Novos grilhões para a escravidão do século XXI? Algoritmos, TICs e Plataformas Digitais

Estar atento à existência de outras formas, sofisticadas e inicialmente sedutoras, de mecanismos escravizadores, é essencial ao estabelecer mecanismos legais que regulem a incorporação de novas tecnologias no trabalho.

Álvaro Ruiz

Fonte: El Destape
Tradução: DMT
Data original da publicação: 31/05/2020

Como formas análogas à escravidão, são geralmente referidas as situações existenciais daqueles que são vítimas de tráfico de seres humanos para fins trabalhistas, que geralmente identificamos com modos de organização do trabalho em que há grande precariedade. Estar atento à existência de outras formas, sofisticadas e inicialmente sedutoras, de mecanismos escravizadores, é essencial ao estabelecer mecanismos legais que regulem a incorporação de novas tecnologias no trabalho.

Ambivalências do progresso tecnológico

É inegável a influência que a revolução científico-tecnológica exerceu em todas as áreas da vida nas últimas décadas, como também a velocidade crescente das mudanças produzidas e que, em períodos cada vez mais curtos, torna obsoletos os processos, conceitos e bens de qualquer tipo que até então considerávamos ultramodernos.

Os produtos de última geração que nos deslumbram logo deixam de ser e são deixados para trás por outros que nos surpreendem novamente, que não apenas os excedem, mas impõem sua substituição para tornar viável o acesso às novas possibilidades oferecidas e que entendemos como indispensáveis.

A noção de “progresso” da Humanidade nos parece linearmente ligada a esses avanços, atribuindo-se-lhes uma validade universal, concebidos como totalizadores em suas projeções e destinatários, além de indiscutivelmente benéficos.

O curioso é que, por um lado, eles parecem, à primeira vista, nos igualar porque alcançam “a todos” (como telefones celulares, internet, wifi, streaming, e-mails ou outras variadas plataformas digitais). Mas se paramos para observar com mais atenção, descobrimos que essa aparente generalização está longe de ser homogênea e que, pelo contrário, o que ela tem em comum é muito menor que os elementos que ela contém e determinam diferenças abismais.

A referência limitada a esses bens e serviços responde ao significado desta nota. No entanto, podemos reconhecer manifestações paradoxais semelhantes em muitos outros campos nos quais essa “revolução” impacta e gera enormes desigualdades entre os seres humanos, o que desafia a ideia de “progresso” que nos transmitem e que admitimos acriticamente.

Na atual divisão internacional do trabalho, o conhecimento e o domínio de novas tecnologias constituem fatores determinantes das vantagens competitivas dos países e, dentro deles, são replicadas essas prevalências, que se traduzem no contraste de hegemonias e dependências de consequências muito diferentes.

Continuando no que diz respeito às tecnologias da informação e comunicação (TICs), é necessário ter em mente, como já apontava agudamente José Saramago no início deste século (Le Monde Diplomatique, Edición Cono Sur, nº 9, março de 2000) e que, no essencial, permanece em vigor:

“Nos é dito que graças às novas tecnologias alcançaremos as margens da comunicação total. A expressão é enganosa, permite fazer acreditar que todos os seres humanos do planeta agora podem se comunicar. Infelizmente, isso não é verdade. Apenas 3% da população do mundo tem acesso a um computador; e aqueles que usam a Internet são ainda menos numerosos. A grande maioria de nossos irmãos humanos, aliás, desconhece a existência dessas novas tecnologias. Até agora, eles ainda não dispõem das conquistas elementares da antiga revolução industrial: água potável, eletricidade, escolas, hospitais, estradas, ferrovias, geladeiras, carros, etc. Se nada for feito, a atual revolução da informação os ignorará da mesma maneira “.

Descobertas pandêmicas

A experiência difícil, extrema e dramática que a COVID-19 provoca iluminou o cenário mundial e argentino, revelando realidades e demolindo ficções com as quais vivíamos há muito tempo.

Descobrimos o que estava diante de nossos olhos, ou, pelo menos, tão perto que precisávamos apenas tomar consciência de sua existência, como é o caso das favelas onde centenas de milhares de pessoas vivem em condições tão sub-humanas que justificam plenamente os nomes de suas favelas.

Na ocasião da implementação do IFE (Ingreso Familiar de Emergencia), nove milhões de cidadãos se tornaram visíveis: um quinto da população total da Argentina que estava fora do sistema, vítima de uma exclusão vergonhosa, como apontou o Presidente Alberto Fernández explicando o motivo pelo qual era difícil chegar a tempo com essa assistência.

No outro extremo social, muitos dos nomes dos muito poucos muito ricos (cerca de doze mil) apareceram com fortunas de milhões ou bilhões de dólares que, em uma proporção importante, coincidiu com aqueles que realizaram fugas de capitais ou que têm seus principais ativos protegidos em “paraísos fiscais”.

