O enfrentamento ao assédio sexual e as possibilidades da compliance de gênero

As empresas e instituições têm indubitavelmente um papel importante a ser desempenhado na prevenção e enfrentamento ao assédio sexual.

Mayra Cotta

Fonte: Jota
Data original da publicação: 26/11/2020

Casos recentes noticiados na imprensa nacional e internacional expuseram chefes assediadores e trouxeram aos holofotes exemplos da pletora de violências e microagressões diárias que as mulheres ainda enfrentam para conseguirem ocupar o mercado de trabalho.

Apesar de cada vez mais evidentes a extensão e gravidade do problema do assédio sexual no trabalho, empresas e instituições não parecem estar devidamente preparadas para lidar com os casos que frequentemente ocorrem. A realidade é que chefes e outros superiores hierárquicos seguem com esta prática impunemente em nossa sociedade, protegidos por ambientes de trabalho complacentes.

Não há dúvidas sobre a urgência do tema. Pesquisa recente elaborada pelo LinkedIn em parceria com a consultoria Think Eva ouviu mulheres de diferentes raças e classes sociais no Brasil e descobriu que 47% das participantes já haviam sido vítimas de assédio sexual no trabalho. Este número é quatro pontos percentuais maior em caso de mulheres negras, e dois pontos percentuais maior em casos de mulheres que ganham até dois salários mínimos.

Além das diversas consequências danosas às mulheres vítimas – perda de auto-estima, depressão e até mesmo demissão do emprego – a pesquisa também mostra que apenas 5% das vítimas no ambiente de trabalho recorrem à área de Recursos Humanos das empresas para denunciar, pois 78% delas acreditam que nada será feito para responsabilizar o agressor. 

O enfrentamento sério e efetivo ao assédio sexual deve estar entre as prioridades de qualquer empresa ou instituição.

Gestores de diferentes indústrias precisam estar capacitados para elaborar e implementar estratégias que ofereçam respostas imediatas aos episódios específicos e soluções de longo prazo para corrigir o ambiente de trabalho e prevenir novas ocorrências.

Uma compliance de gênero com foco em assédio sexual atua em pelo menos quatro frentes distintas: investigação de casos específicos para distribuição adequada de responsabilidades e reparação às vítimas; avaliação do ambiente de trabalho para correção de condutas e práticas problemáticas; criação de estruturas internas para construção de capacidades permanentes de endereçamento de eventuais problemas; e treinamento de funcionários, gestores e diretores para prevenção de novos casos. 

Para a investigação de casos específicos, as soluções atuais disponíveis por parte de empresas e instituições são, na melhor das hipóteses, insuficientes e tímidas, quando não são, na pior das hipóteses, meras reproduções das práticas que buscam combater.

Nestes momentos de crise, que em geral decorrem de uma queixa individual de um caso específico ou de uma demanda coletiva de algumas mulheres direcionada aos seus superiores, as possíveis respostas têm de estar imediatamente disponíveis.

Isto inclui, por exemplo, a investigação interna das ocorrências individuais e a mediação e resolução de conflitos. É também necessário que este processo gere recomendações de punições e admoestações, bem como ofereça suporte a vítimas e testemunhas. Se este processo revelar outros comportamentos problemáticos, é preciso que estes sejam também endereçados.

A avaliação do ambiente de trabalho para correção de condutas e práticas problemáticas pode ser feita  por meio de uma auditoria externa, outro relevante serviço que uma compliance de gênero pode prestar.

Esta iniciativa está disponível para empresas e instituições que optem por adotar posturas mais proativas para o enfrentamento do assédio sexual. Por meio da realização periódica de uma auditoria externa, as empresas e instituições podem antecipar os problemas em vez de terem de buscar soluções uma vez que eles ocorram.

Afinal, em todo local de trabalho, até mesmo nos ativamente preocupados com questões de gênero, há pontos cegos, os quais apenas um olhar externo é capaz de identificar. 

A criação de estruturas internas para construção de capacidades permanentes de endereçamento de eventuais problemas compreende o estabelecimento de canais internos seguros de denúncia, o desenvolvimento de protocolos para resposta a estas denúncias, a institucionalização de espaços permanentes de diálogo sobre as relações de gênero e avaliações regulares para determinar se os problemas estão sendo efetivamente endereçados.

Estas práticas devem fazer parte do cotidiano de qualquer empresa ou instituição seriamente comprometida com este tema. Mesmo as que já tenham lidado internamente com denúncias de assédio sexual precisam também se preparar para que problemas resultantes das relações de gênero no trabalho não se repitam.

O treinamento de funcionários, gestores e diretores para prevenção de novos casos é certamente a maneira mais eficaz de se lidar com o assédio sexual no trabalho. É parte fundamental da solução estrutural educar as pessoas sobre problemas relacionados ao gênero no local de trabalho, por meio de uma estratégia de comunicação que efetivamente informe a respeito das condutas adequadas e das melhores práticas para o estabelecimento de um ambiente de trabalho seguro.

Pode ser que uma empresa ou instituição jamais tenha precisado lidar com uma denúncia de assédio sexual, mas isso não significa que não haja problemas internos que precisem ser endereçados para prevenir que problemas um dia venham a acontecer. 

Este artigo é o primeiro de uma série específica sobre os possíveis caminhos para o enfrentamento ao assédio sexual no trabalho. Raramente existe alguém dentro da empresa ou instituição com a autonomia e objetividade necessárias para lidar com este problema e as violências e microviolências a ele correlatas.

Existe uma dificuldade estrutural em encontrar soluções internas para comportamentos e práticas que estão entrelaçados em estruturas hierárquicas. Reconhecer esta limitação é fundamental se o objetivo é de fato resolver a questão. Um serviço de compliance de gênero com foco em assédio sexual auxilia as empresas e instituições a lidarem com estas demandas. Nos próximos artigos da série, cada uma das frentes de atuação aqui discutidas será mais cuidadosamente detalhada e analisada. 

As empresas e instituições têm indubitavelmente um papel importante a ser desempenhado na prevenção e enfrentamento ao assédio sexual. Não podemos mais normalizar ambientes de trabalho hostis e violentos para mulheres. Compreender a complexidade do problema e investir em soluções efetivas para o seu endereçamento são passos fundamentais para que a gente construa de fato um mercado de trabalho mais justo para as mulheres. 

Mayra Cotta é Advogada, Professora da New School e fundadora da Bastet Compliance de Gênero.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *