavam ao século XIX, quando o termo “teamster” se referia aos condutores de veículos de tração animal, como as velhas carruagens.

Durante o seu auge, nas décadas de 1950 e 1960 esse sindicato se tornou o maior dos EUA em número de filiados, alcançando cerca de 2,3 milhões de membros.

O IBT era temido pelo governo americano não apenas pela quantidade de associados, mas principalmente porque era o único que poderia parar o país. Jimmy Hoffa sabia habilmente negociar com a burocracia federal enquanto liderava com entusiasmo seus trabalhadores.

Jimmy Hoffa. Fotografia: Hank Walker/Time Life Pictures/Getty Images

Por exemplo, ele fez um acordo para não ser conscrito durante a Segunda Guerra Mundial, assegurando que não haveria paralisações enquanto durasse o conflito. Também foi o primeiro líder sindical a obter um contrato coletivo uniforme em todo o território nacional, bastante vantajoso para os trabalhadores. Ele também deu seguimento à política anticomunista do mais longevo presidente da entidade, Daniel J. Tobin, que a comandara entre 1907 e 1952.

Esse posicionamento era importante para afirmação de seu poder, especialmente depois que o Congresso dos EUA aprovou em 1947 a Taft-Harley Act, com o intuito de coibir atividades de militantes socialistas nos sindicatos.

Jimmy Hoffa nunca foi motorista de caminhão, sendo na juventude um conhecido agitador sindical em redes de comércio varejista, onde de fato trabalhava. Ele foi posteriormente recrutado por sindicalistas do setor de transporte em razão de seu carisma e sua experiência na organização de sindicatos locais.

Graças a esses talentos, foi ascendendo na burocracia do IBT, até conquistar formalmente a presidência, em 1956. Ele já integrava a alta cúpula da entidade desde a década anterior.

De acordo com a lei americana, os sindicatos podiam na época administrar os ricos fundos de pensão de seus afiliados e essa era a grande fonte de poder e corrupção dos dirigentes sindicais. Como bem ilustrado no filme de Scorsese, essa prerrogativa dava aos sindicalistas a possibilidade de escolher onde investir milhões de dólares, incluindo a construção de hotéis e cassinos (houve muito dinheiro de sindicatos na construção de Las Vegas).

Evidentemente, a Máfia ítalo-americana ficou interessada nesses recursos e os seus gangsters começaram a participar da vida dos sindicatos, “ajudando” os chefões a se perpetuarem no poder, inclusive com a eliminação física de adversários internos.

Os vínculos entre os sindicatos e o crime organizado (que em alguns casos remontavam à década de 1920, especialmente na Chicago de Al Capone) começaram a ser debatidos no Congresso, que instituiu uma comissão especial para investigar atividades sindicais ilegais, na qual se destacou um jovem Procurador chamado Robert F. Kennedy, irmão do futuro presidente John Kennedy.

Os trabalhos da comissão resultaram na aprovação da Landrum-Griffin Act (1959), que exigia publicidade dos atos sindicais.

Quando John Kennedy assumiu a presidência em 1961, ele indicou o seu irmão Robert para o Departamento de Justiça, que começou a investigar as relações entre a máfia e os sindicatos, a partir de sua experiência no Congresso.

Isso representava um abalo na aliança tradicional entre sindicalistas e o Partido Democrata. Hoffa se aliou ao rival dos Kennedy, Richard Nixon. É por isso que, em “O Irlandês”, há uma sugestão deixada no ar de que a máfia estaria envolvida no assassinato do 35º. presidente americano, em Dallas, no dia 22 de novembro de 1963. Hoffa, interpretado brilhantemente por Al Pacino, não revela nenhuma surpresa ou emoção ao ver a notícia na TV.

A morte dos Kennedys não evitou que Jimmy Hoffa fosse pego pelo Departamento de Justiça, que com muito trabalho conseguiu condená-lo por fraudes contábeis e suborno.

Ele pegou uma pena de 13 anos, mais saiu por um indulto de Nixon depois de cumprir cinco anos de cadeia. Teria feito um acordo com o governo e com líderes do crime organizado para não voltar ao poder e foi sua tentativa de retomar o sindicato que levou ao seu enigmático fim. Ele desapareceu misteriosamente no dia 30 de julho de 1975 e a versão contada por Scorsese é a do livro “I Heard You Paint Houses: Frank ‘The Irishmen’ Sheeran and the Closing of the Case on Jimmy Hoffa”, de 2004.

Hoffa representou as duas faces contraditórias do sindicalismo americano do século XX: se de um lado logrou uma incrível capacidade de mobilização e promoveu efetiva melhoria da condição dos trabalhadores americanos, de outro se deixou levar pelo envolvimento com o lado obscuro do crime organizado e da máfia nos Estados Unidos, o que acabou sendo fatal para o enfraquecimento do próprio movimento sindical.

Uma das últimas cenas do filme é bastante emblemática desse paradoxo. O “irlandês”, antigo capanga de Hoffa que narra a história (desempenhado por de Niro), está recolhido a um asilo de idosos no fim de sua vida e mostra algumas fotos de família para uma jovem enfermeira que o atende (integrante, portanto, de uma categoria profissional bastante protegida nos EUA).

Ele aponta para uma foto em que sua filha está ao lado do lendário sindicalista e lhe pergunta: “reconhece?” Ela não identifica o personagem e ele responde: “Jimmy Hoffa”, como se estivesse falando de alguém tão conhecido como John Kennedy. Ela pensa um pouco e responde: “não sei quem é”.

Há uma outra cinebiografia do célebre dirigente sindical, chamada “Hoffa”, de 1992, com Jack Nicholson no papel principal. Aliás, que Jimmy Hoffa tenha sido interpretado por Pacino e Nicholson diz muito de sua relevância histórica.

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