O futuro do trabalho: do “nada a ver com o habitual” à “nova normalidade”

Fotografia: Freepik

Atualmente, o teletrabalho é uma ferramenta muito valiosa, mas é necessário alertar sobre a ameaça potencial que essa modalidade trabalhista pode implicar em termos de flexibilização laboral, oculta pela aura do avanço tecnológico, uma estratégia de simulação não alheia ao neoliberalismo.

Eduardo Camín

Fonte: CLAE
Tradução: DMT
Data original da publicação: 09/07/2020

Milhões de pessoas no mundo trabalham remotamente devido à pandemia de Covid-19. Poderia ser este “nada a ver com o habitual” o futuro do trabalho? Pelo menos é assim que Susan Hayter, consultora técnica sênior da Organização Internacional do Trabalho, pensa sobre o futuro do trabalho.

Desde que o teletrabalho surgiu nos Estados Unidos durante os anos 1970 e até hoje, a atenção a essa fórmula de organização do trabalho tem mostrado elementos positivos a ponto de promovê-la, devido às vantagens que implica para o trabalhador (entre outras, a reconciliação de sua vida profissional, familiar e pessoal), para a empresa (o aumento da produtividade) e para a sociedade (favorece a descentralização das atividades, além de outras vantagens).

Ao mesmo tempo, são evidentes os elementos negativos que causam receios, como as consequências sociais e trabalhistas do teletrabalho em relação, por um lado, ao isolamento do teletrabalhador, seu desenvolvimento profissional mínimo ou à falta de proteção de seus direitos trabalhistas. Por outro lado, em relação aos obstáculos para o controle e supervisão dos teletrabalhadores da empresa e os custos de treinamentos que a empresa deve assumir.

Recordemo-nos que antes da pandemia já havia um debate em andamento sobre as consequências das tecnologias no futuro do trabalho. A mensagem da Declaração do Centenário adotada em junho de 2019 foi clara a esse respeito: o futuro do trabalho não é predeterminado; moldá-lo depende de nós.

Esse futuro adiantou-se ao previsto, pois muitos países, empresas e trabalhadores, tiveram que mudar para o teletrabalho para conter a disseminação da Covid-19, mudando drasticamente a maneira usual de trabalhar. As reuniões virtuais remotas agora são frequentes e a atividade econômica em várias plataformas digitais aumentou.
À medida que as restrições são levantadas, uma pergunta que todos fazem é se o “nada a ver com o habitual” se tornará o “novo normal”.

Enquanto muitas empresas começam a projetar agora a alternativa do teletrabalho, os precursores do teletrabalho estão considerando se devem continuar ou expandir essas formas de trabalho alternativo. O escritório virtual traz vantagens para empresas e trabalhadores, mas também desvantagens que só podem ser resolvidas com as novas orientações no âmbito da gestão.

Algumas grandes empresas de economias desenvolvidas já apontaram que o que antes era um projeto piloto imprevisto e demorado – o trabalho a distância, realizado de casa, e o teletrabalho – passará a ser a maneira padrão de organizar o trabalho. Os funcionários não precisam ir ao trabalho, a menos que optem por fazê-lo.

Isso pode ser motivo de celebração para as pessoas e para o planeta. No entanto, a ideia de um ponto final para “o escritório” é decididamente, no mínimo, pretensiosa. A OIT estima que nos países de alta renda 27% dos trabalhadores possam trabalhar remotamente de casa.

Eles trabalham em um tipo de emprego que assim o permite e possuem acesso à tecnologia e à infraestrutura de telecomunicações que o torna possível. Mas isso não significa que eles, efetivamente, o farão.

Vantagens e desvantagens.

A mudança para o trabalho remoto causada pela pandemia permitiu que muitas empresas continuassem operando sem comprometer imediatamente a saúde e a segurança de seus funcionários. Isso confirmou o que alguns estudos já haviam previsto, que dentro de uma estrutura adequada de circunstâncias – um escritório doméstico habilitado, acesso a ferramentas de colaboração e uma rotina de trabalho previsível – o trabalho remoto pode ser igualmente produtivo.

Aqueles que foram capazes de assumir a transição para o teletrabalho durante a crise sanitária tiveram a oportunidade de se sentar à mesa todos os dias com a família. Assim, o trabalho tornou-se imediatamente centrado nas pessoas; mas, ao mesmo tempo, precisou ser combinado com a educação escolar em casa, os cuidados das crianças e dos idosos.

Sim, essas pessoas viram as fronteiras entre o tempo de trabalho e o tempo pessoal se esvaírem, e isso aumentou o estresse e colocou vários riscos à saúde mental. Para muitas pessoas, a mudança para o trabalho remoto intensificou a sensação de isolamento, perda de identidade e de determinação.

Independentemente das roupas que vestimos para entrar nelas, as salas virtuais não podem substituir o valor social do trabalho e a dignidade e o sentimento de pertencimento que ele nos fornece.

Diante da iminência de uma crise econômica e do aumento sem precedentes das taxas de desemprego, surge uma oportunidade de pesquisar a melhor maneira de aproveitar as adaptações necessárias para economizar em custos, melhorar a produtividade e preservar empregos. Isso pode significar semanas de trabalho mais curtas ou fórmulas de compartilhamento de trabalho, para evitar suspensões em tempos difíceis.

Ao mesmo tempo, a experiência recente de teletrabalho revelou fissuras profundas. Aqueles que pertencem à faixa de renda alta podem optar por continuar trabalhando remotamente no futuro, mas os do outro extremo não terão escolha, terão que deslocar-se e provavelmente lhes faltará tempo.

