No país dos “bicos”, a oito euros à hora

Alemanha, 2013. Um país onde há subsídios para quem concluiu seus estudos e ainda não encontrou emprego, mas onde um em cada cinco trabalhadores possuem um “bico” de 450 euros. Um país onde tudo é planejado e cada um sabe quanto vai receber de reajuste sobre o salário atual, mas onde demora semanas ou mesmo meses para se conseguir conexão de internet em casa. Um país onde nem tudo que parece é.

Wanja Saatkamp recebeu a carta há três dias. É uma carta que chega todos os anos, mas, nos últimos tempos, Wanja dá-lhe mais atenção.

“É uma espécie de relatório anual do departamento de pensões”, que todos os trabalhadores recebem, todos os anos. não só os freelancers como Wanja, que é artista. “Dizia que neste momento descontei o suficiente para ter um reajuste de 88 euros por mês. Se continuo com o mesmo rendimento até à idade do reajuste, ou seja aos 65 anos, receberei 336 euros por mês.” Wanja suspira: “É uma verdade brutal, que chega em uma carta aparentemente neutra.”

“Posso sobreviver agora, mas depois não sei”, diz enquanto toma um café no Kotti, um café político típico de Berlim. Wanja diz que já vive bem com o que faz: “Procuro fundos para o que aprendi e o que sei fazer – música, teatro, filmes”; serão de 10 a 20 projetos por ano, conforme o tamanho e a duração.

“Há um ano ou dois, tornou-se óbvio que tenho de tomar uma decisão”, as cartas não a deixam esquecer. Wanja tem 38 anos. “Ou deixo Berlim ou deixo o setor da cultura.” Nenhuma opção lhe agrada. “Não quero ser pobre quando for mais velha”, continua, mas logo contrapõe: “Não quero fazer outra coisa, é isto que eu sei fazer e que gosto”, desabafa Wanja.

O pretexto da conversa era a sua vinda a Lisboa (é onde está agora) com a a banda performática do grupo de teatro Maiden Monsters para um projeto de investigação artística que tem como tema a crise econômica.

A abordagem desse projeto é um pouco “ingênua”, confessa. Mas é a que mais lhe agrada. “Aqui todos têm medo da crise, mas na verdade ninguém sabe nada sobre ela.” Com um carro-estúdio de som e vídeo, Wanja e as outras Mainden Monsters andarão dias pelas ruas de Lisboa para fazer tais perguntas ingênuas: “Queremos saber como é que lidam com a crise”.

Segundo Wania, na Alemanha tal crise não existe, “mas só à superfície; temos muitas pessoas pobres”, aponta. “E a desigualdade se acentua, com pessoas em trabalhos bons ganhando muito bem e pessoas em trabalhos precários ganhando muito mal.”

No centro da polêmica sobre a precariedade estão as reformas da Agenda 2010 de Gerhard Schröder, incluindo a famosa Hartz IV, que leva o nome de quem a a definiu, o diretor de recursos humanos da Volkswagen, Peter Hartz. Ele negociou uma redução de salários na empresa de automóveis para diminuir o desempreg e, por isso, foi o escolhido por Schröder para ajudar o país a mudar o panorama do trabalho.

A ideia por trás da reforma: tornar a vida mais difícil a quem recebe subsídio de desemprego (de longa duração), incentivando-os a encontrar trabalho. Não só o pagamento foi reduzido como as pessoas devem cumprir uma série de obrigações e pré-requisitos: provar que não possui patrimônio, por exemplo.

O que fazes? “Hartzen”

Juan Paulo Guzman pediu para seu nome ser alterado porque não quer que este artigo apareça numa pesquisa em mecanismos de busca da internet. Ele é um alemão de Aachen (perto da fronteira com a Bélgica e com a Holanda) de 27 anos, fotógrafo licenciado em Comunicação e Design. Recebe atualmente o subsídio, que tanto é dado aos desempregados de longa duração como a quem acabou de estudar, mas ainda não encontrou trabalho.

