MPV 881/2019: uma mini Reforma Trabalhista no 2º maior jabuti do Brasil

Já aprovada em comissão do Congresso Nacional, e aguardando votações plenárias, a medida provisória da liberdade econômica traz nova, profunda e precarizante reformulação do direito do trabalho brasileiro.

Rodrigo Trindade

Fonte: Revisão Trabalhista
Data original da publicação: 12/07/2019

O Brasil já teve o maior jabuti do mundo, agora ganhou outro dos grandes. Com mais de um metro e meio de cumprimento, o jabuti-gigante da Amazônia viveu em território nacional, há 8 milhões de anos. Em política, jabuti é a manobra de fazer inserir em diplomas legislativos dispositivos totalmente alheios à matéria original. Bem mais recente, mas não menos expressivo, o jabuti plantado na Medida Provisória 881 já é um dos mais robustos da história do Parlamento.

A MP 881, conhecida como Medida Provisória da Liberdade Econômica, foi apresentada pelo Governo Federal com objetivo de estabelecer orientações gerais e práticas para desburocratização da atividade produtiva. Originalmente, afastava diversos procedimentos para licenciamento empresarial e não trazia qualquer incursão em leis trabalhistas.

Em análise na Comissão Mista do Congresso Nacional, o normativo foi enormemente alterado no ato de conversão, ao ponto de promover um nova Reforma Trabalhista. O inflado relatório aprovado espalha modificações nas mais variadas leis, incluindo o Código Civil e a CLT. No diploma do trabalho, altera cerca de 90 pontos em 36 artigos, e segue muitas referências da reforma-mãe. Como não poderia faltar, inclui as velhas promessas de vencer em definitivo o desemprego.

As modificações trabalhistas podem ser divididas em sete grandes eixos.

1. Atualizações gerais de nomenclaturas e procedimentos

Do mesmo modo que a Lei 13.467/2017, a MPV 881 traz uma série de modificações de texto legal que não chegam exatamente a afetar direitos e obrigações na relação de emprego. Mas apresentam charmosa roupagem de atualização.

Nesse campo, traz revogação de dispositivos obsoletos, referentes à antiga carteira de trabalho de menor (arts. 417, 419, 420 e 421). Também atinente à carteira de trabalho, atualiza o meio de emissão do documento, permitindo sua existência eletrônica (arts. 13, 14, 15 e § 3º do art. 130) e introduz procedimento eletrônico de fiscalização (arts. 628-A, 629 e 630).

Encerrando as modificações superficiais, pretende a consolidação da extinção do Ministério do Trabalho, alterando sua menção na CLT para órgãos substitutos e remanescentes (art. 627-A, caput, 635, 640, 641).

2. Não intervenção e interpretação meramente econômica dos contratos

O grande objetivo da MP 881 é liberar empresas para desenvolver negócios, desamarradas de condicionantes impostas pelo Poder Público, como alvarás, licenças, autorizações e inscrições.  De um modo geral, pretende resgatar o liberalismo abstencionista do século XIX, afastando o Estado das relações privadas.

No art. 24, define que a lei dispõe sobre normas relativas à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, com aplicação para interpretar também o direito do trabalho. O freio imposto pela legislação trabalhista está no art. 26, II, “c”: as leis federais trabalhistas de segurança e medicina do trabalho devem ser observadas para o estabelecer limites ao direito de “desenvolver atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, inclusive feriados, sem que para isso esteja sujeito a cobranças ou encargos adicionais”. Nada mais.

A partir disso, há modificações importantes no Código Civil. A MPV 881 cria um parágrafo único para o art. 421, com a redação “Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.”

O art. 421 trata da função social do contrato, instituto com matriz na funcionalização social da empresa e da propriedade e instrumentalizador das orientações constitucionais de direcionamento da vida privada para a elevação social. Pretende evitar o exercício desmesurado da liberdade contratual, impendo que relações individuais violem direitos fundamentais e afetem negativamente terceiros. Para tanto, a função social do contrato é cânone hermenêutico que limita o direito geral de estabelecer cláusulas contratuais e obriga que avenças guardem relação de adequação ao seu entorno social, a interesses maiores da comunidade em que o negócio se encerra. O novo parágrafo único se não afasta, rebaixa o interesse da coletividade à vontade do poder econômico imposto e restringe a tarefa judicial de analisar eticamente os efeitos dos negócios jurídicos.

