Mundo do trabalho na África do Sul: Entrevista com Sakhela Buhlungu

por Elisa Torelly

Congressista do Seminário Internacional de Sociologias do século 21, realizado entre os dias 28 e 30 de novembro passado em Porto Alegre, Sakhela Buhlungu, professor de sociologia na Universidade de Pretória, na África do Sul, concedeu uma entrevista exclusiva ao DMT.

Buhlungu falou para uma plateia de estudiosos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sobre a trajetória da Sociologia em seu país. O pesquisador salientou que a disciplina chega aos 100 anos na África do Sul colocando em debate a colonialidade do conhecimento e difundindo as suas próprias percepções da sociedade. Entre os principais desafios do país – a serem enfrentados pelas novas gerações de sociólogos –, estão as desigualdades raciais, de gênero e do mundo do trabalho.

O sociólogo sul-africano tem entre suas publicações mais recentes os livros COSATU’s Contested Legacy: South African trade unions in the second decade of democracy(“O legado impugnado do Congresso dos Sindicatos Sul Africanos: sindicatos sul-africanos na segunda década de democracia”, 2012) e From Compounded to Fragmented Labour: Mineworkers and the Demise of Compounds in South Africa (“Do trabalho combinado ao fragmentado: os mineiros e o desaparecimento do trabalho combinado na África do Sul”, 2011).

DMTComo o senhor descreveria a atuação dos sindicatos e da organização dos trabalhadores na África do Sul?

Sakhela Buhlungu – A África do Sul é um país onde se desenvolveu uma longa história de escravidão e de uma relação colonial opressiva. Este processo limitou o desenvolvimento de organizações de trabalhadores. O movimento sindical de lá tem mais de cem anos de história. O primeiro sindicato foi criado no século XIX, e começou com a inserção de entidades representativas de trabalhadores britânicos, mas apenas de brancos. No século XX é que começou a haver sindicatos de empregados negros. Apenas recentemente, em 1979, passamos a contar com uma legislação trabalhista que estabelece direitos iguais para trabalhadores brancos e negros. Até então, apenas os primeiros tinham, em certa medida, alguma proteção e liberdade de associação. Aliás, cabe destacar que tais entidades – que representavam apenas trabalhadores brancos – tinham uma relação muito próxima com o Estado, enquanto os negros faziam oposição aos governos, sendo fortemente reprimidos. Em 1979, a economia cresceu, os trabalhadores negros passaram a lutar ainda mais pelo reconhecimento de seus direitos e os representantes do Estado se viram obrigados a atender algumas dessas reivindicações. Apenas nesse momento é que a legislação passou a ser a mesma para brancos e negros, e a liberdade de associação passou a ser uma garantia de todos. Em 1995, após a queda do apartheid, houve uma revisão da legislação trabalhista, com inúmeras melhorias, relacionadas, por exemplo, com o direito de greve e a organização sindical.

Atualmente, os sindicatos são mistos, com brancos e negros, e extremamente militantes. Devo dizer que a liberdade de associação não enfrenta grandes problemas, já que os governos têm respeitado a autonomia dos sindicatos. De outro lado, existe um novo dilema: as entidades se tornaram tão “grandes”, que o processo democrático interno se tornou problemático. Os líderes, muitas vezes, posicionam-se contrariamente aos interesses da base, gerando um clima de intensa insatisfação entre os trabalhadores, que deixam de se sentir representados. Nesse contexto, vêm ganhando força, principalmente entre mineiros e trabalhadores rurais, os movimentos espontâneos de trabalhadores, que se dão independentemente dos sindicatos. Em agosto passado, houve um incidente que se tornou mundialmente conhecido: a polícia abriu fogo contra 34 mineiros que protestavam na mina Marikana, localizada no noroeste do país. Essa tragédia ocorreu durante uma manifestação que se realizava sem qualquer relação com as entidades que, pelo menos em tese, representam esses trabalhadores. São movimentos paralelos que crescem na medida em que alguns sindicatos não possuem espaços democráticos que garantam a participação dos trabalhadores, com distanciamento claro entre os interesses de algumas lideranças e a base da categoria.

