Na pandemia, a trabalhadora doméstica é forçada a colocar a saúde em risco para não ficar sem dinheiro. Entrevista especial com Luiza Batista, da Fenatrad

Luiza Batista, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). Fotografia: Luiza Batista/Arquivo pessoal

por Igor Natusch

Para as trabalhadoras domésticas, a pandemia do coronavírus surgiu para multiplicar riscos e vulnerabilidades. Por um lado, muitas (em especial as que não atuam com carteira assinada, que somam 70% da categoria segundo o Dieese) se viram confrontadas com o desemprego e/ou uma súbita redução de renda; por outro, as que seguem trabalhando acabam muito mais expostas ao risco de contaminação – inclusive diante de empregadores que, mesmo desenvolvendo sintomas da Covid-19, exigem a presença das trabalhadoras em suas casas. Some-se isso à realidade de remuneração baixa, jornadas exaustivas, exposição a situações de violência no local de trabalho e escassez de espaços de convivência, e o resultado são meses extremamente difíceis e angustiantes para as mais de 6 milhões de trabalhadoras (em sua esmagadora maioria mulheres) que realizam trabalho doméstico no Brasil.

Em conversa com o Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, a presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Luiza Batista, traz sua visão sobre as muitas dificuldades que recaem sobre as trabalhadoras domésticas no Brasil – exacerbadas, é claro, pelo situação de risco sanitário e descaso governamental criada pelo novo coronavírus. Trabalhadora doméstica aposentada de 64 anos, Luiza também conhece outro aspecto recorrente no universo das domésticas: a dificuldade de representação sindical. Sem as fontes de renda reconhecidas para outras categorias, os sindicatos precisam se virar – o que se aplica também às próprias trabalhadoras, de tal forma que as aposentadas se tornam ampla maioria nas direções.

DMT – As trabalhadoras domésticas, como sabemos, enfrentam uma série de precariedades, como baixa remuneração, alta incidência de assédio moral e um grau elevado de informalidade. Em um cenário já bastante difícil, qual tem sido o impacto da pandemia do coronavírus?

Luiza Batista – A situação das trabalhadoras domésticas no Brasil sempre foi muito dura. Mesmo com mais de 45 anos de um direito conquistado, como o registro na carteira de trabalho, nós até agora não atingimos 40% de trabalhadoras com carteira assinada. Em um momento de pandemia, a situação se complicou ainda mais, porque aqueles empregadores que estavam com trabalhadoras sem carteira assinada em suas casas não puderam fazer uso da Medida Provisória nº 936 para afastá-las (temporariamente). O que coloca a questão: ou demite, ou pressiona a trabalhadora para que ela tenha que ficar na casa onde trabalha, indo para sua própria casa apenas uma ou duas vezes por mês, sob a alegação de que ela não pode ficar se expondo. Por um lado, a trabalhadora deveria estar em sua casa, de quarentena, visto que o trabalho doméstico não é visto como essencial; por outro lado, infelizmente, ela se vê forçada a se submeter às ordens do empregador para não ficar desempregada. A situação, então, é a pior possível.

DMT – Quais têm sido as denúncias mais comuns recebidas por vocês nesse período de pandemia?

Luiza Batista – As denúncias mais comuns têm a ver justamente com essa situação que mencionei, de não poder ficar com contrato suspenso. Além do mais, aquelas que trabalhavam até duas vezes por semana não têm, pela lei, vínculo empregatício, apesar de que a Fenatrad entende que até quem trabalha um dia por semana deveria, sim, ter um contrato assinado com salário. Outras categorias têm, mas é só conosco que isso é a partir de três dias (por semana). Então, as reclamações mais comuns têm a ver com essas duas situações: a que trabalhava até dois dias e ficou sem nenhuma renda, e as que trabalham sem carteira assinada e se veem pressionadas a ficar o tempo todo no local de trabalho.

DMT – Essa necessidade de obter dinheiro para se sustentar, que a senhora mencionou, acaba se encontrando também com a pressão para que não parem de trabalhar – que não vem apenas dos patrões, mas também dos próprios governos. Em Belém (Pará), por exemplo, chegaram a colocar o serviço doméstico como “atividade essencial” durante a pandemia – o que, na prática, obrigava as trabalhadoras a correr riscos. Como a senhora vê esse tipo de situação, essa necessidade de correr riscos para não ficar sem dinheiro?

