O efeito expansionista do direito do trabalho frente a revolução 4.0 no Brasil

A compreensão jurídica de que é possível expandir a proteção e as garantias do trabalho humano prestado por meio de plataformas é medida indeclinável e urgente ao contexto brasileiro.

Adriana Goulart De Sena Orsini

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 14/01/2021

O trabalho compreende todo o tipo de força humana despendida em prol da transformação da matéria prima em algum produto ou a prestação de algum serviço. A relação de emprego trata-se de uma espécie do trabalho, marcada por características específicas. Trata-se de uma modalidade única de trabalho, inconfundível com as demais relações laborais, uma vez que os elementos fáticos jurídicos caracterizadores desse tipo de labor são exclusivos dessa modalidade de trabalho, ainda central nas formas de pactuação do trabalho humano.

A relação de emprego surgiu, enquanto uma forma de trabalho livre (em oposição aos regimes de trabalho escravocratas e servis) e simultaneamente subordinado (ao poder diretivo, organizacional e disciplinar do empregador), no contexto da emergência e desenvolvimento da sociedade contemporânea industrial no século XIX. É, portanto, um fenômeno relativamente recente, mas, desde então, corresponde à mais importante e mais frequente entre todas as relações de trabalho que se têm formado na sociedade capitalista.

A relevância socioeconômica da relação de emprego, bem como a singularidade da sua dinâmica jurídica (trabalho livre e subordinado), levaram à estruturação de um ramo jurídico próprio em torno dessa modalidade, com normas, princípios e institutos específicos: o Direito do Trabalho. 

Nunca é demais relembrar que a categoria básica do fenômeno do Direito é a relação jurídica que compreende o vínculo entre sujeitos, um objeto e um negócio jurídico. Cada ramo do Direito possui uma relação jurídica própria, que justifica toda a construção de normas, regras princípios e institutos em torno daquela relação específica. No caso do Direito do Trabalho, a relação jurídica fundamental, o seu núcleo básico centra-se na relação de emprego, marcada pela prestação de trabalho por pessoa física, pela pessoalidade, pela onerosidade, pela não eventualidade e pela subordinação.

A extensão do Direito do Trabalho para todas as modalidades existentes de trabalho, acabaria por esvaziar a proteção e a especificidade do trabalho sob a forma de emprego que, por sua situação especial, tem proteção maior. É exatamente a subordinação que lhe outorga um peso superior àquele trabalho que é autônomo, atraindo o caráter tuitivo juslaboral. 

Os Estados de bem-estar social ainda existentes demonstram que a relação de emprego, a categoria fundamental do Direito do Trabalho, é a base civilizatória escolhida e com camada extra de proteção (DELGADO; PORTO, 2019. P. 35).

Isso corrobora com a ideia de relevância, projeção e tendência expansionista da relação empregatícia defendida por Maurício Godinho, que corresponde à tendência consolidada de redução das demais relações de trabalho e/ou assimilação dessas outras formas de trabalho, inclusive as novas formas que surgiram com o advento da tecnologia, à situação jurídica da relação de emprego. Exatamente o oposto do que é apregoado aos ventos pelos românticos e dissidentes.

Vivemos uma verdadeira era digital, fruto de um processo denominado de Revolução 4.0, Quarta Revolução Industrial ou ainda Indústria 4.0, que surgiu em meados de 2010. Esse conceito diz respeito ao uso de tecnologias para a troca de dados, automação por meio de sistemas cyber-físicos (compostos por elementos computacionais colaborativos para a gestão de entidades físicas), internet das coisas (relacionada com a capacidade dos objetos cotidianos se conectarem à internet e coletar e transmitir dados) e computação em nuvem (que é o fornecimento de serviços de computação de armazenamento, servidores, banco de dados, rede, software, de forma online). 

O desenvolvimento tecnológico gerado no contexto da Revolução 4.0 modificou sobremaneira a rotina e os costumes dos indivíduos e grupos sociais, as formas de comunicação e as relações intersubjetivas. Nesse sentido, as relações de trabalho, no mundo e no Brasil, também sofreram modificações em diversos aspectos. 

A revolução tecnológica e as novas tendências comportamentais advindas desse processo transformam a lógica de interação entre empregadores e empregados. Jornadas de trabalho móveis -como a jornada do trabalho intermitente, inserido pela Lei 13.467/17- e o trabalho à distância -os home offices- são exemplos cada vez mais comuns de situações em que houve a modificação das condições do emprego. Tais modificações foram, inclusive, incorporadas pela legislação trabalhista, reconhecendo a importância de seu tratamento em norma jurídica.