No mesmo sentido, há integração ao art. 113 do Código Civil de diversas orientações interpretativas dos contratos, esclarecendo o primado de imposições econômicas do pactuante sobre molduras de adequação social.

É importante lembrar que a Lei 13.467/2017 modificou o art. 8º da CLT para excluir a condicionante ideológica de submissão aos princípios justrabalhistas para aplicação subsidiária do direito comum. Fabricou, assim, o direito civil como fonte primária de complementação do regramento trabalhista.

3. Rebaixamento da fiscalização e segurança do trabalho

O maior número de artigos alterados pela MPV 881/2019 diz respeito à degradação da atuação dos órgãos estatais responsáveis por fiscalizar e impor multas a empregadores delinquentes.

Seguindo a orientação geral na Medida Provisória de desamarrar condicionantes para funcionamento de empresas, há revogação do art. 160 da CLT, dispositivo que condiciona funcionamento de estabelecimento à aprovação das instalações por autoridade de segurança e medicina do trabalho.

Também há revogação do parágrafo 4º do art. 193 da CLT, reconhecedor de que trabalhadores em motocicletas recebem adicional de periculosidade. Em poucas palavras, com a MPV 818/2019, ser motoboy já não é mais perigoso.

Mas o grande volume de modificações diz respeito à restrição  do campo fiscalizatório das superintendências regionais do trabalho. Há redução de âmbito de dupla visita (art. 627) e estabelece precedência de termo de compromisso sobre outros títulos executivos (art. 627-A, parágrafo único).

As oportunidades de defesa dos empregadores são ampliadas. Excluem-se formalidades para apresentação de seus documentos (art. 632, parágrafo único), ampliam-se prazos recursais (art. 636, caput e §3º) , fixa-se efeito suspensivo para recursos (art. 636, § 1º), restringe-se utilização de edital (art. 636, § 2º), criam-se mecanismos de redução de valores das multas (art. 636, § 4º e 5º) e encerra-se possibilidade de reexame necessário (art. 637). Na mesma matriz, há previsão de organismos burocratizados para análise de recursos (art. 635), desterritorialização de análise (§ 2º) e estabelecimento de órgãos tripartites (§ 4º).

Segue-se a orientação geral da Reforma Trabalhista de reduzir atribuições de sindicatos, excluindo as instituições representativas de comunicar atos infracionais (art. 631).

4. Trabalho em domingos e registro de jornada

Também com grande volume de dispositivos modificados e suprimidos, a MPV 881 cria alteração do regime de trabalho em domingos e feriados. Ocorre no mesmo mês de vigência de nova portaria do governo federal ampliadora de atividades que funcionam em domingos e possam contar com empregados. Comércio e diversas ocupações ininterruptas já eram genericamente autorizadas, outras atividades podiam assim estabelecer a partir de normas coletivas. A portaria afetou principalmente trabalhadores de indústrias e categorias sem força para realizar acordo coletivo para regrar hipóteses e condições de trabalho em domingos.

A Medida Provisória pretende consolidar a orientação de ampla possibilidade de trabalho em domingos, sem ônus financeiros para o empregador, nem necessidade de negociação coletiva. Nova redução de funções de sindicatos.

Inicia-se com alteração do art. 67 da CLT, excluindo-se tanto a preferência da coincidência do repouso semanal em domingos, como o critério de “conveniência pública ou necessidade imperiosa do serviço” para permissão de trabalho nesses dias. Também há retirada da permissão prévia estatal para dar a lacônica redação ao art. 68 “Fica autorizado o trabalho em domingos e feriados”. Os arts. 385 e 386, que tratam do trabalho feminino, recebem redação parecida. Na mesma linha, até mesmo o trabalho em feriado fica isento de ter remuneração diferenciada se outro dia de folga compensatória (art. 70), mas sem nem mesmo esclarecer qual será o período para compensação.

A medida provisória estabelece critérios de trabalho em domingos para mulheres que atuem no “agronegócio” no novo art. 386-A. Além de tratar-se de aparente jabuti dentro do jabuti, é inserção pitoresca, pois a CLT é aplicada a trabalhadores urbanos e os empregados rurais possuem lei própria, a Lei (5.889/1973).