Luiza Batista – Exatamente isso que você disse, para não ficar sem dinheiro, não é? Porque a maioria têm filhos, são chefes de família, o companheiro muitas vezes está desempregado. O dinheiro que as domésticas conseguem trabalhando acaba sendo o que paga o aluguel da peça de dois cômodos onde moram com os filhos, que paga as contas, alimenta. Por conta disso, elas se veem obrigadas a aceitar a imposição dos empregadores, e muitas trabalham mesmo com os empregadores infectados pela Covid-19. Em Nova Iguaçu, a companheira que é presidenta do sindicato das trabalhadoras domésticas do município recebeu denúncia de que um empregador trancou a porta de casa – trancou mesmo, à chave, dizendo que não ia deixar sair e que a trabalhadora não iria voltar para casa. Ela precisou pedir ajuda, e o sindicato teve que intervir, que articular para que essa trabalhadora pudesse retornar para sua própria casa.

Tivemos também os decretos de lockdown. No Pará, o item 58 colocava o trabalho doméstico, inicialmente, como atividade essencial. O Rio Grande do Sul teve um decreto bem confuso. No Ceará, o decreto também foi de que o trabalho doméstico é uma atividade essencial, no Maranhão aconteceu a mesma coisa, a redação dava a entender que o trabalho doméstico era essencial. Um dos itens (do decreto no Maranhão) dizia que atividades de limpeza e conservação eram consideradas essenciais, realizadas em ambientes públicos, privados, condomínios e residências. Então, quando é colocada essa palavra ‘residência’, é como se estivesse colocando o trabalho doméstico na lista. Dos estados que decretaram lockdown, até aqui, o único que deixou o trabalho doméstico de fora das atividades essenciais foi Pernambuco. Então, muitas trabalhadoras seguem trabalhando, mesmo com riscos, e aí seria importante o empregador ter o bom senso de oferecer um transporte alternativo, um horário diferenciado e disponibilizar o equipamento de proteção individual, a máscara, o álcool gel para a trabalhadora carregar na bolsa e usar no transporte coletivo… Enfim, tudo que fosse necessário para que a trabalhadora corresse o mínimo de risco possível.

DMT – E o auxílio emergencial? Como está sendo para as trabalhadoras domésticas a obtenção desse dinheiro? Como a Fenatrad avalia, de forma geral, as ações do governo federal durante a pandemia?

Luiza Batista – Nós, enquanto entidade, não temos nem como avaliar. De início, o governo queria dar somente R$ 200,00, então foi necessária toda uma movimentação de deputados comprometidos com a classe trabalhadora que conseguiu elevar esse valor para R$ 600,00. Ao mesmo tempo, teve essa questão de fazer o cadastro para o recebimento por meio de um aplicativo de celular, o que dificultou o processo para muitas trabalhadoras. Infelizmente, ainda é uma tristeza ver que muitas trabalhadoras domésticas, muitos trabalhadores informais, muitas pessoas realmente necessitadas ainda não conseguiram receber esse auxílio emergencial, enquanto pessoas sem qualquer necessidade, que vivem muitíssimo bem, tiveram a cara de pau de se inscrever e acabaram recebendo, o dinheiro foi direto para a conta. Então, achamos que o cadastro deveria ter sido feito com maior fiscalização, e não foi. Além do mais, a situação é de que ninguém sabe quais são os critérios. Muitas perderam os postos de trabalho, tiveram que entregar o lugar onde moravam e agora estão morando com parentes, estão dependendo de ajuda e não receberam ainda. É muito complicado. O governo federal tomou essa iniciativa do auxílio emergencial, assim como tomou a iniciativa da medida provisória 936, que permite a suspensão total ou parcial do contrato de trabalho – o que não seria o ideal, mas, diante dessa situação de pandemia, acabou permitindo que muitos trabalhadores não perdessem completamente a renda. São medidas importantes, mas que deveriam ser melhor fiscalizadas.

DMT – A sindicalização entre as trabalhadoras domésticas, como sabemos, ainda é baixa. Fica muito mais difícil enfrentar as fragilidades aumentadas pela pandemia, na medida em que tão poucas trabalhadoras estão sindicalizadas? Como enfrentar esse desafio e garantir que a lei atenda mais e mais mulheres?