DMT – As organizações sindicais possuem independência em relação ao Estado ou são objeto de algum controle?

Sakhela Buhlungu – As organizações de trabalhadores possuem relação com o governo na medida em que dele recebem recursos para a sua manutenção. Ademais, devem respeitar a legislação no que diz respeito a manifestações, paralisações e movimentos reivindicatórios. Uma das poucas exigências governamentais é o registro das entidades sindicais. Deve-se mostrar ao governo quantos membros têm o sindicato, quantos “escritórios”, e apresentar relatórios anuais sobre as finanças da entidade. De resto, o que se tem é a obrigatoriedade de observância de parâmetros mínimos. Por exemplo: se a categoria vai entrar em greve, deve haver uma assembleia, e se deve seguir um procedimento. Uma vez aprovada a greve, não há maiores limites. Se a greve for abusiva, o empregador vai à Justiça para contestá-la. O Estado, de qualquer forma, não tem muita capacidade de controle. Basicamente, contudo, é possível dizer que a relação do Estado com os sindicatos tem sido amistosa. Há muitos antigos líderes sindicais que atuam em nome do governo, nos setores que regulam as relações de trabalho.

DMT – Quais são as categorias de maior peso entre os trabalhadores sul-africanos?

Sakhela Buhlungu – A categoria mais forte é a dos mineiros. É a maior e está ligada à principal e mais histórica atividade econômica do país ao logo de décadas, que foi a exploração de ouro (hoje com muito menos intensidade) e, agora, da platina. Como decorrência lógica, os sindicatos desta área se apresentam como os mais importantes politicamente. A segunda categoria ou setor da economia com mais força de representação dos trabalhadores é o setor metal-mecânico, especialmente ligado à indústria automobilística. Nas entidades representativas dessa categoria, historicamente, é possível notar uma orientação socialista de maior vigor. Em terceiro lugar está o setor público, com uma grande massa de servidores. Essas são as três categorias mais importantes política e economicamente.

DMT – Como é a organização político-partidária no país?

Sakhela Buhlungu – A África do Sul possui um sistema político muito particular, muito específico. As grandes organizações partidárias são o Congresso Nacional Africano (partido de Nelson Mandela), a Aliança Democrática (oposição de direita), o Partido Nacional e o Movimento de Resistência Africaner.

O CNA, definitivamente, é o partido mais forte, e faz dois terços dos votos nas eleições nacionais. Atualmente, pode-se dizer que a Aliança Democrática é um partido pequeno de oposição; em certa medida, uma nova versão do Partido Nacional, pois é formado por defensores dos privilégios de uma minoria rica e branca. A manifestação mais forte de uma orientação à esquerda se dá mesmo é nas organizações de trabalhadores, ou seja, fora do espectro partidário. É nesse ponto que os sindicatos e as centrais sindicais ganham destaque. É um fenômeno interessante: a maior parte das organizações sindicais é vinculada ao partido do governo. Ao mesmo tempo, nas pautas que essas entidades defendem é que se expressa uma efetiva oposição de esquerda.

DMT  Qual o cenário de desemprego atualmente na África do Sul?

Sakhela Buhlungu – A situação do desemprego na África do Sul é dramática. Existem duas formas de medição: uma que abrange também as pessoas empregadas, mas que estão procurando emprego, e outra mais restrita, que abarca apenas os efetivamente desempregados. De toda sorte (seja a partir da aferição restrita, seja da mais ampla), pesquisas indicam que entre 30 e 40% da população economicamente ativa estão desempregados e lutam pela sobrevivência. O maior número de desempregados se concentra entre jovens, trabalhadores da área rural e mulheres. Os sindicatos estão em campanha por criações de mais postos de trabalho. Agora, o governo tem dado incentivos para as empresas contratarem jovens. Os sindicatos são contra essas medidas, porque temem que isso tire os postos de trabalho dos empregados com mais idade. As entidades creem que isso só vai transportar o problema para outra faixa etária, além de simplesmente financiar as empresas sem efetivamente lidar com a questão.

