Minhas tias deveriam poder parar

Ficar em casa em meio a uma epidemia, contudo, não é um privilégio, é um ato de solidariedade coletiva que prestamos ao conjunto da sociedade – a ameaça não é individual, a solução também não tem como ser. A possibilidade do distanciamento físico deveria, portanto, ser um direito universal.

Julia Ávila Franzoni

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 15/04/2020

A recente campanha do Governo Federal para gestão da pandemia do coronavírus, #oBrasilNãoPodeParar, já suspensa em decisão da justiça federal, alimenta o senso comum que responde às medidas de distanciamento social com um discurso moralizante: seria errado ficar em casa quando há inúmeros trabalhadores e trabalhadoras que, de fato, não podem parar sob pena de exporem suas famílias ao desemparo total. Os que ficam em casa, segue essa linha de raciocínio, seriam privilegiados, sustentando um regime de quarentena desigual e injusto. 

Encontrei esse tipo de argumento em conversas com pessoas bem próximas, sobretudo vindo das minhas tias, mulheres arrimos de família, convictas que não podem parar. O carinho e respeito que sinto por elas me obrigou a um exercício de escuta, de tentar entender as razões de defesa dessa campanha. O Presidente da República é mesmo uma figura desprezível, criminosa, fascista, mas minhas tias não. Elas são mulheres batalhadoras, de muita fibra e coragem, e que contam, à sua maneira, a trajetória de tantas outras mulheres trabalhadoras do Brasil que nunca podem parar, já antes da crise atual. 

Meu carinho e respeito por elas não me impede de concluir que, nesse ponto, elas estão mesmo equivocadas – a quarentena deve, sim, ser tratada como direito, não como privilégio. Mas em suas percepções há a intuição correta da injustiça flagrante de uma situação de quarentena seletiva (só para os que podem). O ponto cego da campanha, no entanto, é que ao naturalizar a visão de mundo neoliberal, nos lança em uma batalha pela sobrevivência onde é cada um por si. O que falta é a responsabilização deste governo e de seus sócios empresariais na condição de desamparo e vulnerabilidade da massa de trabalhadores. Ao individualizar a questão, o governo Bolsonaro busca se eximir da culpa de sua própria gestão irresponsável e desumana dos efeitos da pandemia. Contrapor ao discurso moralizante do senso comum a defesa da quarentena como direito universal – e não como privilégio – deve ser nossa estratégia para impedir que o andar de cima fuja de suas responsabilidades. É hora de exigir ações imediatas de salvaguarda das condições materiais de vida, em especial, para as trabalhadoras e trabalhadores que nunca podem parar.

O que minhas tias insistem, com razão, é que, assim como elas, diversas trabalhadoras não podem ficar em casa, estão obrigadas a se expor constantemente aos perigos das ruas para garantir os “privilégios” de quem está em quarentena. Justamente por estar em casa, continua o argumento, os privilegiados se acovardam de enfrentar o dia a dia do trabalho, seus inevitáveis e inúmeros riscos, sendo a Covid-19 apenas um deles. Afinal, não morrem mais pessoas de acidente de trânsito do que de coronavírus? E quantos morreram, levanta o argumento familiar, “pela corrupção do PT”? Ou, o que é uma gripe para quem vive a insegurança diária em áreas de alta violência urbana? A pandemia é comparada a diversos outros perigos já presentes na vida dos trabalhadores e suas famílias.

É a partir dessa percepção que o senso comum convoca as pessoas de volta às ruas e aos seus postos trabalho, porque não seria justo uns estarem expostos aos riscos e outros não. Há uma lógica: num mundo privatizado, ter direitos é ser privilegiado. O que a moralização parece demandar é a universalização irrestrita da condição de precariedade e de insegurança. É a esse sentimento que o Bolsonaro quer apelar quando exclama irritado: “O brasileiro tem que entender que quem vai salvar a vida dele é ele, pô!” – a mensagem é clara, o governo não virá ao seu resgate, aqui é cada um por si. 