Luiza Batista – A sindicalização entre as empregadas domésticas sempre foi muito baixa, em relação à grande quantidade de trabalhadoras e trabalhadores existentes. Além de tudo, tem a dificuldade de que nós não temos, como em outras categorias, o desconto em folha. Antes da reforma trabalhista, havia o imposto sindical para todas as categorias de trabalhadores, menos para a empregada doméstica – que é aquele imposto no qual é descontado um dia de trabalho uma vez por ano, geralmente nos meses de março e abril. Atualmente, se o trabalhador deseja contribuir, ele avisa a empresa e ela realiza o desconto já na folha e repassa para o sindicato. Nós, representantes dos trabalhadores e das trabalhadoras domésticas, nunca tivemos esse tipo de desconto. A contribuição geralmente é voluntária, ou seja, a trabalhadora tem que ir ao sindicato pessoalmente e pagar. Quando a Lei Complementar nº 150 foi aprovada e entrou em vigor, nós acreditamos que o desconto seria feito naquelas trabalhadoras que estivessem trabalhando de carteira assinada, e isso não ocorreu. Em 2017, quando a reforma trabalhista foi aprovada, ainda havia a perspectiva de que esse desconto pudesse ser aprovado e repassado para os sindicados, e isso não ocorreu. Então, isso dificulta muito as nossas atividades, nós trabalhamos muito limitadas.

Diante disso, a gente faz essas campanhas. A doação de cestas básicas que estamos fazendo para as trabalhadoras domésticas é tudo por meio de arrecadação. A campanha mesmo que temos no site da Fenatrad e em várias páginas de parceiros, que inclusive muitas pessoas têm compartilhado, é que a própria pessoa entregue sua doação no sindicato que nós fazemos a entrega para a trabalhadora necessitada. Antes, a gente faz o mapeamento daquelas trabalhadoras que estão desempregadas, porque as que estão trabalhando ao menos têm algum recurso. Quando o sindicato vai fazer a distribuição de cestas básicas, não tem aquela questão de só entregar para as que são sindicalizadas. O entendimento da federação é que aquela trabalhadora que foi no sindicato, que pediu uma informação, que está desempregada… Pegamos o contato e, quando conseguimos alguma cesta, a gente lembra daquela trabalhadora. Porque aquelas que estão trabalhando, se não estão sindicalizadas, nem vão no sindicato, a gente nem toma conhecimento do endereço ou do telefone. E aquelas que são sindicalizadas a gente conscientiza que elas têm sim o recurso, o salário mensal. Então a gente concentra as campanhas de cestas básicas naquelas trabalhadoras que estão desempregadas, que trabalhavam com diária antes da pandemia e que agora estão em uma situação difícil.

Enfrentar todos esses desafios, sem recursos financeiros, você há de convir que é muito complicado, que é muito difícil fazer prosperar. A nossa luta é mais antiga que a CLT. Já em 1936 a Laudelina Campos de Melo fundou a primeira fundação de trabalhadoras domésticas em Santos (SP). É a terceira maior categoria de trabalhadoras e trabalhadores do país e, mesmo assim, nunca tivemos o imposto sindical ou o desconto em folha. Nossa luta sempre foi e segue sendo apoiada pela Igreja Católica e pelos movimentos sociais. E vamos fazendo campanhas de arrecadação e doação, criando projetos… E o pouco que se arrecada é justamente para que a gente possa trabalhar dentro dos sindicatos.

DMT – Diante de todas essas dificuldades impostas que a senhora mencionou, quais têm sido as opções de sustentação econômica das entidades sindicais do setor?

Luiza Batista – A gente arrecada recursos fazendo rifas. Aquela pessoa que tem um eletrodoméstico e tem condições de doar, a gente faz a rifa daquele objeto e o dinheiro arrecadado é usado para pagar contas do sindicato. Fazemos bingo, e é a mesma coisa. Fazemos feijoada… A gente consegue os ingredientes com doações e até mesmo (a partir de investimento) da direção, que se cotiza, cada um compra um item e marca um dia para fazer a feijoada e vender. Só que alguns sindicatos têm uma sede tão pequena que não dá para receber um bom número de pessoas, e alguns sindicatos são em áreas que… Para se fazer uma feijoada, geralmente se escolhe um sábado ou um domingo, e aí a área não é muito boa para você estar em um final de semana, porque fica muito deserta e as pessoas ficam com receio de ir. Então, mesmo com essas situações que dificultam, a gente procura trabalhar dessa forma, e fazendo projetos também.

Há também a questão da trabalhadora que não é filiada e que vai ao sindicato, à sede da federação. Quando ela vem até nós para fazer os cálculos (de rescisão), a gente pede uma contribuição. Muitas dizem que não tem, e jamais vamos chegar para uma trabalhadora e dizer ‘então, você volta outro dia, porque se você não tem a contribuição a gente não faz’. Não podemos fazer isso. Se você não tem a contribuição, é atendida do mesmo jeito. Vai fazer os cálculos, vai levar para o empregador e, se o empregador disser que não paga, ela volta ao sindicato e aí se encaminha a questão à Justiça, para que a trabalhadora receba os valores nos cálculos da rescisão. Geralmente os cálculos são feitos para aquelas trabalhadoras que não trabalham com carteira assinada, porque as assinadas têm o e-social e o próprio sistema calcula o valor. Como a reforma trabalhista desobrigou as rescisões de serem feitas no sindicato, o empregador que vai ao sindicato é porque entende que, em uma rescisão feita no sindicato, a trabalhadora vai receber exatamente o que tem direito por lei. Isso não significa que vão contribuir com o sindicato: o que eles querem é uma segurança própria, para que não haja reclamações posteriores. Mas alguns (empregadores) que vão acabam deixando alguma contribuição. Outros não, e aí, mais uma vez, o sindicato não pode chegar e dizer que então não vai fazer a rescisão.