Juan Paulo Guzman acabou de se formar e recebe apoio enquanto não arranja emprego. Fotografia: Nelson Garrido
Juan Paulo Guzman acabou de se formar e recebe apoio enquanto não arranja emprego. Fotografia: Nelson Garrido

Ele elogia o apoio: “tenho noção de que outros países não o possuem”, diz. Mas também nota que não é tudo fácil como parece: “Você deve ir ao centro de emprego e mostrar todos os papéis e mais alguns, como extratos de conta dos últimos meses etc. Falta sempre alguma coisa. Verificarem todos os teus passos não é uma sensação boa”, comenta. “Por exemplo, tinha uma transferência de 350 euros da minha irmã, que me ajudou certa altura. Ela teve de escrever uma carta ao centro de emprego para dizer que tinha sido ela e justificar”, conta.

Entre ir buscar papéis da faculdade, da casa e de um apoio social anterior que recebeu para estudar, foram três semanas. Mas já está tudo tratado e desde julho recebe 390 euros de subsídio principal e 245 euros para pagar a renda de casa.

Agora deve provar que está à procura de emprego: “É preciso enviar entre cinco a dez candidaturas por mês, no meu caso são cinco.” O centro de emprego ajuda:  dá dois euros para cada candidatura enviada por e-mail e cinco para cada enviada por correio normal.

A cada duas a três semanas, Juan Paulo tem uma conversa com o seu consultor no centro de emprego, onde avaliam a estratégia de procura de trabalho. “Às vezes oferecem empregos de ‘treta'”, comenta. “Comigo ainda não aconteceu”, diz, aliviado. “Há pessoas que montam seus currículos um pouco pior para tentar escapar destes maus empregos”, conta, com um sorriso. O subsídio é renovável a cada seis meses. “Não sei bem quando acaba, conheço pessoas que estão recebendo há muito tempo”, diz. “Até há um verbo para isto entre os jovens. ‘O que estás fazendo?’, pergunta-se, ‘Hartzen’, responde-se”.

Tal gíria da resposta é uma referência ao Hartz IV, que permite a Guzman buscar trabalho como está fazendo agora: “Assim posso me concentrar em procurar emprego na minha área. Queria encontrar algo como assistente de fotografia. Posso pesquisar, adaptar as cartas a cada local etc. É quase um emprego”, brinca. “Se não existisse o subsídio, teria de ir trabalhar para um restaurante, ou café, e teria muito menos tempo para fazer isso”. Se dentro de alguns meses não encontrar emprego como assistente de fotógrafo, irá tentar na área de design.

Juan Paulo poderia ainda trabalhar ganhando até 160 euros e continuar a receber a totalidade do Hartz IV – mais do que isso, seria descontado do subsídio. Isso não é o que tenciona fazer no momento.

Algumas pessoas juntam esse subsídio com o chamado minijob, algo semelhante ao chamado popularmente de “bico” no Brasil, que já é uma instituição alemã, apesar de ter exatamente dez anos de existência: são empregos com um salário máximo de 450 euros, com valor baixo por hora (entre cinco a dez euros). Não é pago imposto e inclui seguro de saúde. Um número incrível de alemães, cerca de um em cada cinco trabalhadores, estão nesse regime.

Caminho ou beco sem saída?

Para Daniela Goller, 25 anos, o seu “bico” é o trabalho perfeito no momento. Está em uma loja de roupas em Mitte, no centro de Berlim, onde trabalha dois dias por semana por oito euros por hora. Não poderia trabalhar mais porque está estudando e não teria tempo. Os pais não podem lhe pagar as despesas com o curso e ganham 50 euros a mais do que seria possível para a atribuição do subsídio para estudantes sem capacidade econômica. Portanto, um “bico” foi a solução ideal.

Ela considera que é apenas temporário: “Ao escolher fazer isto, sei que estou enfrentando três anos sem dinheiro”, constata. “Mas depois devo ter um emprego, espero!”, diz rindo. “Ainda não sei exatamente em quê. Para já, estou gostando muito do que estou estudando, Alemão e Comunicação. Não me  preocupo com isso agora, felizmente há muitas alternativas.”

Tina Kühnel tem 26 anos, mas apesar da idade semelhante não podia ser mais diferente de Daniela. Recebe-nos na sua casa em Friedrichsain, onde vive com o marido, casados há duas semanas, o filho de 15 meses e um cão chamado Chef. Tina, que ainda estuda, já teve vários “bicos” nos últimos quatro anos, como cuidar de crianças, fazer limpezas num albergue de juventude e trabalhar como empregada em um hotel.

Juan Paulo Guzman acabou de se formar e recebe apoio enquanto não arranja emprego. Fotografia: Nelson Garrido

“Sem os ‘bicos’, não seria possível para muitas pessoas estudar”, diz. Ela recebeu dinheiro de apoio social, mas este não era suficiente. “E agora que sou mãe também é muito importante ter a hipótese do ‘bico’, até por causa da flexibilidade dos horários.”

Tina apressa-se no entanto a sublinhar uma coisa: “Nunca aceitei ‘bicos’ que pagassem menos de sete a oito euros por hora – e há muitos. Tenho uma prima que trabalhava num imbiss (loja de fast-food) por cinco euros por hora, chegava em casa com a roupa cheirando horrivelmente mal. Até agora, tive sorte, sempre fiz questão de escolher trabalhos que não fossem tão mal pagos e tenho conseguido.”

Torsten Rackoll, 32 anos, não trabalha em um “bico”, mas faz parte do grupo de alemães que tem dois trabalhos. Natural do Norte, é licenciado em Ciências de Desporto, por um lado, e Belas-Artes, por outro (ambas em Hamburgo). “Não é muito normal, mas o que é normal aqui na Alemanha?”, pergunta, meio trocista. Torsten reconhece que seus dois trabalhos acabam por ser a face destas duas opções de estudos tão diferentes. Um é um estudo sobre recuperação respiratória de doentes que tenham sofrido AVC no prestigiado hospital Charité, em Berlim, e que precisam de fisioterapia. O segundo trabalho é de rigger, ou seja, instalador de equipamento de luz e som em espetáculos, normalmente em cima de gruas ou pendurado nas alturas dos tetos.

“Por um lado, é a combinação perfeita”, comenta. “Um trabalho mental e outro físico.”

Mas a questão é que o primeiro trabalho do Charité é em um turno e lhe dá 1100 euros brutos, ou seja, cerca de 890 líquidos. Já seu segundo trabalho é freelance e bem pago. “Dependendo da negociação,  pode ser 200 euros por dia, brutos”, porém com muita variação sazonal. Assim, tem de trabalhar bastante para compensar a época de baixa. “Em julho, apenas consegui trabalhar um dia como rigger“, diz. “Agora, poderia trabalhar todos os dias se quisesse”.

Assim, apesar de gostar de seus dois trabalhos, uma coisa é clara: só o faz porque precisa mesmo ganhar dinheiro. “Estou bastante cansado porque no último mês só tive dois dias de folga e há quatro meses que tem sido assim”, conta.

Mas, apesar do presente cansativo, Torsten vê um futuro sem problemas: “Vou fazer o doutoramento no tema em que trabalho no Charité. E na área da recuperação de AVC haverá sempre bons trabalhos, se não for lá, será certamente em outro local”. Conclusão: “Daqui meio ano, não terei de me preocupar”.

Trosten não deixa de comentar que há muitos trabalhos mal pagos na Alemanha: “Fico doente quando me pedem oito euros por um corte de cabelo. Quanto é que o patrão vai pagar ao cabeleireiro? Estamos numa situação econômica muito boa, mas não para todos”, sublinha.

Há quem argumente que a flexibilização do trabalho, e em particular o modelo do “bico”, leva a uma precarização geral do trabalho, embora contribua para a diminuição do desemprego para a invejável taxa de 5,3%, segundo o Eurostat. Dos 7,4 milhões de alemães que possuem esse tipo de trabalho, um terço o tem como complemento a um primeiro emprego. Mas, para os outros dois terços, o “bico” é a única fonte de rendimento, e nem todos são estudantes.

O problema, dizem os críticos, é que o “bico”, embora atrativo como solução, é muitas vezes um beco sem saída e não um caminho para melhores empregos. O trabalhador não é incentivado a melhorar, nem o empregador é incentivado a oferecer outro tipo de contrato. Os críticos garantem ainda que esse tipo de trabalho contribuiu para a desigualdade social: segundo dados do Instituto do Trabalho citados pelo Wall Street Journal, entre 1999 e 2010, os salários mais altos viram aumentos na ordem dos 25% e os mais baixos de 7,5%, sendo que, nesse período, a inflação foi de 18%.

Tanto Tina como Daniela estão fora desse retrato do trabalhador de “bicos” sem opções. Ainda estudam, mas Daniela já tinha estado no mercado de trabalho “normal”. Estudou, teve emprego na sua área, publicidade, mas conta rindo que deixou “de conseguir aturar aqueles ‘snobs’ todos e as suas ideias geniais” e decidiu ir embora para viver em outro país.

“Queria trabalhar para algo que valesse a pena e aprender mais uma língua, que aqui é importante – inglês já praticamente não conta como uma língua estrangeira, todos falam.” Inscreveu-se numa ONG suíça e foi participar num projeto relacionado com dança, algo que faz desde os dez anos, na Nicarágua.

Formação à maneira alemã

O anterior curso de Daniela foi feito através de uma instituição alemã, o ensino dual, muito comum e invejado. Ela conta que tinha aulas teóricas duas vezes por semana na escola e o restante tempo era estagiando em uma empresa de publicidade. “Este sistema é ótimo. Éramos cerca de 30 pessoas, estávamos juntos nas aulas, mas em empresas diferentes. Trocávamos experiências e ouvíamos os problemas dos outros”, diz.

A formação dual é algo que está profundamente engendrado na sociedade alemã há muito tempo. A primeira lei a regulá-la foi em 1969. Por isso, Yorck Sievers, da Câmara de Comércio e Indústria da Alemanha, alerta contra as tentações de usar o ensino dual como um modelo “pronto para exportar”: “Nós aqui fazemos à maneira alemã, vocês terão de encontrar um modo próprio”, defende.

Também Diana Cáceres Reebs, responsável do BIBB, instituto responsável pela formação dual pela parte do Estado, diz que há alguns fatores para que a adoção deste modelo seja um sucesso: uma cooperação estreita entre Estado e empresas e envolvimento dos sindicatos e associações patronais; a aprendizagem é feita durante o processo de trabalho na empresa, para além da escola; os currículos são nacionais, de forma que um padeiro em Berlim tenha o mesmo currículo, número de horas etc, que um padeiro em Stuttgart; na empresa deve haver formadores qualificados; e deve haver uma investigação institucionalizada, como a que faz o BIBB, do contrário não há base para saber o que pode ser melhorado.

Na Alemanha, há cerca de 1,5 milhões de pessoas fazendo formação dual por ano para 344 profissões diferentes, que vão desde colocação de janelas a informática ou mídia, passando por mecânica de automóveis e padaria. No bolo do total de estudantes na Alemanha, cerca de 60% fazem a formação dual, 30% seguem carreira acadêmica e 10% outros tipos de formação. Apesar de ser muito respeitada, Sievers fala de uma tentação cada vez maior de os jovens procurarem cursos universitários. “Mas não podemos ter 90% de universitários, se não, vamos ter desemprego ou pessoas sobrequalificadas”, comenta. “E quem faz formação dual começa a ter mais dinheiro mais cedo, tem carro, família, férias”, defende.

Aliás, aponta Diana Cáceres Reebs, a partir do primeiro dia, os aprendizes assinam um contrato de trabalho, sendo pagos por tabelas que resultam da negociação entre associações patronais e sindicatos, diferentes conforme o ano de formação em que o aluno está.

Sievers repete que a chave da formação dual é o envolvimento das empresas na definição dos currículos e na formação de pessoal que irá ensinar os alunos. “O investimento assegura retorno, porque depois existem pessoas para fazer exatamente o que precisam”, sublinha. “Se não houvesse retorno, as empresas não iriam investir”.

Diana Cáceres Reebs insiste também nessa ideia, dizendo que o retorno para as empresas é praticamente assegurado e muitas vezes supera o investimento. O ponto principal, considera, é que as empresas vejam essa formação como um investimento e não como um custo ou um castigo. Nota ainda que a empregabilidade é de mais de 90% e que 66% dos aprendizes ficam nas empresas onde tiveram a formação.

Na Alemanha, em dois milhões de empresas, 455 mil, ou seja, um quarto, dão atualmente formação dual. Dessas, 70% a 80% são pequenas e médias empresas, segundo Diana Cáceres Reebs.

Ainda que seja algo que dá resultado, a Economist alerta para o simplismo de ver essa formação como a base para o bom desempenho econômico da Alemanha. Afinal, a formação dual também existia em anos de fraco desempenho econômico e desemprego mais alto da Alemanha. Em 2005, por exemplo, o país teve a maior taxa de desemprego desde 1933, cerca de 11,3%.

Pode-se dizer que a formação dual está no DNA alemão. Outra característica que associamos ao país é a produtividade e eficiência. Mas essas já não são o que eram.

Muitos pais enfrentam dificuldades ao buscar creches para os seus filhos . Fotografia: Nelson Garrido

Já há algum tempo que os economistas alertam para o problema da produtividade. Estimativas do Instituto de Investigação Econômica DIW, em Berlim, mostram que, nos anos 1990, o aumento de produtividade em relação à década anterior foi de 15%. Mas, nos anos 2000, a subida em relação aos dez anos anteriores foi de apenas 9,8%.

Torna-se claro que a Alemanha precisa não só melhorar sua produtividade como precisa também de mais pessoas, alerta Ferdinand Fichtner, economista desse instituto. O problema é agravado pela taxa de natalidade: 8,1 nascimentos por mil habitantes, uma das mais baixas da UE.

Mães mal vistas

E por que a taxa de natalidade é tão baixa na Alemanha? A média de 1,4 filhos por casal preocupa os políticos, que tentam medidas de incetivo à natalidade, como subsídios para os pais.

Na Alemanha, é normal que as mães tirem um ano de licença de maternidade após o nascimento do filho e que depois passem algum tempo trabalhando meio turno.

Há, claro, quem comece a trabalhar mais cedo, mas estas mães são por vezes mal vistas e há mesmo um preconceito contra as pejorativamente chamadas Rabenmütter, as “mães corvo”, que não cuidam bem dos filhos, como tais aves têm fama de fazer.

Julia, que prefere não se identificar, não se encaixa nesse estereótipo. Estamos em Prenzlauer Berg, que é um dos bairros com mais mães por metro quadrado. Enquanto arruma o saco do supermercado antes de equilibrar Jesper, o seu filho de três anos, na bicicleta, Julia conta que, para ela, funcionou bem o sistema previsto para as mães na agência de design onde trabalha como gestora de projetos. Fez a habitual pausa de um ano e retornou em regime de meio turno, 25 horas por semana. Como está previsto, ganhou durante o ano de pausa 65% do salário líquido e ganha isso também no regime de tempo parcial em que está agora.

“Para mim, pessoalmente, esse sistema funciona muito bem, porque a agência apoia. Mas tenho amigas que foram despedidas durante ou após a pausa, ou só lhes ofereceram horários completos no retorno”, diz.

Julia também fala que teve sorte e conseguiu uma creche onde se paga conforme o rendimento até aos 3 anos (no seu caso, entre 120 e 130 euros por mês) e que a partir dos 3 anos é de graça. Muitos pais possuem dificuldade em encontrar creches para os seus filhos, afirma.

Apesar de tudo ter corrido tudo bem com o primeiro filho, Julia diz que a carreira é um dos motivos para não pensar em ter um segundo. “Sair novamente mais um ano da agência poderia atrasar a minha progressão”, confessa. Mas há outros fatores: “Falta de espaço em casa, tudo é mais difícil de coordenar”.

Tina Kühnel, com quem falámos antes sobre os “bicos”, teve uma abordagem diferente em relação à maternidade: assumiu que quer dois filhos e resolveu começar mais cedo. Isso implica desafios: “bicos”, estudar, trabalhar e ser mãe. “A maioria das pessoas espera demasiado tempo”, diz.

O problema comum que Julia e Tina tiveram foi conseguir uma creche. Tina começou a procurar seis meses antes de o filho nascer e só quando o bebê fez dez meses é que teve a certeza de que teria um lugar. Foi duas semanas antes de o marido regressar ao trabalho em tempo integral (os pais também têm direito a redução de horário), em abril deste ano. É uma creche pública onde se paga conforme o rendimento e, como o marido é o único a trabalhar, pagam 60 euros por mês.

Estas divisões de pagamento para quem ganha mais ou menos são frequentes na Alemanha. Também há pagamentos diferentes para quem possui emprego e para quem está desempregado. Por exemplo: uma multa sui generis (para quem fizer sexo num parque, ou também para quem urinar em público em Berlim) é diferente para quem tiver emprego ou para quem for desempregado,170 euros no primeiro caso, 70 no segundo.

A sociedade está, no entanto, cada vez mais desigual. Um estudo da Fundação Bertelsmann indica que a classe média no país diminuiu de 65% em 1997 para 58% no ano passado. Ainda que alguns possam ter subido para a classe alta, a maioria desceu de nível de vida. O número de pessoas que estão em situação de pobreza ou no limite de pobreza aumentou em 400 mil desde 2005, primeiro ano de governo de Angela Merkel, para 12 milhões no ano passado, segundo Instituto Federal de Estatística. Estima-se ainda que entre 3 a 5 milhões vivam em pobreza escondida, demasiado orgulhosos para pedir ajuda, segundo dados do Instituto de Investigação de Emprego.

A Alemanha tem uma imagem de eficiência a toda a prova. Mas nem tudo é o que parece. Há indícios do contrário em pequenas coisas, como a dificuldade de conseguir conexão de internet em casa em Berlim: são semanas até que se ultrapassem as barreiras burocráticas. Isso na cidade das startups, das empresas digitais e num país que possui uma taxa 83% de penetração de internet, uma das mais altas da União Europeia.

Festa de família no aeroporto

Mudando de escala: uma série de obras enormes que estão dando problemas, demorando muito mais do que o esperado ou custando muito mais do que o previsto. Os casos mais gritantes são aeroporto de Berlim, a Filarmônica de Hamburgo e estação ferroviária Suttgart XXI, exemplos de fracassos estrondosos de planejamento e execução.

O aeroporto de Berlim é um caso especial. Neste momento, discute-se a data em que será possível anunciar quando o aeroporto entrará em funcionamento. “Em 25 de Outubro poderão dizer quando começará o aeroporto a funcionar?”, perguntava o jornalista do Frankfurter Allgemeine Zeitung em entrevista ao responsável pelo aeroporto, Hartut Mehdorn. “Não”, respondeu o responsável, “É uma pergunta muito importante, a resposta tem de estar certa”.

A insistência deve-se ao fato de o aeroporto ter sido anunciado com pompa e circunstância, previsto para  abrir em outubro de 2011. Porém, um ano antes, já haviam atrasado a data prevista. Foram anunciadas várias datas de abertura, nenhuma cumprida.

Juntou-se um catálogo de problemas, culminando na informação de que o aeroporto começaria imediatamente na data de abertura com a capacidade total de uso, o que não é recomendável. A situação chegou a tal ponto que que já havia quem sugerisse esquecer o aeroporto e fazer um novo desde o início.

No entanto, ele parece quase pronto: há estações para os automóveis, edifícios, grandes parques de estacionamento. Todos vazios.

As aparências são muitas vezes importantes. E nesse caso a Alemanha depende da imagem de eficiência nessas obras para exportar produtos de tecnologia. Daniel Lede Abal, um deputado do Partido Verde no Parlamento do estado federado de Baden-Würtemberg, diz que muitas vezes esses grandes projetos acabam por servir como modelos para exportação da tecnologia alemã. Ironicamente, nem sempre esses projetos precisam ser postos em prática para que tal aconteça. Lede Abal dá o exemplo de um comboio eletromagnético que ligaria Berlim a Hamburgo. O projeto andou para trás e para frente, gastou-se dinheiro, mas acabou engavetado. “Ainda assim, a Siemens vendeu esta tecnologia à China”, afirmou o deputado.

Enquanto não abre, o aeroporto proporciona visitas guiadas, pagas por quem quiser o visitar. E no fim-de-semana passado houve uma festa: dois dias em que os habitantes de Berlim e Brandeburgo puderam visitar o local.

Era uma “festa de família” e havia barracas de currywurst (cachorro com caril), cerveja, waffles e tudo o que era preciso para um dia ao ar livre. Havia atividades para crianças e visitas guiadas. A organização congratulava-se em ter recebido, apenas no sábado, cerca de 30 mil visitantes.

Famílias com crianças, pares de namorados de mãos dadas, pessoas passeando com cães, muita gente tirando fotos na placa com as letras gigantes BER, Muitos foram ver o novo aeroporto e aproveitar uma oportunidade, que poderiam não voltar a ter, de descer pela rampa de acesso, como dizia Anje, uma mulher com cerca de 30 anos. Um ambiente de festa, até que se coloca a questão: “O que aconteceu?” Ninguém sabe. Mas todos têm uma opinião forte: “Vergonhoso para todos, muito mau para Berlim”, diz.

“Ver-go-nhoso”, repete sílaba a sílaba um homem de meia-idade de bigode que não quis se identificar. “O que se passou aqui não condiz com a importância, os valores da Alemanha”.

Fonte: Público PT, com alterações
Texto: Maria João Guimarães
Data original da publicação: 22/09/2015

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