O Isolamento Social Preventivo Obrigatório (APSO) paralisou grande parte da economia. Imobilizadas, as atividades realizadas pela maioria da população não puderam continuar, pelo menos da maneira como vinham sendo feitas.

Então, e ainda mais com as sucessivas extensões da quarentena, várias estratégias de trabalho remoto começaram – e logo foram incrementadas – como única alternativa para os setores não isentos do isolamento social – mas também foram verificadas em serviços ou tarefas classificadas como essenciais.

Os empregadores estavam descobrindo – principalmente devido às circunstâncias – que muitas funções presenciais poderiam ser realizadas à distância, e que essa modalidade, imposta por uma situação excepcional, poderia se tornar uma opção que seria vantajosa para eles após a emergência. Os custos de infraestrutura são reduzidos, os controles sobre o pessoal são mantidos ou aumentados, a extensão e/ou intermitência utilizável das jornadas de trabalho ficam mais sujeitas à discricionalidade do empregador, a composição ou a determinação das remunerações efetivamente pagas proporcionam margens mais amplas para sua determinação.

Aqueles que começaram a trabalhar remotamente por decisão de seus empregadores ou forçados pelo isolamento (APSO), como aconteceu em várias profissões ou ofícios (mediando ou não um vínculo de dependência), também descobriram os prós e contras do trabalho remoto. Pois, assim como era uma rota de fuga ao isolamento social para permanecer operante e nos permitiu fazê-lo sem sair de casa, mostrou as enormes dificuldades em conciliar o trabalho com companheiros e familiares, alcançar uma divisão razoável entre trabalho e vida extra-trabalho, evitar a invasão de privacidade e a disponibilidade ilimitada às requisições laborais, e perder a sociabilidade do trabalho presencial.

Algo semelhante aconteceu em outras áreas de negócios com o uso de serviços contratados por meio de plataformas digitais. Para funcionar, muitos dos comércios – dentro e fora dos considerados “essenciais” – tiveram que apelar para empresas como Glovo, Pedidos Ya, Rappi e também recorrer ao Uber ou Cabify. Descoberta de mecanismos que poderiam ter chegado para ficar, em uma reorganização futura de atividades comerciais, gastronômicas e outras.

Nesse caso, o lado oposto para aqueles que estavam empregados nessas tarefas era uma superexploração, de acordo com as viciadas práticas que caracterizam as condições de emprego nesses tipos de empresas. Expostos aos contágios de sua trajetória diária, sem possuir equipamentos de proteção – adequados e em quantidade suficiente, caso recebessem -, ao aumento do trabalho e à extensão de suas horas de trabalho no âmbito da pandemia, não compensados pelos aumentos de seus salários e de qualquer diminuição na demanda por serviços às empresas, deixando-os à sua sorte sem qualquer garantia de uma renda mínima.

Avanços tecnológicos e regulamentação do trabalho

Na Argentina, a legislação trabalhista começou no início do século XX com normas isoladas reguladoras de questões específicas (descanso aos domingos, acidentes de trabalho, regime de jornada máxima de trabalho ou com a introdução do Código Comercial de alguns artigos dirigidos ao trabalho dependente).

Na década de 1940, o novo regulamento consistia na promulgação de Estatutos (leis especiais) que abrangiam certos setores (entre outros, os bancários, jornalistas, trabalho doméstico – indústria de roupas e calçados, particularmente – trabalhadores rurais e gastronomia).

Sua razão de ser resultava de alguma especificidade ostensiva exibida por uma atividade econômica, mas, fundamentalmente, respondia à ausência de uma legislação geral que trouxesse uniformidade aos regulamentos aplicáveis às relações individuais de trabalho.

Com a Lei dos Contratos de Trabalho (LCT, aprovada em 1974), um enorme avanço foi alcançado, salvando a estrutura fragmentada que denotavam as regulamentações trabalhistas e constituindo uma espécie de direito comum trabalhista, que proporcionou sistematicidade ao Direito do Trabalho e impôs mínimos irrevogáveis (garantias, direitos e obrigações básicas) que incluíam – e até prevaleciam sobre – os regimes estatutários em vigor na época.

Desde então, com poucas exceções que significaram melhorias substanciais nos Estatutos preexistentes, se abandonou por ser desnecessário recorrer a esse formato regulatório, usando os CCT – para complementar ou suplementar a lei geral – ou organizando incorporações específicas à LCT.

O teletrabalho não constitui uma “atividade” nem reconhece uma singularidade que exija um tratamento legal que justifique um Estatuto Especial. Nada mais é do que uma maneira de organizar o trabalho por parte do empregador ou uma modalidade contratual, se esse for o objetivo de uma contratação específica vinculada à discricionariedade patronal. A LCT contém regulamentos suficientes para cobrir qualquer uma dessas alternativas, que podem ser concluídas – mesmo por meios regulatórios – no que exige uma maior adaptação em vista do objetivo tutelar do Direito do Trabalho.

