Mexer na tributação é política pública para reduzir a desigualdade e melhorar serviços

Pobreza atinge cerca de 80 milhões de pessoas no país, que ganham abaixo de R$ 530. Fotografia: Fernando Frazão/Agência Brasil

Estrutura tributária não é discussão acadêmica, é política pública, lembra a economista Monica de Bolle, pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics e diretora do Programa de Estudos Latino Americanos da Johns Hopkins University. Ao lado do também economista Eduardo Fagnani e da jornalista Flávia Oliveira, ela discutiu as mazelas do sistema brasileiro e como algumas mudanças podem alterar a rota no sentido da redução da histórica desigualdade e de uma melhor oferta de serviços públicos no Brasil.

O debate, que integra a campanha Você Acha Justo?, foi realizado na noite de ontem (10), sob mediação do jornalista e escritor Camilo Vannuchi. Os organizadores defendem a aprovação de um substitutivo à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, chamado de “reforma tributária solidária, justa e sustentável”, elaborado por mais de 40 especialistas e protocolado no Congresso em outubro de 2019.

Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos autores da emenda, Fagnani detalha a estrutura injusta da tributação no Brasil. E de algumas incompreensões que dificultam o avanço do debate. “Quando a gente fala em em taxação dos ricos, nós não estamos falando em quem tem um Jeep Renegade”, exemplifica.

Proteção social

Fagnani lembra que das aproximadamente 30 milhões de declarações de Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) no país, apenas 230 mil pessoas ganham mais de R$ 60 mil por mês. “A maior parte das medidas que nós estamos propondo afetam 0,1% da população. Quem ganha mais de 40 mil reais são cerca de 700 mil pessoas, 0,3%. Acho que chegou a hora do 0,3% contribuir para que os 99,7% possam minimamente ter algum tipo de proteção, algum tipo de cobertura”, defende.

Dando um “exemplo extremo”, como define, Fagnani afirma que na Dinamarca a tributação da renda representa 63% do total. Nos Estados Unidos, 49%. No Brasil, 18%. Aqui, se arrecada 2,5% do PIB em Imposto de Renda, enquanto em países como Alemanha e Estados Unidos, esse total fica em torno de 10%.

Um dos motivos para isso, acrescenta, é a alíquota máxima de imposto, de 27,5%. “Uma pessoa que ganha 5 mil reais e uma que ganha 500 mil têm a mesma alíquota”, afirma Fagnani, ao lembrar que em vários países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) chega a mais de 50%.

Efeito cascata

A estrutura brasileira é “coisa de doido”, brinca Monica. “Quando a gente pensa em linhas gerais, tem muito imposto indireto, todos esses tributos funcionam como um efeito cascata, grande parte recai sobre consumo e produção”, observa. Isso onera o setor produtivo e reduz a competitividade, aponta a economista. “E tem consequências para a capacidade de investimento da indústria, para o crescimento do país.”

No caso do consumo, são impostos onerosos e “extremamente regressivos”, diz Monica, e que atingem principalmente pessoas de menor renda. Ela ironiza a ideia de “Estado mínimo” que ainda permeia boa parte do debate econômico no Brasil, citando uma tirada do escritor Millô Fernandes: as ideias, quando ficam velhinhas, se aposentam e vão morar no Brasil.

É preciso caminhar no sentido contrário, invertendo a pirâmide tributária, defende, com mais peso sobre renda e patrimônio. “A gente precisa casar a nossa estrutura tributária com aquilo que se desenhou na Constituição de 88, que nada tem de Estado mínimo.” Outra medida seria tributar dividendos: “O Brasil não tributa porque não quer”.

Pirâmide

Comentarista do canal pago GloboNews, colunista do jornal O Globo e apresentadora do quadro Por Dentro da Economia, na rádio CBN, Flávia concorda com a “inversão da pirâmide” e dá a pandemia como mais um exemplo da desigualdade brasileira. Enquanto o vírus avança sobre os mais pobres, um grupo social que já tem acesso a um atendimento de mais qualidade, poderá, no ano que vem, abater parte desses gastos.

Ela acredita que seja uma hora oportuna para se enfatizar a importância dos serviços prestados pelo Estado. Mas lembra que a própria representação política atua contra essa mudança, justamente por se concentrar nas faixas de maior renda. “O momento é apropriado, me parece que a agenda da sociedade é esta, a necessidade é flagrante. Mas talvez a gente veja mais uma janela de oportunidade desperdiçada.”

E não se pode falar em bitributação, como reclamam alguns, contesta Monica, com exemplos. “Todo mundo que tem um imóvel no Brasil paga IPTU. Como você comprou seu imóvel? Tendo acumulado uma renda, usando parte dela. Essa renda foi tributada. Logo, o IPTU é uma bitributação. Então não deveria ter IPTU, IPVA… É anômalo o Brasil não tributar dividendos. Não tem nenhuma razão econômica.” Assim como Flávia, ela receia que o país perca a chance de aprovar uma reforma profunda.

Classe média e elite

O Brasil é “estruturado na desigualdade, no patrimonialismo”, constata Flávia. Para ela, a classe média não se identifica como “povo”. Assim, não quer serviço público de qualidade, mas ter acesso ao mesmo serviço privado da elite. Ao longo do tempo, se desenvolveu uma “teoria da prosperidade” que acaba por demonizar e desprezar o Estado.

Residente em Washington, Monica nota um comportamento diferente. “Aqui, por exemplo, as pessoas que se identificam como classe média se identificam como povo e usam serviço público, as pessoas mandam filhos para a escola pública… É verdade que este país não tem um sistema de proteção como deveria ter.” No Brasil, as pessoas se veem “acima” dos serviços públicos. “Isso é uma cisão de cidadania, uma percepção não inclusiva.”

Ela manifesta um “otimismo cauteloso” quanto à possibilidade de mudanças no período pós-pandemia. “A reconstrução vai ser muito dolorosa, muito longa. Quem sabe dessa tragédia toda não surja uma percepção de cidadania mais inclusiva.”

Fagnani avalia que a pandemia “está expondo as entranhas” da desigualdade brasileira. “Nós temos 25 milhões que ganham renda per capita domiciliar de 117 reais. Outros 25 milhões que ganham até 343 reais, em média. Outros 27 (milhões) que ganham até 530 reais. Se somar, estou falando de quase 80 milhões de pessoas, duas vezes a população da Espanha. Como essas pessoas vão ficar em casa, fazer home office e assistir Netflix? E com um governo que age como se a realidade fosse outra.”


Fonte: RBA
Texto: Vitor Nuzzi
Data original da publicação: 11/06/2020

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