Historicamente, crises econômicas, pandemias e guerras exacerbaram a desigualdade. A questão é se desta vez se tratará de um movimento tectônico que causará um aumento da instabilidade política e social ou se será uma crise que nos motivará a consolidar os fundamentos de sociedades justas e os princípios de solidariedade e tomada de decisão democrática que promovem sociedades, mercados de trabalho e locais de trabalho na direção da igualdade.

Entre o “nada a ver com a realidade” … “à nova normalidade”

Ao analisar o escopo de algumas práticas sociais que, em múltiplos aspectos da vida, parecem ter mudado sem retorno possível, nos perguntamos se é o caso de uma ferramenta provisória ou de uma mudança definitiva. O uso da tecnologia, que em alguns casos pode maximizar retornos, em outros pode prejudicar os laços sociais no local de trabalho e, acima de tudo, os direitos dos trabalhadores em geral.

Sem dúvida, o trabalho à distância é visto como uma maneira eficaz de lidar com o isolamento social que estamos vivendo. Muitos são os que sinceramente se perguntam: por que não continuar com essa modalidade quando a pandemia passar?
Afinal, com as novas tecnologias, a presença física no local de trabalho nem sempre é necessária. Além disso, os trabalhadores podem realizar seu trabalho no conforto de sua casa, economizando tempo e dinheiro para se locomover, descongestionando o transporte público e ajudando o meio ambiente. Parece ideal, não é?

Trabalhar em casa ou a distância não é uma modalidade tão nova quanto parece. De fato, há um histórico interessante para o trabalho a distância, que remonta à Inglaterra pré-industrial. Foi chamado de “indústria a domicílio” e consistia basicamente na elaboração artesanal de roupas.

Além das grandes diferenças entre os tempos e as relações sociais envolvidas, o caso analisado na Europa pré-Revolução Industrial mostra que seu resultado foi uma maior exploração dos trabalhadores, justamente pelas condições impostas para desenvolvê-lo. A forma como foi apresentada era relativamente semelhante à de hoje: trabalhar no conforto de casa.

Mas queremos enfatizar algumas questões do teletrabalho que podemos considerar disruptivas do contexto em que geralmente nos reconhecemos como trabalhadores.

Então, o que fazer com o teletrabalho?

As condições materiais do teletrabalho, tal como o conhecemos hoje, representam uma ameaça potencial à autopercepção de cada trabalhador como membro de um coletivo maior, no qual a consciência coletiva é construída e as organizações de trabalhadores são constituídas.

É o espaço no qual os trabalhadores lutam por direitos que ultrapassam o nível individual de sua situação particular (embora o abranja) para alcançar um status genérico que garanta suas condições de trabalho como membro da classe trabalhadora, estabelecendo limites mínimos e inalienáveis de proteção.

Uma das primeiras alterações observadas é a alteração na duração da jornada de trabalho. O trabalhador está disponível o tempo todo. As demandas do seu empregador não estão circunscritas com limites claros para o tempo em que o trabalhador está produzindo, e o limite entre o trabalho e a vida pessoal é obscuro.

A limitação da jornada de trabalho é uma conquista pela qual o movimento trabalhista pagou um custo muito alto após anos de luta e, acima de tudo, com o sangue de muitos trabalhadores, que deram a vida para conquistar a jornada de oito horas diárias e o descanso aos domingos. A amnésia de alguns não pode nos fazer ignorar algo tão importante.

A dimensão coletiva a que nos referimos nos alerta para outro aspecto perturbador: o teletrabalho facilita o individualismo em detrimento dos aspectos coletivos do trabalho dos trabalhadores.

E nessa noção desliza sutilmente o discurso tradicional do neoliberalismo, no qual tenta se mostrar como defensor do indivíduo contra as políticas massivas da esquerda, mas, na realidade, não se baseia na exaltação das virtudes e liberdades pessoais, mas na destruição da organização das redes sociais.

Portanto, e para contextualizar temporariamente a questão do teletrabalho, o problema não surge claramente no presente isolamento compulsório, mas no futuro. Atualmente, o teletrabalho é uma ferramenta muito valiosa que permite que, em meio a uma pandemia sem precedentes, muitos trabalhadores, seja na esfera pública ou privada, continuem realizando suas atividades com relativa normalidade.

Mas é necessário alertar sobre a ameaça potencial que essa modalidade trabalhista pode implicar em termos de flexibilização laboral, oculta pela aura do avanço tecnológico, uma estratégia de simulação não alheia ao neoliberalismo. As novas condições que podem implicar na generalização do teletrabalho enfatizam os aspectos coletivos do trabalho e insistem na necessidade de uma reflexão crítica sobre as relações sociais que lhe dão enquadramento.

Não se trata de ser “luditas” dos tempos modernos, mas é necessário debater amplamente, entre todos os atores sociais envolvidos, as repercussões que as mudanças tecnológicas que estão ocorrendo podem ter na sociedade como um todo.

É importante contrabalançar o poder de grandes grupos econômicos que há muito buscam implementar a reforma trabalhista contra os interesses dos trabalhadores, e é preciso estar ciente de que essas mudanças imprevistas podem ser totalmente funcionais para seus interesses.

Este não é um debate puramente teórico e intelectual, mas há grandes interesses econômicos em jogo. O capital – com ou sem pandemia – tentará mais uma vez maximizar seus lucros em detrimento dos mais fracos.

Eduardo Camín é jornalista uruguaio, correspondente de imprensa da ONU em Genebra. Associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE).

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