No entanto, é surpreendente que, das dezenas de Projetos de Lei inscritos na Câmara dos Deputados referentes a esse tópico, apenas um (o apresentado por Walter Correa e Vanesa Siley) se integre à LCT como um novo Capítulo do Título III (“Das modalidades do contrato de trabalho”).

Maior perplexidade provoca o Projeto de Lei elaborado pelo Ministério do Trabalho da Nação, com o título “Estatuto do Trabalhador de Plataformas”. É que, se para o trabalho à distância ou remoto não se justifica um Estatuto Especial, muito menos é neste caso em que, além disso, são colocados abaixo da faixa de proteção dos trabalhadores em geral.

Este último é observado em matéria de jornada de trabalho (que pode incluir sábados, domingos ou feriados como horário normal de trabalho); remuneração (tanto para o mínimo assegurado, quanto para a exclusão de gorjetas que, não sendo proibidas e geralmente recebidas, fazem parte do salário de qualquer trabalhador), bônus de Natal (pelo modo de calculá-lo), férias (por acordar-se com uma licença menor e não variar de acordo com os anos de tempo de trabalho, como a remuneração considerada durante esse período), licença médica (com um sistema de economias ridículas de quantias administradas pelo empregador, sem garantia de um período específico de licença remunerada, nem qualquer extensão devido ao tempo de trabalho ou encargos familiares); remuneração em caso de demissão (salário de um mês por ano de trabalho, mas sem considerar a “melhor, normal e usual” remuneração, e sim com base na média dos salários recebidos nos seis meses anteriores e sem direito a aviso prévio).

A leitura desse projeto, particularmente os títulos que o compõem, esclarece qualquer dúvida sobre a aptidão regulatória da LCT, além da possibilidade de sua extensão – como no caso do teletrabalho – sem afetar seu status de lei geral. A informalidade a que os chamados “trabalhadores de plataformas” estão sujeitos é uma consequência da operação empresarial viciada e fraudulenta, facilitada pela ausência de controle e supervisão estatal no interesse de que se respeitem os direitos trabalhistas violados.

O uso de plataformas digitais, algoritmos ou outras ferramentas tecnológicas não define uma categorização diferenciada das tarefas em que são aplicadas ou daqueles que são empregados. Que diferença existe entre um entregador de aplicativos ou plataformas digitais (qualquer que seja a denominação acordada) com um mensageiro ou entregador de mercadorias cujo empregador não usa essa tecnologia? O que distingue a equipe do Uber ou do Cabify de um motorista de táxi- que hoje também está ligado a algum sistema digital -?

Além disso, o que impediria o uso dessa tecnologia na contratação ou ocupação de trabalhadores temporários ou da construção civil para indicar suas atribuições de trabalho? Eles se tornariam “trabalhadores da plataformas digitais”?

Cadeias não tão virtuais

Superamos virtualmente o isolamento social para trabalhar, para entreter-nos à distância ou para estabelecer contatos não presenciais na tentativa de manter a “normalidade” perdida. As redes sociais e os múltiplos canais comunicacionais e tecnológicos nos ajudam, mas ao mesmo tempo nos sobrecarregam e angustiam porque representam esse isolamento que – razoavelmente – sentimos que nos separa de uma vida social real e essencial devido à nossa condição gregária.

Voltando a Saramago, no artigo mencionado anteriormente, ele diz: “Um grande filósofo espanhol do século XIX, Francisco de Goya, mais conhecido como pintor, escreveu um dia: ‘O sonho da razão gera monstros’. À medida que explodem as tecnologias de comunicação, podemos nos perguntar se monstros de um novo tipo não estão sendo gerados diante de nossos olhos. A propósito, essas novas tecnologias são elas próprias o fruto da reflexão, da razão. Mas se trata de uma razão desperta? No verdadeiro sentido da palavra “desperta”? Isto é, atenta, vigilante, crítica, teimosamente crítica? Ou de uma razão sonolenta, adormecida, que no momento de inventar, criar, imaginar, se desvia e cria, imagina efetivamente monstros? (…) A informação nos torna mais instruídos ou sábios somente se nos aproxima dos homens. Mas, com a possibilidade de acesso remoto a todos os documentos de que precisamos, o risco de desumanização aumenta. E o de ignorância”.

O devaneio com a tecnologia sem analisar em que medida isso nos favorece ou nos prejudica, sem prestar a devida atenção aos motivos e fins que incentivam sua expansão – inclusive, invasiva -, sem distinguir quanto ajuda ou não a construir um projeto comunitário, pode gerar “monstros do razão ” que nos acorrentem aos interesses de poucos e nos mantêm segregados, completamente isolados sem mediar um estado de exceção como o presente, projetando-se em um futuro de escravidão solitária.

Álvaro Ruiz é advogado trabalhista com experiência na assessoria de sindicatos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *