No governo Bolsonaro, combate ao trabalho escravo cai 57%

Sob o sol rigoroso da zona rural de Lassance, no norte de Minas Gerais, e o calor da queima de carvão, 25 homens trabalhavam sem água potável, banheiro, alimento ou pagamentos regulares.

Com idade entre 23 e 77 anos, também não tinham chuveiro e dormiam em barracos improvisados ao lado do fogo e do carvão. Esse era o dia a dia da carvoaria Fazenda Buriti, com seus 32 fornos e nove barracos, quando a força-tarefa de combate ao trabalho escravo do extinto Ministério do Trabalho chegou por lá, em junho do ano passado.

Enquanto a fiscalização acontecia, o agenciador da mão de obra — o “gato”, no jargão do Brasil que ainda escraviza — foi flagrado emitindo notas promissórias para os trabalhadores, pedindo que assinassem um “papelzinho”, que teria sido exigido pelos auditores fiscais. Naquele dia, os 25 trabalhadores foram resgatados: estavam claramente submetidos a um trabalho que mais parecia escravidão.

Também no ano passado, em maio, o então presidenciável Jair Bolsonaro empunhava o microfone em um evento em Brasília, com prefeitos e vereadores. Era pré-campanha e ele sonhava em subir a rampa do Planalto.

Tem gente do Ministério Público, do Judiciário, que entende que o trabalho análogo à escravidão também é escravo. Tem de botar um ponto final nisso. Análogo é uma coisa. E escravo é outra”, distinguiu.

Um ano depois, o governo comandado pelo autor da frase, apoiado por dez a cada dez ruralistas, reduziu em 57% o número de operações de combate ao trabalho escravo e cortou em um terço o orçamento da Secretaria de Trabalho.

Trabalho análogo ao de escravo, o termo criticado pelo então presidenciável, está de acordo com a Organização Internacional do Trabalho, está no Código Penal e embasa autos de infração do governo. Só pode ser usado para situações que reúnam elementos como violação de direitos fundamentais, risco à vida, jornada exaustiva, servidão por dívida ou trabalho forçado.

O cardápio é extenso e azedo — e todas as opções remetem ao Brasil que, ao menos na lei, deveria ter desaparecido em 1888.

De volta ao presente, entretanto, o Brasil de 2019 e o de 1888 guardam suas semelhanças. Também no ano passado, em junho, um mês após o presidente dizer que trabalho análogo à escravidão não era escravidão, duas pessoas foram resgatadas da Fazenda São João, em Goiás, cidade do estado homônimo — também após constatado que os extratores de areia eram, na prática, escravos.

Trabalhavam tirando areia de um rio turvo, o mesmo de onde bebiam água, sem qualquer equipamento de segurança, calçando chinelos, em meio a uma mata com cobras e outros animais peçonhentos.

O empregador justificou à força-tarefa de fiscalização que os funcionários estavam lá havia apenas dois meses. A falta de carteira de trabalho era porque o projeto de extração de areia estava em “fase experimental”.

Desculpas como essa dominam os 238 relatórios de fiscalização de 2018. obtidos pela coluna por meio da Lei de Acesso à Informação, e que compõem o terrível painel do trabalho escravo no Brasil rural e urbano — negado por Bolsonaro

Foi este país que viu despencarem neste ano as ações de combate. De janeiro a maio de 2019, foram 54 operações. No ano passado, foram 127 no mesmo período. Em 2017, foram 107.

Pelos números da Secretaria de Inspeção do Trabalho, nos cinco primeiros meses da gestão bolsonarista, 232 trabalhadores foram resgatados desse crime. No mesmo período do ano passado, foram 994 — 1.745 em todo o ano.

A cifra é maior do que em 2017, quando foram contabilizados 205 resgates de janeiro a maio. Em perspectiva, esse índice anual teve alta em 2018 pela primeira vez em cinco anos, mas ainda está distante dos recordes. Em 2007, por exemplo, mais de 6 mil pessoas foram resgatadas dos locais onde eram exploradas.

A necessidade de cortar gastos foi dura com o combate ao trabalho escravo. Com o orçamento congelado, a Secretaria do Trabalho dispõe de R$ 186 milhões para 2019. No ano passado, operou com R$ 224 milhões — e Michel Temer também havia imposto cortes.

As ações de fiscalização, que incluem o combate ao trabalho escravo, também foram atingidas pela tesoura: R$ 550 mil a menos de R$ 10,5 milhões, deixando R$ 10,1 milhões. Em 2018, o cofre dessa área tinha R$ 13 milhões. O Ministério da Economia não informa se há previsão para desbloquear essas verbas, mas garante que, “até o momento”, não houve prejuízo às operações.

Maurício Krepsky comanda desde 2017 a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, que pertence à Secretaria de Inspeção do Trabalho, agora subordinada ao Ministério da Economia, de Paulo Guedes. Perguntado sobre a queda de operações e de resgates de trabalhadores, Krepsky também afirmou, a exemplo do ministério, que não houve impacto. Mas, ao descrever como convive com o corte de gastos, os fatos traem a versão.

A gente não desloca o grupo móvel para um lugar que não seja realmente necessário. Se em determinado momento não tiver informação com indício de trabalho escravo, não fazemos operações para cumprir tabela”, afirmou.

Mas o próprio Krepsky lembrou episódios como a denúncia de que venezuelanos eram explorados em Roraima. As informações que chegaram à Divisão de Fiscalização eram restritas, mas a chance de que houvesse trabalhadores explorados era tão grande que a operação ocorreu. Não deu outra.

A falta é de orçamento e também de braço. Segundo Krepsky, o Brasil tem 2.300 auditores fiscais, e o ideal, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de cinco anos atrás, considerando a população economicamente ativa, seriam pelo menos 8 mil. E admitiu que o desafio de combater o trabalho escravo tem crescido. “Antes, a fiscalização era predominantemente rural. Hoje há tráfico de pessoas, trabalho escravo em confecções de grandes empresas, exploração sexual. Temos de nos atualizar.”

O plano de governo de Bolsonaro também previa atualizações — mas para flexibilizar o combate ao trabalho escravo. Prometia retirar da Constituição a previsão de que o Estado tomaria propriedades flagradas empregando trabalho escravo. Ainda não o fez.

Na semana passada, em meio à guerra contra a participação da sociedade civil no governo, Bolsonaro cortou pela metade o tamanho da Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), que tem o objetivo de traçar e fiscalizar um plano nacional de combate. Até então, o colegiado tinha 18 assentos, incluindo seis ministros e até nove representantes de ONGs. Hoje, as vagas caíram para oito, mas sem ministros e com até quatro representantes da sociedade civil.

No site do Ministério dos Direitos Humanos, onde antes havia informações para contato com a comissão de combate ao trabalho escravo, agora só resta um XXXXX — só não se sabe se por desorganização ou descaso mesmo.

Em nota, a Secretaria de Trabalho negou a redução do combate ao trabalho escravo. “A maioria das ações iniciadas em 2019 ainda está em andamento“, disse o órgão, afirmando que a análise de dados de janeiro a maio feita agora é “parcial” e só poderá ser consolidada no segundo semestre, quando os números de operações aumentarão para o período.

Fonte: Pragmatismo Político, com Época
Texto: Guilherme Amado
Data original da publicação: 05/07/2019

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