Ficar em casa em meio a uma epidemia, contudo, não é um privilégio, é um ato de solidariedade coletiva que prestamos ao conjunto da sociedade – a ameaça não é individual, a solução também não tem como ser. A possibilidade do distanciamento físico deveria, portanto, ser um direito universal. Direito este que, assim como diversos outros – moradia, previdência, saúde, alimentação adequada, segurança – têm sido negados à classe trabalhadora sistematicamente pelo compromisso com a agenda da austeridade por parte do governo. “Os trabalhadores pela sua própria conta e risco” é a tradução concreta do discurso ideológico de “liberdade econômica” tão caro ao bolsonarismo. A gramática dos privilégios – ficar em casa é benefício que muitos não têm – esconde a responsabilidade do Estado e das empresas em garantir as condições materiais de sobrevivência das pessoas trabalhadoras em circunstâncias de crise. E, escondida, essa responsabilidade não pode ser cobrada. Nossas trabalhadoras, como minhas tias, naturalizaram tanto a lógica de uma vida sem direitos, que ao invés de chamarem à responsabilidade o governo ou os donos dos negócios, ou até se organizarem coletivamente para cobrar condições mais justas de vida, convocam todos a se exporem, a abrirem mão de seus direitos, num igualitarismo de terra arrasada. 

Não se trata, contudo, simplesmente da reiteração da lógica “se eu não tenho, ninguém vai ter”. Essa postura, reivindicada justamente por mulheres já altamente demandadas em suas vidas e sobrecarregadas de tarefas dentro e fora de casa, mostra que, para elas, a única saída que a forma de organização da nossa sociedade tem oferecido é sempre mais trabalho, afinal, elas nunca podem parar. Responsáveis pela garantia da reprodução da vida de suas famílias e de tantas outras, quem se vira todos os dias pode julgar válida a generalização dessa condição de se virar – a quarentena de quem pode só traria mais sobrecarga para quem não vê como sair do campo de batalha. O problema central desse discurso, que revela desigualdades estruturais de classe, de raça e de gênero constitutivas da nossa sociedade, não é apenas o tom moral e a culpabilização frente aos que podem parar, mas a desresponsabilização e a invisibilização daquilo que justamente produz, e mantém, essas desigualdades: os conluios entre Estado e capital e suas agendas de deixar morrer – a sua própria conta e risco – quem não interessa.

Como reconhecem minhas tias, o alastramento do vírus pode levar à morte precoce de muitas pessoas, mas, como muitos não têm direito a não trabalhar, todos devem se expor em conjunto para não sobrecarregar ainda mais quem está nas ruas. Em uma reversão trágica do acontecimento que deveria invocar solidariedade na defesa da vida, a tática de faroeste – matar ou morrer – impossibilita que essas pessoas se reconheçam como superexploradas, precarizadas e descartáveis pelo Estado e pelo mercado. O mais cruel dessa narrativa é a ideia de ‘se eu estou por minha conta e risco, todos devem estar” reembalada pelo governo Bolsonaro como “todos devem fazer sua parte”. É uma fala que representa o permanente risco e põe na conta de muitas trabalhadoras, como minhas tias, sem acesso a qualquer sistema de cobertura social – com ou sem pandemia – a responsabilidade pelas faltas no trabalho.

No arsenal neoliberal, mobilizar a narrativa do “cada um por si” serve ao fim de despolitizar e desmobilizar a solidariedade de classe. Quando trabalhadoras como minhas tias defendem a campanha do governo de volta ao trabalho e à normalidade – fomentando antagonismos entre aqueles familiares, vizinhos e amigos que não querem abrir mão de seus diretos –, fazem por certo desespero de quem leva grande parte da vida no limite. A consequência despolitizadora, entretanto, é a desresponsabilização dos verdadeiros responsáveis pelos (I) efeitos cruéis e desiguais da gestão da pandemia e (II) também pelo cotidiano “normal” de vulnerabilidade e de insegurança que já viviam todos os dias.

A atual pandemia do novo coronavírus reitera o óbvio: o senso comum pode até imaginar o fim do mundo – todos estamos no mesmo barco apocalíptico –, mas não a do fim do capitalismo. Aparentemente invencível, a sobrevivência highlander da ordem do capital explica as leituras que tendem à moralização da quarentena pela gramática dos privilégios e a invisibilização dos interesses econômicos de poucos que comandam a gestão da crise. 

Para quem o cotidiano não permite enxergar qualquer saída que não seja mais trabalho, mais exploração e mais risco, a defesa generalizada dos direitos é a saída para essa agenda de crise permanente agudizada pela pandemia. Que o exemplo de minhas tias sirva para ilustrar que se nem todos têm direitos e condições dignas de garantirem suas vidas, falimos todos como sociedade, com ou sem a atual pandemia – e estamos todos expostos.

Defender a gramática de direitos contra a ideologia neoliberal deve ser também assunto de família. 

Julia Ávila Franzoni é professora da FND-UFRJ, advogada popular, membro do Conselho Diretor da Organização de Direitos Humanos Terra de Direitos e associada do IBDU.

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