O automóvel e as relações de trabalho rumo à eternidade

Fotografia: Harry Shipler

Diz-se que leis trabalhistas inibem o emprego: voltar aos padrões de antes da guerra é solução para falta de competitividade?

Luiz Alberto Melchert

Fonte: GGN
Data original da publicação: 01/08/2020

Não há como negar que a indústria de automóveis causou a maior revolução social que o mundo já viu. Ela mudou a forma como as pessoas produzem, como se locomovem, como se relacionam com os circundantes e, principalmente, como se relacionam com seus empregadores. Dia 1°. de julho de 2020, os trabalhadores por aplicativos promoveram uma paralisação que resultou no bloqueio de seus organizadores. Mesmo não envolvendo a indústria, as rodas estavam presentes, se não como protagonistas, pelo menos como cenário.

A história da indústria de automóveis registra personalidades bastante contraditórias. Henry Ford foi uma delas. Em sua primeira autobiografia, publicada em 1922, descrevia o processo mental que o levou à introdução da esteira rolante, que estabeleceu o ritmo aos operários, aproveitando os menos qualificados nas linhas, enquanto os profissionais mais próximos de artesãos ocupavam-se do desenvolvimento e da manutenção do que ele chamava machine tool (máquina-ferramenta). Ao mesmo tempo em que o racionalismo dava a tônica da produtividade, ele era extremamente paternalista, desenvolvendo programas de remuneração destinados aos pais de família, cujo comportamento condissesse com seus princípios religiosos.

O ápice da ambiguidade de seu comportamento deu-se quando mandou sua milícia reprimir a bala a Hunger March (trocadilho entre marcha da fome e março da fome). Tratou-se de um movimento organizado pelo partido comunista norte-americano que causou ferimentos em mais de 200 pessoas, entre policiais da cidade de Dearborn, milicianos da própria Ford e, sobretudo, entre os “marchantes”, dos quais quatro morreram no local e um, uma semana depois, no hospital.

Ford só veio a aceitar a existência dos sindicatos em 1941, na eminência de os Estados Unidos entrarem na Segunda Guerra Mundial, quando ele próprio deixou de apoiar o regime nazista. Antes disso, em abril de 1937, já no fim da Grande Recessão, a polícia interna da General Motors e a oficial de Detroit reprimiram com armas de fogo uma greve que acabou durando 45 dias. O protesto resultou no reconhecimento da United Automobile Workers (UAW), no que foi seguida, meses depois, pela Chrysler.

Durante a guerra, seja pelo espírito patriota, seja pela inclusão massiva de mulheres nos quadros da indústria, os conflitos trabalhistas apaziguaram-se. Após 1945, os dirigentes anteviram o retorno dos conflitos porque os ex-soldados voltaram como heróis a seus postos de trabalho, enquanto as mulheres foram remetidas, a contragosto, para casa. A estratégia foi fomentar a divisão dos sindicatos por categorias, a ponto de a indústria ter de lidar com 14 deles em cada negociação. Se, por um lado, a divisão favorecia a indústria, por outro, tornou sua vida um verdadeiro inferno, visto que paralisações em setores estratégicos interrompiam a produção sem que se decretasse uma greve geral.

Enquanto isso, no Brasil, a forma de “domar” os sindicatos foi adotar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), baseada na Carta de Lavoro promulgada na Itália por Benito Mussolini. Isso se deveu a que tanto capitães de indústria como operários eram, em maioria, oriundi. Assim, quando a indústria chegou aqui, já havia um ambiente trabalhista pacificado. Até 1964, greves houve e muitas, mas não contra a indústria em si, muito menos ao longo de sua cadeia de suprimentos. Veio a repressão e, curiosamente, foi justamente contra a Ford a greve que marcou o início da redemocratização. Daí para a frente, vencedores e vencidos variaram de lado sem grande selvageria.

Relações pré-guerra

Durante a crise da segunda década deste século, vendeu-se a ideia de que as leis trabalhistas inibiam o emprego e que, reduzindo-se os encargos, o nível de emprego voltaria a subir. Será que voltar às relações trabalhistas de antes da Segunda Guerra é a solução para mitigar nossa falta de competitividade e diminuir o desemprego?

Não parece ter sido o que aconteceu, visto que o emprego depende de uma coisa só: haver serviço que justifique um novo colaborador. Criou-se uma horda de indivíduos entendendo-se como empresários, usando seus veículos como ferramenta de trabalho marginal, não como atividade principal. Veio a crise e as locadoras viram nisso um enorme mercado, pois atraía os desempregados os que não tinham como adquirir um carro, além daqueles que não exporiam veículos próprios a operação tão intensiva.

Quanto maior a oferta de braços para guiar automóveis, motos ou bicicletas, menores os rendimentos individuais: era de se esperar que os trabalhadores se associassem.

O desemprego constante e crescente, bem como a ideia de o trabalhador ter passado a empresário, fizeram a balança pender para o lado das empresas de entregas ou de transporte pessoal. A coisa chegou ao ponto de taxistas porem seus carros a serviço dessas empresas, mudando eles próprios de lado. Ocorre que o mercado, seja lá para o que for, é limitado.

Quanto maior a oferta de braços para guiar automóveis, motos ou bicicletas, menores os rendimentos individuais, enquanto os dos intermediários e das locadoras permanece constante. Era de se esperar que os operadores desses serviços se associassem, até mesmo formando sindicatos, com greves voltando a pipocar pelo país afora. O aluguel de veículos facilita muito o processo porque, em o locatário podendo devolver o bem a qualquer momento, não se vê pressionado pelos compromissos financeiros inerentes a seu instrumento de trabalho.

Trata-se de esmorecimento da ilusão de o operador ter-se tornado empresário, voltando a negociar como trabalhador, como aconteceu em Nova York, onde os intermediários têm que garantir um rendimento de US$ 15 a hora. Essa solução dificilmente seria importada porque o Brasil encontra-se numa crise extremamente profunda. As reivindicações devem manter o foco nas percentagens de intermediação e na garantia de alimentação e seguro — até mesmo do direito de usar o banheiro dos estabelecimentos que usam seus serviços.

Nesta coluna tem-se falado muito sobre servicificação no uso do automóvel e a redução do peso da sua indústria na economia como um todo. Em números, pode ser verdade, mas jamais no âmbito humano, em que as rodas continuarão a ditar as regras sociais por muito tempo.

Luiz Alberto Melchert é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP).

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