O Brasil flerta com um terraplanismo econômico

Ortodoxia liberal é questionada ao menos desde 2008, quando evidenciou-se desconexão de seus modelos com a realidade. Mas aqui, economistas insistem na “austeridade” — para alegria dos especuladores. Pandemia poderá desmascará-los?

David Deccache e Gustavo Noronha

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 21/04/2020

A miséria da ortodoxia neoliberal é intelectual, moral e social. A agenda de austeridade fiscal adotada em 2015, e potencializada após o golpe de 2016, é a principal culpada da crise humanitária que vivemos, aprofundando, de forma exponencial, os danos causados pela pandemia. Uma agenda construída a partir de uma mentira consciente.

Aliás, uma mentira muito conhecida e admitida de forma sutil por boa parte dos economistas associados à linha de pensamento hegemônica no debate econômico. Vejamos, Milton Friedman já admitiu que “a economia tornou-se cada vez mais um ramo misterioso da matemática em vez de lidar com problemas econômicos reais”. Robert Solow foi além:

Hoje, se você pergunta a um economista das correntes de pensamento dominante uma questão sobre quase todos os aspectos da vida econômica, a resposta será: suponha que modelemos essa situação e vejamos o que acontece… a corrente dominante da economia moderna consiste em pouco mais que exemplos deste processo

Continuando apenas com ganhadores do Prêmio Nobel de Economia, Paul Romer escreveu em 2016 que a falta de espírito científico dos economistas fez com que um macroeconomista médio de hoje saiba menos que seu equivalente de trinta anos atrás. Romer ressalta que mais que o fato de os macroeconomistas dizerem coisas inconsistentes com os fatos, o verdadeiro problema seria que outros economistas não se importariam de os macroeconomistas não se preocuparem com os fatos. Nas palavras do autor: “uma tolerância indiferente ao erro óbvio é ainda mais corrosiva para a ciência do que a defesa comprometida do erro”, a ciência e o espírito da iluminação, em sua opinião, são as realizações humanas mais importantes e que importam mais do que os sentimentos de qualquer um de nós. Ao que Romer complementa:

Você pode não compartilhar meu compromisso com a ciência, mas pergunte a si mesmo: Você quer que seu filho seja tratado por um médico mais comprometido com seu amigo antivacinação e seu outro amigo homeopata do que com a ciência médica? Se não, por que você deve esperar que as pessoas que querem respostas continuem prestando atenção aos economistas depois de aprenderem que estamos mais comprometidos com os amigos do que com os fatos?”

Comparar com a polêmica antivacinação é bastante pertinente, se escrito hoje poderíamos incluir os negacionistas da gravidade da pandemia da covid-19. Deste modo, não há grandes diferenças entre o argumento dos economistas da corrente hegemônica de pensamento e o daqueles que defendem que a terra é plana. A diferença destes economistas para os céticos do aquecimento global antropogênico é que estes últimos ainda encontram dificuldades de publicar suas teses em periódicos respeitáveis.

O que leva então a este triunfo da mentira sobre a verdade na economia? Na filosofia, é comum dois conceitos, por vezes antagônicos, disputarem o status de verdade. Na religião, a disputa pela suposta verdade divina revelada talvez seja uma das maiores causa mortis da humanidade. A verdade, de fato, é algo impossível de se estabelecer, até porque sempre analisamos as coisas sob nossas próprias perspectivas e certamente nossa mente não é capaz de compreender todos os fatos.

Thomas Kuhn, um dos mais importantes pensadores da filosofia da ciência no século XX, apresenta uma ruptura com as ideias positivistas e traz a discussão da filosofia da ciência para um campo mais próximo da história da ciência. Antes de Kuhn, prevalecia ideia de que a ciência evoluía a partir do acréscimo de novas verdades ao estoque das mais antigas. Kuhn trabalhou a ideia de que o desenvolvimento da ciência ocorria em períodos normais e períodos revolucionários.

A ciência normal seria como a solução de um quebra-cabeças dentro de determinado paradigma, de verdades estabelecidas. A ciência revolucionária romperia com os paradigmas preexistentes, estabelecendo novos, ou seja, envolveria a revisão de toda a crença e prática científica anteriores. A quebra de paradigmas, segundo Kuhn, tenderia a ocorrer quando os preexistentes começam a falhar na resolução de problemas concretos. Desta forma, para ser adotado, o novo paradigma deveria ser mais capaz de resolver os quebra-cabeças existentes.

