O ingresso do Brasil na OCDE: muito ‘toma lá’ e nenhum ‘dá cá’

A entrada do Brasil no clube dos ricos, prometida pelos EUA a Bolsonaro, significa que o país deve abrir mão voluntariamente de adotar políticas de conteúdo nacional e impor limites a capitais especulativos, entre outras medidas.

André Luiz Passos Santos

Fonte: Brasil Debate
Data original da publicação: 21/05/2019

Em 19 de março último, durante visita de Jair Bolsonaro aos Estados Unidos, o presidente Trump prometeu ao mandatário brasileiro, em reunião no Salão Oval da Casa Branca, apoiar a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, uma entidade que reúne os países mais ricos (e alguns aspirantes) do globo. Na ocasião, Bolsonaro também aboliu, sem contrapartida, a exigência de visto para a entrada de cidadãos estadunidenses no Brasil.

Ato contínuo, o núcleo duro do governo apresentou este fato como uma espécie de selo de confiança internacional no Brasil e em sua economia. Segundo o ministro Paulo Guedes, foi apresentada pelo Representante Comercial dos EUA, Robert Lighthizer, a exigência de que o Brasil saia da lista de países com direito a Tratamento Especial e Diferenciado – TED (como são conhecidas as medidas que visam a equilibrar o comércio entre países ricos e países pobres) da Organização Mundial do Comércio – OMC em troca do apoio dos EUA à entrada do Brasil na OCDE. “Eu quero entrar na primeira divisão. Ele falou: então me ajuda a limpar a segunda divisão”, declarou Guedes, conforme reportou a correspondente em Washington do jornal O Estado de São Paulo, Beatriz Bulla.

Mas, o que exatamente significa abrir mão do tratamento diferenciado na OMC e tornar-se membro da OCDE? Para começar a responder essas questões, precisamos voltar um pouco no tempo.

Em 1947, no contexto da reconstrução do sistema econômico mundial após a devastação da Segunda Grande Guerra, foram criados o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional – FMI e o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, da sigla em inglês), entre outras providências, como a abolição do padrão ouro e a adoção do dólar dos EUA como moeda de curso internacional. Os estadunidenses consolidavam sua hegemonia econômica, assim como diplomática, cultural e militar, sobre o planeta. Naturalmente, estas instituições refletiam fielmente o interesse dos EUA, a quem interessava eliminar as barreiras ao livre comércio, convenientemente esquecidos do quanto as barreiras comerciais foram vitais para o crescimento e a consolidação de sua própria economia.

Em um livro publicado em 2002, intitulado Chutando a Escada: a Estratégia do Desenvolvimento em Perspectiva Histórica, o economista sul-coreano Ha-Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge, descreve o processo pelo qual, em sua visão, os países desenvolvidos tentam bloquear o caminho dos países em desenvolvimento “chutando a escada” da qual se serviram para alcançar o nível de desenvolvimento que atingiram.

O Brasil esteve entre os 23 países fundadores do GATT, que estabeleceu cinco princípios básicos:

– Concorrência leal, visando a impor medidas antidumping e impedir o uso indiscriminado de barreiras não tarifárias;

– Proibição de restrições quantitativas (imposição de quotas);

– Previsibilidade e transparência;

– Cláusula de Nação Mais Favorecida. Privilégios comerciais concedidos por um país a outro devem ser estendidos a todos os demais;

– Tratamento Especial e Diferenciado (TED), visando a amenizar o impacto das medidas liberalizantes sobre os países não desenvolvidos, em razão da assimetria entre estes e os países desenvolvidos.

Em 1994, como resultado da Rodada Uruguai e no contexto do avanço da hegemonia neoliberal sobre a economia mundial, desde as eleições de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos EUA, o GATT foi substituído pela OMC, que trouxe uma novidade desfavorável aos países não desenvolvidos: o fim do mecanismo de “opt in, opt out”, que era permitido no GATT.

Utilizando-se daquele mecanismo, os países pobres podiam aderir a partes dos acordos gerais do GATT, recusando outras que julgassem desfavoráveis. Alguns países subdesenvolvidos conseguiram pequenas vantagens aderindo às cláusulas de remoção de barreiras aos produtos agrícolas e recusando-se a aderir a cláusulas de remoção de barreiras ao comércio de produtos industriais. Com a criação da OMC isso se tornou impossível. Hoje se adere ou não ao acordo geral em sua totalidade. Naturalmente, aqueles que não aderem tornam-se párias no comércio internacional, não contando com nenhuma espécie de proteção. O poder de persuasão dos países ricos era irresistível: a OMC teve 152 países fundadores, e atualmente conta com 164 membros.

É na última cláusula dos princípios básicos do GATT/OMC que se concentra a nossa análise, o Tratamento Especial e Diferenciado – TED, tendo em vista a exigência estadunidense de que o Brasil desista voluntariamente de utilizá-la. Existem 145 disposições de TED, sendo as mais importantes:

1- Adiamentos, prazos dilatados e waivers (Art. 18);

2- Medidas restritivas para proteção do Balanço de Pagamentos (Art. 18 B);

3- Tarifas para setores específicos (Art. 28 Bis);

4- Não-reciprocidade (Art. 36);

5- Acordos de assistência técnica e

6- Sistema Geral de Preferências.