DMT – Qual o nível salarial dos trabalhadores e a sua relação com a qualificação dos empregados? Quais os setores que mais absorvem mão de obra?

Sakhela Buhlungu – Os piores salários estão nos setores rural e doméstico. Nas minas, também pagam pouco. Em alguns setores da mineração, isso varia conforme a qualificação, mas como tem muitas pessoas com pouco preparo, os salários, em geral, são baixos. A maior absorção de mão de obra se dá nas minas, que requerem grande quantidade de trabalhadores. No turismo e na hotelaria, também tem havido mais postos de trabalho, mas com salários baixos. O mesmo pode ser dito com relação ao setor de segurança privada.

DMT – Como são reguladas as relações de trabalho, especificamente as questões salariais? Como são realizadas as negociações?

Sakhela Buhlungu – Há três modelos no nosso sistema. Aquele das pessoas que não têm sindicatos falando em seu nome, ou seja, as categorias mais fracas, como os trabalhadores rurais e os domésticos. A elas, o Estado simplesmente fixa um salário mínimo. Há um segundo modelo, das negociações específicas com cada empresa, de forma difusa, e não centralizada. Nesse formato, os sindicatos participam, mas de forma não centralizada. A modalidade dominante, contudo, é a terceira, da negociação centralizada, com o sindicato negociando em nome do setor inteiro. Nesse formato, uma vez “fechada” a negociação, as regras se aplicam a todo o setor. Eu diria que os sindicatos têm bastante força nas negociações, na conquista de maiores salários e de melhores condições de trabalho, mas a impressão que se tem é que os trabalhadores sempre pensam que poderia ser melhor.

DMT – Hoje o Brasil vive o que há poucos anos viveu a África do Sul: as movimentações referentes à organização da Copa do Mundo, a se realizar em 2014. É possível dizer que sediar esse campeonato gerou algum efeito positivo ao país? Quais as repercussões no mundo do trabalho?

Sakhela Buhlungu – Antes da realização da Copa do Mundo, havia uma grande expectativa de que aquela onda de investimentos se converteria em benefícios para a população, especialmente gerando novos empregos. O povo sul-africano participou com entusiasmo na construção dos estádios e das estruturas para receber os turistas de todo o mundo para o evento. Após a copa, no entanto, o que se viu é que boa parte dos empregos se extinguiu com o fim dos jogos e que as estruturas não puderam ser plenamente aproveitadas pela população. Houve uma bolha, e geração de empregos voltados à construção de estádios. Mas os trabalhadores foram para casa depois que os estádios ficaram prontos. O mesmo se deu no setor de hotelaria. Muitos hotéis sequer tiveram a demanda que esperavam. Não se deram conta de que a dinâmica da copa, muitas vezes, envolve estadias curtas, ou meras passagens pela cidade sem que as pessoas se hospedem. Vocês terão a copa em julho de 2014, certo? Eu diria que em março de 2014 haverá o ápice em termos de geração de empregos, e depois esse índice começará a arrefecer.

DMT – As universidades são em sua maioria públicas ou privadas? Como se dá a inclusão dos filhos dos trabalhadores no ensino superior?

Sakhela Buhlungu – A maior parte das universidades são públicas, e nacionais, geridas pelo governo federal. Há apenas uma ou duas universidades privadas. Os filhos dos trabalhadores têm acesso à universidade. Há inclusive incentivos para isso. O governo forma um fundo para custear os estudos da população de baixa renda, através de bolsas de estudos. Houve um aumento considerável no número de vagas das universidades. O maior problema é a má formação de base de muitos estudantes, o que faz com que levem mais tempo para se graduarem. O sindicato dos mineiros também têm um fundo de incentivo para o estudo dos filhos dos trabalhadores. Isso existe aproximadamente há quinze anos, e tem proporcionado estudo a muitas pessoas que jamais teriam essa oportunidade.

Edição: Charles Soveral
Atualizado em: 09/01/2013

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