O escancaramento do trabalho em domingos e feriados alcança profissões regulamentadas, com alteração do art. 227 (telefonistas, telegrafistas e radiotelegrafistas), revogando-se o § 2º. Professores também são afetados, revogando-se o art. 319, que veda trabalho em domingos.

Sem dúvida, tende a ser bom para o empresário abrir quando bem entender e dar folga ao funcionário, conforme o soprar dos ventos do mercado; igualmente serve bem ao consumidor, que não precisa de planejamento semanal para encontrar tudo aberto e prontinho para si.

Mas a definição legal do dia da semana preferencial para folga não é só o “ao gosto do freguês”. Há valores outros e mais importantes. Família, interação cultural e cumprimento de obrigações religiosas são os mais óbvios para termos decidido, há séculos, incorporar dia certo em nossas comunidades para folgar do trabalho. Se a mãe de família tiver folga na terça, seu marido na quinta e os filhos deixarem de ir à escola no domingo, como ficam as convivências sociais e familiares?

Para encerrar o campo do tempo de trabalho, a MPV 881 modifica bastante o regramento de controle de jornada. As modificações no art. 74 da CLT abolem a obrigação de publicizar quadro de horários na empresa (caput), amplia a isenção de controle documental de jornada para estabelecimento com até 20 empregados (§ 1º).

No §3º do art. 74, permite-se o registro de ponto por exceção. Trata-se de modalidade de controle de jornada em que o funcionário não precisa anotar efetivos horários de início e término de jornada, pois se presumiriam ordinariamente cumpridos, conforme obrigações contratuais. Tem apenas de registrar eventuais horas extras trabalhadas e outros fatos excepcionais, como atrasos, faltas e afastamentos.

Percebe-se redução do arcabouço de registro de jornada de trabalho, as medidas tendem a ampliar tempo de trabalho sem registro e, consequentemente, sem pagamento de horas extras. Facilitar a ampliação do tempo de trabalho é elemento administrativo essencialmente limitador de novas contratações de empregados e vai de encontro ao objetivo de reduzir desemprego.

5. Responsabilização de sócios e desconsideração da personalidade jurídica

Há modificações importantes no Código Civil, tendentes a dificultar a responsabilização de sócios por empresas inadimplentes.

Cria-se o art. 49-A para afirmar que “a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores”. No parágrafo único esclarece que a “autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.” Em suma, partindo-se da suposição de que a existência da pessoa jurídica serve para gerar benefícios sociais, pretende-se fixar separação absoluta de patrimônios para responder economicamente por prejuízos produzidos.

Também o art. 50 é alterado para esvaziar as hipóteses de desvio de finalidade da personalidade jurídica e limitar responsabilidade ao sócio administrador. Em parágrafo 8º estabelece que “a mera insuficiência do ativo da pessoa jurídica para satisfação de obrigação não autoriza a desconsideração de sua autonomia patrimonial.” Modifica-se o artigo 1.368-D para estabelecer que nos “grupos de investimento” há limitação de responsabilidade, sem solidariedade.

No mesmo caminho, há alteração do art. 2º, § 2º da CLT. Amputa-se a redação indicativa de elementos jurídicos para reconhecimento de grupo econômico e a substitui para apenas afirmar que a existência do grupo não impõe responsabilidade subsidiária, ressalvada a hipótese do art. 50 do CCB, com responsabilidade solidária.

Inicialmente, chama atenção de referência a “responsabilidade subsidiária”, pois a redação original do dispositivo é de responsabilidade solidária das empresas do grupo. A exclusão do conceito de grupo econômico trabalhista é também inusitada, pois se trata de instituto há décadas consolidado e que reconhece o conceito de “empregador único”.

Todas as restrições de responsabilização dos sócios de empresas inadimplentes tendem a ampliar as dívidas trabalhistas não pagas e manutenção da consequente insatisfação social, sensação de impunidade e descrédito institucional.

6. Relaxamento de obrigações

A MPV 881/2019 é generosa no relaxamento de obrigações empresariais. Inicialmente em medidas administrativas. No art. 45 da Medida Provisória, dispensa as empresas de encaminharem cópia da Guia da Previdência Social ao sindicato representativo da categoria profissional mais numerosa entre seus empregados. Com isso, dificulta-se a atuação sindical para conhecimento da categoria e busca por condições de financiamento.