Além dessas mudanças nas condições de trabalho, a tecnologia trouxe também uma modificação mais drástica: inaugurou-se nos últimos anos uma nova forma de realização do trabalho, intermediada por aplicativos digitais, que tem recebido o nome de “uberização”. 

Uberização é o termo utilizado para tratar de um fenômeno geral, marcado por um modelo de negócio denominado de disruptivo, ou seja, de acordo com Clayton M. Christensen, Michael E. Raynor e Rory McDonald (2015), um modelo de negócio que traz uma inovação que desestabiliza os concorrentes e torna ultrapassado tudo o que se conhece até então no seu segmento de atuação. Em que pese reconhecer todo o caráter inovador desses aplicativos – que inclusive mudaram hábitos sociais em uma velocidade inimaginável há pouco tempo atrás, possuindo adesão da esmagadora maioria da população – é preciso destacar que, em termos trabalhistas, essa modalidade de trabalho não é tão inovadora assim. 

Em linhas gerais, as empresas responsáveis por esses tipos de aplicativos digitais afirmam fornecer apenas uma ferramenta para facilitar a captação de clientes para um trabalhador autônomo. Entretanto, a análise das situações em concreto pode demonstrar que a relação entre o trabalhador e a empresa do aplicativo trata-se de uma relação empregatícia, uma vez que presentes todos os seus elementos fático-jurídicos.

A exclusão pura e simples do âmbito de aplicação do Direito do Trabalho a essas relações, trata-se de uma visão meramente economicista que visa deslegitimar e desregulamentar a relação de emprego como se houvesse alguma incompatibilidade entre o regime protetivo e as novas formas de trabalho.  O pretenso argumento de progresso econômico e de garantia de maior autonomia para o trabalhador motorista ou entregador visa mascarar uma realidade voltada a hiperexploração de mão de obra.

As novas tecnologias tem modificado, de fato, a forma como o trabalho é prestado, pois trouxeram  praticidade e agilidade em certos aspectos, no entanto, não se trata de uma nova e distinta relação de trabalho que não se pode configurar de emprego. Ao reverso, evoca-se a tendência expansionista da relação de emprego defendida por Maurício Godinho para assimilar na modalidade da relação de emprego o trabalho prestado por meio das plataformas digitais. A exclusão da proteção juslaboralista só ocorrerá nos casos em que, efetivamente,  ausentes os elementos fático-juridicos da relação de emprego (arts. 2º, 3º e 6º da CLT).

Algumas narrativas economicistas e/ou narrativas epistemológicas visam reduzir a importância da relação de emprego enquanto objeto do direito do trabalho, sob argumentos de que essa modalidade de trabalho livre e subordinado não abarca todas as modalidades de trabalho e que, diante do surgimento de novas formas de trabalho, com a Revolução 4.0, tal modalidade entrará em desuso.  

No entanto, percebe-se que, ao contrário, há relevância e projeção expansionista da relação empregatícia, que faz com que  as novas formas de se realizar o trabalho estejam sob o manto protetivo do Direito do Trabalho.  Ademais, ainda que essas relações se situem em tecnologias inovadoras, no que se refere à forma como o trabalho é prestado, se estiverem presentes os elementos fáticos-jurídicos que caracterizam a relação de emprego: a pessoalidade, a prestação por pessoa física, a não eventualidade, a onerosidade e a subordinação, atraídos os dispositivos da Consolidação das Leis Trabalhistas pertinentes.

Portanto, a reafirmação das bases do Direito do Trabalho de forma a abarcar as situações geradas pelo contexto pela revolução tecnológica (4.0) é uma das possíveis medidas a garantir, no espaço normativo nacional,  a gama de direitos e a proteção desse ramo jurídico.  Portanto, a compreensão jurídica de que é possível expandir a proteção e as garantias do trabalho humano prestado por meio de plataformas é medida indeclinável e urgente ao contexto brasileiro.

Referências

[1] DELGADO, Maurício Godinho; PORTO, Lorena Vasconcelos (Org.). Welfare State: Os Grandes Desafios do Estado de Bem-Estar Social, São Paulo: LTr, 2019.

Adriana Goulart De Sena Orsini é desembargadora federal do trabalho do TRT da 3ª região e professora associada da faculdade de direito da UFMG.

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