Deste modo, é importante destacar que, para Kuhn, as crenças são parte indissociável na construção dos paradigmas. Assim, elas determinam como serão compreendidos e desenvolvidos os diversos objetos de estudo. Percebem-se, assim, as crenças como algo externo à ciência em si, mas que fazem parte da construção do raciocínio elaborado pelo cientista e acabam incorporadas ao modelo científico desenvolvido. O que Brecht sintetizou de forma precisa num par de versos: “pergunta a cada ideia: / serves a quem?”.

Até a crise de 2008, todos aqueles que criticavam as verdades estabelecidas no paradigma dominante na macroeconomia eram vistos com bastante desconfiança. Desde então, sucessivas autocríticas têm sido feitas por economistas do chamado mainstream econômico, a mais notória a de Paul Romer citada acima. Esta revisão crítica, contudo, não alcançou o debate econômico brasileiro, não tanto pelo consenso entre as mais diversas escolas de economia do país, mas pela força política de seus defensores que lhes garante voz única nos noticiários dos principais grupos de mídia. Tentam nos convencer de que uma economia nacional de um governo emissor de sua própria moeda, com território continental, deve-se ater às mesmas curvas de restrição orçamentária de uma família ou de uma firma.

Esse era (e ainda é, embora a crise da COVID-19 tenha derrubado algumas “verdades’) o estado do debate econômico no Brasil pelo menos desde o fatídico junho de 2013, quando evidenciou-se na sociedade brasileira uma crise de hegemonia no sentido gramsciano, na qual as classes sociais encontram-se dissociadas dos partidos que as representam, de forma que não se sentem mais representadas por seus representantes. Nas eleições presidenciais de 2014, mais que em outras, foi estabelecido um forte debate sobre a condução da política econômica, quando manifestos foram lançados por economistas de distintas visões, cada qual apoiando uma candidatura.

A ascensão de Lula e do PT construiu uma conciliação entre os interesses de entreguistas de São Paulo e uma estratégia necessária e insuficiente de desenvolvimento com inclusão social. Entretanto, José Luís Fiori nos lembra que a matriz teórico-ideológica originária do PT e do PSDB é mais ou menos a mesma: “paulista e democrática, mas, ao mesmo tempo, antiestatista, antinacionalista, antipopulista, e em última instância, também, antidesenvolvimentista”.

A tentativa malsucedida do governo Dilma de introduzir uma trajetória alternativa de desenvolvimento em seu primeiro mandato rompeu o pacto, acirrou os anseios golpistas desta elite e fez o governo se ajoelhar ao ajuste fiscal na ânsia de uma reconciliação que não veio. Ao contrário, acirrou-se a crise de hegemonia.

Ademais, em 2015, diante das taxas de lucro em queda, decorrência de salários que cresciam acima da produtividade (dada uma economia cada vez mais reprimarizada) houve forte pressão dos capitalistas para que o governo alterasse o regime de política econômica, não no sentido de sofisticação da estrutura produtiva, mas sim no esmagamento do custo da força de trabalho. Não se esperava nada de diferente de uma burguesia de raízes escravocratas, subordinada ao imperialismo e de caráter altamente espoliativo.

Para recompor a taxa de lucro, a austeridade era elemento central. A austeridade fiscal tinha dois objetivos centrais, e nenhum deles tinha a ver com o equilíbrio das contas públicas — essa foi apenas a narrativa utilizada para tornar a crueldade aceitável. Por um lado, a austeridade eleva rapidamente o desemprego. De outro, com desemprego mais alto, a classe trabalhadora perde poder de barganha e os salários caem rápido. O medo do desemprego é disciplinador. Não menos importante, é o fato que a desorganização da classe trabalhadora facilita a vida de quem quer aprovar reformas neoliberais, como o teto dos gastos, a reforma trabalhista e a previdenciária.

Até Samuel Pessoa, economista liberal muito influente no Brasil, concorda com este ponto. Ele deixou isto muito claro, por exemplo, em uma de suas colunas escritas na Folha de SP em 2015:

Há duas semanas o IBGE divulgou a Pesquisa Mensal de Emprego (PME) referente a maio (…) A ‘boa notícia’ foi a queda de 5% do rendimento médio real. Aqui aparece o lado negro da economia. Queda de salário real é boa notícia! O motivo é que a combinação entre queda de salário real e elevação da taxa de desemprego sugere que o mercado de trabalho está sendo mais flexível do que se imaginava há alguns meses.