O GATT estabeleceu três grupos de países: os desenvolvidos, os em desenvolvimento e os de “menor desenvolvimento relativo”, eufemismo utilizado para classificar as nações mais pobres do globo. O Brasil foi colocado no grupo de países em desenvolvimento.

A primeira categoria de TED acima permite que as nações que gozam desse privilégio possam dispor de mais tempo para adaptarem-se às mudanças. Como exemplo, podemos verificar que no Acordo Agrícola os países desenvolvidos tiveram um ano para implantar as medidas propostas. Os países em desenvolvimento contaram com o prazo de cinco anos e os países subdesenvolvidos de onze anos para a plena implantação dos dispositivos do acordo. Em alguns casos, quando a exportação de um determinado produto é vital à economia de um país e sua participação no comércio mundial desse produto não é significativa, pode ser concedido waiver pela OMC, isentando o país beneficiado do cumprimento do acordo geral no comércio de seu produto-chave.

A segunda categoria de TED permite que países pobres possam impor quotas à importação em caso de iminente colapso de seu Balanço de Pagamentos. O Brasil abriu mão voluntariamente de utilizar-se desse mecanismo em 2002, quando suas reservas cambiais atingiram níveis alarmantes, preferindo recorrer a empréstimo do FMI. O mesmo vem fazendo a Argentina nos dias que correm.

A terceira categoria de TED permite a imposição de barreiras tarifárias para a proteção de setores industriais nascentes nos países não desenvolvidos. Na prática, trata-se de direito meramente formal, visto que é virtualmente impossível conseguir a autorização do board da OMC para sua adoção.

A quarta categoria de TED permite aos países não desenvolvidos adotar tarifa diferente daquela adotada pelos países desenvolvidos no comércio de produtos determinados, a fim de amenizar suas desvantagens comerciais e financeiras.

A quinta categoria de TED pretende, utilizando-se de financiamento das agências internacionais de fomento, ajudar os países pobres a cumprirem as condições fitossanitárias impostas pelos países ricos no comércio de alimentos, por exemplo: construindo matadouros e frigoríficos e adquirindo meios de transporte climatizados, entre outras instalações especializadas.

O Sistema Geral de Preferências pretendeu estabelecer condições unificadas para a concessão de privilégios comerciais, mas foi propositalmente mantido vago e sem substância, visto o alto grau de controvérsia que desperta. Foi de tal maneira subvertido que, criado com a intenção de favorecer os países pobres em sua relação comercial assimétrica com os países ricos, é frequentemente utilizado por países desenvolvidos para conceder favores comerciais a determinados países, driblando o princípio de Nação Mais Favorecida, utilizando-se de critérios geopolíticos.

Para além de abrir mão de seu direito de utilizar-se das TED da OMC em favor de seu próprio desenvolvimento, o Brasil adquiriria também obrigações advindas do ingresso na OCDE. As principais são:

– Padronização estatística, o que não chega a ser um problema, visto que o Brasil já produz dados de boa qualidade, em instituições públicas e privadas;

– Proibição de tratamento diferenciado a empresas estatais, sob o argumento de promover a proteção dos interesses dos acionistas minoritários;

– Adoção de políticas regulatórias e de governança sob a fiscalização da OCDE, o que pode implicar na abertura de segredos comerciais e de produção de empresas nacionais e;

– Proibição de medidas de controle de fluxo de capitais, impedindo o país de adotar mecanismos que protejam seu Balanço de Pagamentos frente a ataques especulativos à sua moeda.

Em resumo, o Brasil deve abrir mão, voluntariamente, do direito a tentar equalizar as condições de suas relações comerciais com os países desenvolvidos, e, de quebra, ainda abrir mão do direito de proteger seus segredos corporativos, adotar políticas de conteúdo nacional, fazer política industrial em geral e de eventualmente impor limites à movimentação de capitais especulativos. O Brasil deve “chutar a própria escada” antes de alcançar o nível de maturidade econômica que torna a liberalização possível sem sérios danos ao interesse nacional.

Em 7 de maio último, em reunião do Conselho de Representantes da OCDE, os estadunidenses mantiveram seu bloqueio ao processo de análise do ingresso do Brasil. No dia seguinte, a embaixada dos EUA no Brasil divulgou nota reafirmando o apoio à entrada do Brasil no clube dos países ricos, mas o fato é que, até agora, nenhuma medida concreta foi adotada. Há divergências entre estadunidenses e europeus sobre a ampliação do número de membros da OCDE, o que aparentemente tem trancado o processo de acesso do Brasil e de outros postulantes à condição de membros plenos da Organização. Ou seja, até aqui, a promessa de Trump a Bolsonaro não tem passado de palavras vazias.

Jair Bolsonaro elegeu-se prometendo acabar com a política de “toma lá, dá cá” no Brasil. Pelo menos até aqui, com relação aos EUA de Donald Trump, ele tem cumprido fielmente sua promessa. Teve muito “toma lá”, mas não teve nenhum “dá cá”.

André Luiz Passos Santos é economista, mestre em História Econômica pela USP.

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