O governo Joe Biden e o Direito do Trabalho nos EUA

Joe Biden. Fotografia: Wikimedia Commons

Nova administração pode ser alvissareira para trabalhadores e sindicatos.

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 01/02/2021

Sob a gestão pro-business Donald Trump e com uma Suprema Corte bastante conservadora em temas de regulação econômica, os trabalhadores e sindicatos norte-americanos viveram tempos bicudos. No Departamento de Trabalho (Department of Labor), o ex-presidente do Partido Republicano nomeou dirigentes com currículo destacado na defesa intransigente de interesses empresariais, como o último Secretário Eugene Scalia (filho do conservadoríssimo ex-Juiz da Suprema Corte Anotin Scalia), um ex-advogado de grandes corporações e ardente opositor de regulações trabalhistas, especialmente na área de saúde laboral.

Trump também nomeou para a National Labor Relations Board (a mais importante agência reguladora trabalhista do país) advogados patronais com destacada atuação antissindical, que fizeram de tudo para tolerar as mais desabridas ações antissindicais de importantes setores empresariais. Além disto, diversas regulações favoráveis aos trabalhadores que dependem apenas de atos executivos foram revogadas e outras tantas criadas para reduzir as proteções legais dos empregados nos locais de trabalho.

Coincidência ou não, foi no mandato de Trump que a Suprema Corte proferiu duas das piores decisões para o interesse dos trabalhadores e sindicatos nos últimos vinte anos. Em Epic Systems v. Lewis, 584 U.S. ___ (2018), a corte constitucional norte-americana, por cinco votos a quatro, entendeu que a Federal Arbitrations Act, de 1925 (Lei de Arbitragem) deveria prevalecer sobre a National Labor Relations Act, de 1935, autorizando aos empregadores a firmar cláusulas de arbitragem compulsória nos contratos individuais. Na prática, a decisão inviabiliza o ajuizamento de ações trabalhistas, especialmente em ações coletivas (class actions) quando houver a previsão do compromisso arbitral.  Na ocasião do julgamento, a saudosa juíza liberal Ruth Bader Ginsburg proferiu da bancada veemente voto vencido, criticando a decisão por ignorar que as cláusulas compromissórias de arbitragem acabam sendo vinculantes no momento de admissão dos trabalhadores.

No mesmo ano, em Janus v. AFCME, 585  U.S. ___ (2018), também por cinco votos a quatro, a Suprema Corte reverteu (overruling) precedente consolidado desde a década de 1970, para declarar a inconstitucionalidade de contribuições sindicais compulsórias previstas em acordos coletivos de sindicatos de servidores públicos, ao argumento de que eles violariam a liberdade de expressão de integrantes da categoria. Embora a decisão não atinja os sindicatos de empregados da iniciativa privada (que, contrariamente ao Brasil, continuam podendo cobrar contribuições compulsórias de beneficiários de acordo coletivo), o julgamento representou uma política de asfixia de um dos setores mais ativos e combativos do sindicalismo americano: o de professores de escolas públicas.

O governo do democrata Joe Biden, recém inaugurado, deverá representar, em princípio, uma reversão desta tendência política “antilabor” presente no governo federal nos últimos quatro anos.

Embora o atual presidente não tenha um registro político notável como Senador na defesa de trabalhadores e sindicatos (pois era considerado um centrista bastante moderado nos quadros do partido), seus compromissos de campanha o levaram a assumir uma pauta mais à esquerda em questões desta natureza, sobretudo porque teve que conquistar o apoio do eleitorado de pré-candidatos de destaque em temas laborais, como Bernie Sanders e Elizabeth Warren.  Além disso, é claro, a crescente disparidade de renda na economia americana, o achatamento salarial, o aumento de empregos precários e as baixas taxas de sindicalização trouxeram a questão do trabalho para o centro do debate político norte-americano.

O presidente Biden mostrou à imprensa recentemente seu novo gabinete de trabalho no famoso Salão Oval da Casa Branca, no qual duas peças ganharam destaque: um busto de Cesar Chávez e um quadro de Franklin Delano Roosevelt. Para além de um gosto meramente pessoal, a decoração do mais importante escritório presidencial transmite ao público um simbolismo das maiores preocupações e tendências do chefe do executivo.

Cesar Estrada Chávez (1927-1993), nascido no Arizona de pais imigrantes mexicanos, pouco conhecido mesmo do público norte-americano, foi um importante líder sindical dos trabalhadores rurais da Califórnia, tendo fundado em 1962 o maior sindicato do setor, o National Farm Workers Association (NFWA), uma das entidades responsáveis por reconhecer direitos trabalhistas a esse segmento, constituído em grande parte de imigrantes latinos, muitas vezes em situação ilegal.

Franklin Delano Roosevelt, como é sabido, foi o presidente Democrata eleito para quatro mandatos sucessivos a partir de 1933 (quando isso era possível) e marcou sua longa gestão pela edição da legislação trabalhista federal que até hoje está em vigor, notadamente o National Labor Relations Act (NLRA), de 1935, que organizou os sindicatos e a negociação coletiva e o Fair Labor Standards Act (FLSA), de 1938, que criou as bases do direito individual do trabalho americano.

É preciso avaliar nos próximos meses até que ponto o simbolismo da defesa dos interesses da classe trabalhadora ganhará concretude, não apenas no plano das intenções, mas também no da realidade política, em razão das estreitíssimas margens de maioria que os Democratas mantêm nas duas casas do Congresso. Embora o Partido Democrata tenha se constituído no porta-voz dos interesses de trabalhadores e sindicatos ao longo do século XX, alguns de seus membros mais moderados são suscetíveis a grupos de pressão empresariais e lobbies corporativos.

É certo que algumas medidas da Era Trump que dependem apenas de atos executivos poderão ser desfeitas rapidamente. Biden mostrou avidez em fazê-lo, pois em movimento inédito, exonerou o chefe da National Labor Relations Board, nomeado pelo ex-presidente republicano, antes do término do seu mandato, uma medida controversa que vem sendo questionada pela oposição e que poderá até mesmo ser judicializada, pois o cargo é preenchido após aprovação do Senado.  Uma boa questão para se avaliar o ímpeto reformista de Biden é a norma aprovada recentemente pela NLRB sobre responsabilidade solidária em processos de terceirização (“joint employer”).  Durante a gestão Obama, a NLRB, sob controle democrata, havia aprovado norma mais favorável aos empregados, seguindo a tendência de decisões do judiciário federal, mas o governo Trump a revogou em fevereiro do ano passado.

No Congresso, é necessário observar sobretudo a tramitação do projeto de lei assinado por toda a bancada Democrata da Câmara dos Representantes, logo após a decisão da Suprema Corte no caso Epic Systems. A norma apresentada no legislativo afasta a decisão da Corte, proibindo cláusulas compromissórias de arbitragem no contrato de trabalho (isso é possível porque o julgamento foi proferido em interpretação de leis federais conflitantes e não em hipótese de controle de constitucionalidade).

Outra batalha será o prometido aumento do salário mínimo federal para U$ 15,00 (desde 2009 congelado em U$ 7,25), de forma escalonada ao longo dos próximos cinco anos (valor já praticado em muitos Estados e Condados controlados pelo Partido Democrata).  Esse será, talvez, o teste de fogo para se medir ímpeto da agenda trabalhista do Presidente Biden.

Cássio Casagrande é Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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