Além disso, a austeridade, ao esmagar a capacidade do Estado em realizar gastos sociais, precariza a prestação de serviços públicos, como saúde, educação e previdência social, abrindo novas esferas de acumulação para o setor privado atuar. Com saúde pública e previdência social sucateadas, mais pessoas precisam adquirir planos de saúde com a Unimed ou fundos de previdência no Bradesco. A mercantilização generalizada é elemento central na recomposição da taxa de lucro do capital.

Ao deixar 25% dos trabalhadores sem empregos ou desalentados e outros 40% na informalidade, e tudo isso por conta dos objetivos repugnantes que já vimos, a austeridade excluiu dos mecanismos oficiais de proteção social a maior parte da sociedade brasileira.

Além disso, Bolsonaro desmontou vários estabilizadores sociais automáticos, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (para idosos em situação de miséria). Mais de um milhão e meio de famílias estão na fila do bolsa família no momento em que o programa passa a ser a linha tênue entre a morte e a vida. Já a fila do INSS chega a mais de dois milhões de pessoas — boa parte delas, idosos em situação de miséria que não tem como sobreviver sem o BPC. Isto porque, para os defensores da austeridade, é imprescindível que não se rompa o paradigma fundamental de funcionamento do sistema capitalista de que cada um deve ganhar seu pão com seu suor.

Isso vai causar ainda mais sofrimento para o povo que o covid-19. Esse paradigma do pão de cada dia ganho com a labuta é o que está por trás da resistência moral a que o governo ajude diretamente os trabalhadores nesta crise. Como a pandemia exige isolamento social por um longo período, estes trabalhadores, que não possuem emprego formal, seguro desemprego e nenhum tipo de proteção social, estão passando fome. Literalmente. A escolha que o presidente tem dado a eles, por mera convicção ideológica, é morrer de fome ou sair para trabalhar e morrer de Covid-19 (ou talvez matar a mãe ou avó). Duas semanas sem trabalhar, dado o perfil do mercado de trabalho pós-austeridade, mata de fome.

O que o povo brasileiro precisa na atual crise é que o governo federal não tenha medo de gastar o que for necessário, não apenas no combate direto à pandemia, como, também, naquilo que for preciso para que o trabalhador não perca sua renda. Quase todos os países do mundo estabeleceram gastos de pelo menos 10% do PIB para enfrentar a coronacrise, o Brasil ainda não chegou a 2,5% do PIB. Seria cômico, se não fosse absolutamente trágico.

O governo brasileiro ainda tem a desfaçatez de dizer que temos que escolher entre a economia e as medidas sanitárias necessárias. Isto é uma mentira! Primeiro porque diversos estudos econômicos mostram que mesmo sem medidas de isolamentos, teremos um severo impacto na economia. Em segundo lugar, um estudo sobre a pandemia da gripe espanhola mostrou que a recuperação econômica foi mais rápida nos locais em que se adotou o isolamento total. A parte destas razões, não é papel dos economistas questionarem as medidas sanitárias apontadas pelos profissionais da saúde, o papel dos economistas é, considerando as medidas necessárias apontadas pelos epidemiologistas, indicar as saídas que minoram o impacto econômico da crise, a principal delas é uma pesada intervenção do Estado na Economia.

A conduta do governo Bolsonaro reabre a crise de hegemonia e como Gramsci colocou, “a crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. A crise de hegemonia tem o potencial de apresentar diferentes desenlaces: num curto prazo, a classe dominante pode manter o seu status quo por meio da coerção e em médio prazo recompor hegemonia; por outro lado, caso as classes dominadas sejam capazes de ampliar alianças e evitar o sectarismo, talvez possam subverter a ordem e assumir como nova classe dominante.

Numa situação normal, seria natural afirmar que, no Brasil, o Estado e a sociedade civil ainda estão bastante organizados e de nada adiantaria a guerra de movimento das estratégias revolucionárias clássicas, e seria preciso resgatar a guerra de posição de forma a cercar e sitiar o Estado burguês com uma contra-hegemonia para construção de um novo Brasil. No entanto, a estratégia genocida do atual governo pode fazer avançar uma conjuntura em que a guerra de movimento seja inevitável para a classe subalterna, não por uma opção revolucionária consciente, mas por uma questão de sobrevivência.

David Deccache é Mestre em Economia pela UFF, ativista dos direitos humanos e, atualmente, exerce o cargo de Assessor Econômico da bancada de Deputados Federais do PSOL.

Gustavo Noronha é economista do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

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