(Além disso), a lei não nos garante a liberação da direção. Em outras categorias, se o trabalhador vai para o sindicato, a empresa tem que liberar, e continua pagando o salário daquele trabalhador, porque dirigente sindical não recebe salário pelo sindicato. No caso do trabalhador doméstico, isso não é permitido, e o empregador não vai liberar (por conta própria) aquela trabalhadora para estar dentro de um sindicato e ele pagar outra para fazer o seu serviço doméstico. Isso dificulta muito também a atuação. As que ficam no sindicato são as que geralmente já estão aposentadas, que dispõem de tempo para estar no sindicato. As que não são aposentadas precisam trabalhar, inclusive para garantir sua própria aposentadoria no futuro. Elas fazem de tudo para ajudar, mas de uma forma que não prejudique o horário de trabalho delas.

DMT – E como driblar isso tudo, e garantir que as trabalhadoras domésticas na ativa possam se engajar nas disputas promovidas pelos sindicatos?

Luiza Batista – A maioria dos sindicatos faz reunião no segundo domingo do mês, ou no sábado à tarde, uma vez por mês. O nosso aqui em Pernambuco sempre faz no segundo domingo – não estamos fazendo por conta da pandemia, mas assim que a curva da contaminação esteja em baixa e seja permitido, vamos retomar, com todas as precauções. Porque é o tempo que a trabalhadora que trabalha durante toda a semana tem de ir ao sindicato e procurar se informar dos seus direitos. Mesmo porque o trabalho doméstico tem muitas dificuldades, muitas especificidades, e a lei para a gente, justamente porque trabalhamos em um ambiente privado, é até mais difícil de se fazer cumprir. A gente pode receber uma denúncia e encaminhar para a Delegacia Regional do Trabalho, que vai notificar o empregador para que ele compareça, marcando dia e horário para se explicar sobre a denúncia, mas o sindicato mesmo não pode ir nas residências. O que é diferente de uma empresa, que o respectivo sindicato recebe a denúncia do trabalhador e o próprio sindicato vai lá junto com a Delegacia Regional do Trabalho. No nosso caso, a gente não pode, e as denúncias que a gente recebe ficam, muitas vezes, sem comprovação, porque a gente não pode verificar o que ocorre.

DMT – Como a senhora avalia, até o momento, a aplicação da Lei Complementar nº 150 de 2015, a Lei das Domésticas? Em quais pontos é necessário dar um passo além?

Luiza Batista – A lei foi uma luta nossa, da federação e dos sindicatos, na gestão da companheira Cleusa Maria Oliveira. A Lei Complementar nº 150 é boa, mas o entendimento dos empregadores é complicado. Como sabemos, a assinatura da carteira tem 47 anos, e ainda não temos 40% de trabalhadores e trabalhadoras com registro em carteira. Daí já mostra a falta de comprometimento da sociedade em respeitar a lei. E isso se dá porque não existe uma punição.

Claro que a gente pensa no futuro, porque em uma conjuntura como a que o Brasil vive, e com um governo que não dialoga e só pauta retrocessos para a classe trabalhadora… Se temos algumas avaliações sobre a lei, no sentido de que ela não nos contempla? Temos, sim. Na questão do seguro desemprego, por exemplo, as outras categorias têm direito a cinco parcelas, dentro do teto permitido no salário que aquele trabalhador ganhava; para nós, não é assim. Existem casos de trabalhadoras com contrato de R$ 1.500,00 ou R$ 2.000,00 na carteira, mas que, quando são demitidas, recebem apenas três parcelas no valor do salário mínimo nacional. Isso é algo muito desigual. Há também a questão dos atestados médicos, que têm gerado confusão sobre quem paga (entre empregadores e INSS). Então, são coisas que precisam ser vistas dentro da lei, e que a direção entende que precisa buscar, sim, uma revisão. Mas, diante da realidade que estamos vivendo, por enquanto é melhor não mexer, deixar como está. Isso é coisa para o futuro.

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