A CLT também é modificada, para outorgar facilitações aos empregadores. O prazo para assinatura da Carteira de Trabalho passa de 48 horas para 5 dias (art. 29).

Mesmo multas por descumprimentos são suprimidas. Assim se percebe com a revogação do art. 54 da CLT, que prevê pagamento de multa à empresa que se negar a anotar a carteira de trabalho de seu empregado.

Por fim, empresas com menos de 20 funcionários, bem como micro e pequenas empresas ficam desobrigadas de constituir Comissão Interna de Prevenção de Acidentes.

7. Medidas anticrise: suspensão de normas coletivas e dispositivos legais

As denominadas “medidas anticrise” são as mais polêmicas da parte trabalhista da Medida Provisória. Em seu art. 72 estabelece que, enquanto não houver relatório do IBGE que aponte que o desemprego no país se encontra abaixo de 5.000.000 de pessoas, por pelo menos 12 meses consecutivos, fica instituído o regime especial de contratação anticrise. As medidas de contratação trabalhista para pretensamente combater a crise são aquelas que restringiriam a criação de postos de emprego.

A primeira das medidas relacionadas é de suspensão de acordos e convenções coletivas que vedem o trabalho em finais de semana, incluindo sábados, domingos e feriados.

A segunda, e concomitante, é de suspensão de diversos dispositivos da CLT que estabelecem standarts mínimos de contratação, tanto de empregados de profissões regulamentadas, como de regra universal.

Assim, pretende suspender artigos relacionados a jornadas de trabalho inferiores a oito horas de bancários (arts. 224, 225 e 226), telefonistas (arts. 227 e 229), músicos (arts. 232 e 233), operadores de cinematógrafos (art. 234) e jornalistas (arts. 303 , 304 e 306). Para todos esses, passaria a ser possível exigir trabalho na jornada ordinária de 8 horas. Também há profunda precarização geral, pois com a suspensão do art. 445 da CLT, passaria a não haver limites máximos para contratos de emprego a prazo determinado.

Em paralelo de ser medida nitidamente precarizante, não há qualquer esclarecimento de como seria a operacionalização. Só valeria para novos contratos ou seria aplicado aos vigentes? Como ficaria a situação com a modificação dos contratos com a alteração dos índices de desemprego? É gigantesca a insegurança jurídica projetada.

Mas o mais preocupante é a inadequação ao fim que afirma perseguir. Não faz qualquer sentido aumentar jornada de trabalho caso se pretenda reduzir desemprego. Ao contrário, com ampliação de jornada e liberação de trabalho em domingos, sem formalidades e compensações financeiras, reduzem-se as oportunidades de contratação de novos trabalhadores. Apenas se permite que um mesmo empregado trabalhe mais tempo, atravancando abertura de outro posto.

Por fim, há dificílima compatibilização da intenção de “suspender normas coletivas” com a determinação constitucional de reconhecimento da normatividade de acordos e convenções coletivas (art. 7º, XXVI). É no mínimo pitoresco se pretender reduzir o âmbito de contratos coletivos em um normativo que trata da liberdade de contratar.

Conclusões

A MPV 881/2018 é nítido prolongamento da Lei 13.564/2017, a Reforma Trabalhista. Segue a forma de ausência de discussão, atropelo de redução e dificuldades de adequação com o sistema jurídico nacional, especialmente a Constituição. Também segue a trajetória de redução de direitos trabalhistas, facilitação de contratações precárias, achatamento de sindicatos, da estrutura de fiscalização e repressão de maus empregadores.

E igualmente mantém a velha, e ainda descumprida promessa reduzir a desocupação. Os dois anos de vigência da Reforma Trabalhista, com manutenção do desemprego, acompanhado de ampliação da subocupação e do desalento, já demonstraram claramente que essa fórmula está muito longe do sucesso pretendido.

Em paralelo ao recheio de possíveis inconstitucionalidades, é evidente o descumprimento dos critérios de urgência e relevância na medida provisória.

Há séculos, o jabuti-gigante da Amazônia desapareceu. A MPV 881 precisa ser convertida em lei pelos Plenários da Câmara dos Deputados e do Senado e resta descobrir se esse jabuti será extinto ou vai se tornar agente de extinção.

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