O glamour da riqueza e a normalização da desigualdade

As chamadas economias de mercado são uma verdadeira máquina de gerar desigualdade.

Gerson Almeida

Fonte: Sul21
Data original da publicação: 21/12/2020

A repercussão da morte de Joseph Safra, que segundo a Revista Forbes era o banqueiro com o maior patrimônio do mundo e ocupava a 64ª posição entre os mais ricos do planeta, foi uma demonstração cabal do contagiante fascínio que os muito ricos exercem na sociedade.

Nos jornais diários, nos programas de TV, nas retrospectivas e em todo o tipo de comentários, era possível apenas saber sobre a sua imensa capacidade de acumular fortuna, algo tratado como uma virtude em si mesmo. Tudo que foi dito e escrito em sua referência exalava glamour e deferência sincera. Aqui, para este texto, o que menos interessa é se a pessoa em questão era mesmo boa, ou não.

A questão relevante é que o passamento do banqueiro com o maior patrimônio do mundo e uma das maiores fortunas do planeta, não suscitou qualquer reflexão sobre a obscena desigualdade existente na sociedade. A fortuna de Safra, segundo a Revista Forbes, saltou em 458,52%, de R$ 25,97 bilhões para R$ 119,08 bilhões, apenas entre os anos 2012 e agosto de 2020. No mesmo período, os 10% mais pobres do mundo perderam cerca de 18% dos seus rendimentos.

É surpreendente que tal acumulo de riqueza seja tratada como algo natural num planeta em que esses muito ricos, 1% da população mundial, detém fortunas somadas iguais à soma daquilo que possuem os restantes 99% da população. Uns sete bilhões de pessoas.

Apenas a mansão do banqueiro Safra, em São Paulo, tem 130 cômodos distribuídos por cinco andares e uma infraestrutura completa (inclusive um heliponto), nove elevadores, entrada de energia suficiente para abastecer uma cidade de 2.000 habitantes e … uma piscina subterrânea. Isso, na mesma cidade em que, segundo a Secretaria da Assistência Social, em 2019, haviam 24.344 pessoas que moravam nas ruas.

A verdade é que, bem distante do mérito, as chamadas economias de mercado são uma verdadeira máquina de gerar desigualdade. Segundo o sociólogo Thomas Piketty, os rendimentos de quem já detém riqueza (juros ou lucros) tendem sempre a serem maiores que o crescimento da economia como um todo. Isso, considerando apenas os fatores juros e lucros e não toda a arquitetura projetada para favorecer esse acúmulo.

O que efetivamente acontece é que além de patrimônio, os muito ricos acumulam o poder de ditar e/ou persuadir as instâncias de decisão para que decidam sempre em seu favor. No Brasil, por exemplo é celebre a reação do governo militar aos reclames contra a desigualdade que crescia aceleradamente na ditadura militar: primeiro o bolo crescer, para depois dividir.

Não há teoria econômica, ou social que demonstre ser verdadeiro esse aforismo, ao contrário. Mas há muitos interesses e fortunas que precisam ser defendidas por governos que são servis aos seus proprietários e defendem seus interesses sempre. Se preciso à ferro e fogo, literalmente.

Quando em governos recentes, programas como o Bolsa Família alavancou milhares de pessoas da miséria para a pobreza e o crescimento econômico gerado levou pobres para a classe média, isto foi o resultado, em grande medida, da indução por parte do Estado de um deslocamento social positivo, poucas vezes visto no país. O que gerou uma escalada virtuosa de oportunidades. Aqueles que defendiam que primeiro deveriam acumular e, só depois, dividir não gostaram nada de ver os recursos públicos migrando em parte para os pobres e retomaram com virulência os velhos chavões contra qualquer política de inclusão, tipo: a pessoa não dever receber o peixe, mas aprender a pescar. Ditados tidos como sabedoria popular, mas que servem apenas para justificar o acesso diferenciado às oportunidades e ao financiamento público.

Exemplo de virulência contra as políticas de inclusão social foi a reação à criação das cotas para ingresso na universidade, que gerou uma grita geral e uma ardorosa defesa do mérito como fator de ingresso. Um alvoroço feito por pessoas que jamais foram motivadas a reagir, por exemplo, à lei do boi, que vigorou de 1968 até 1985 e estipulava 50% das vagas nas faculdades rurais para quem vivia no campo, na prática para os filhos dos grandes proprietários rurais. Para a nossa elite, política de cotas só é ruim quando é para os pobres e, pior ainda, se destinadas aos negros.

Há alguns dias, quando o ministro da economia do governo Bolsonaro, Paulo Guedes, afirmou que “o fim do auxílio emergencial ajudará no controle da inflação”, ele não fez mais do que atualizar o mantra secular repetido pelos defensores dos interesses das grandes fortunas: são alguns dos 99% da população, que se dividem entre miseráveis, pobres e remediados das classes médias que estão sempre tentando estorvar o glamour dos 1% e não entendem como normal a desigualdade. Não é por outra razão que que os Editoriais da imprensa empresarial estão sempre apregoando a necessidade de modernização… da esquerda.

Gerson Almeida é sociólogo.

One Response

  • Muito bom. A elite brasileira tem uma ferida crônica que ela mesma não tem interesse em sarar.

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