Marcas de uma origem e uma profissão: trabalhadoras domésticas peruanas em Brasília

Delia Dutra

Fonte: Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, p. 181-197, jan./abr. 2015.

Resumo: O presente artigo analisa como um grupo de mulheres peruanas, trabalhadoras domésticas, vivencia sua experiência migratória em Brasília. A análise é desenvolvida em uma perspectiva interacionista – com ênfase nas dimensões de gênero, étnica e de classe – facultando compreender os processos de integração social dessas migrantes numa cidade com características históricas e urbanas particulares no Brasil e na região. As entrevistas em profundidade possibilitam refletir sobre como elas explicam a sua integração à cidade, o dia-a-dia no trabalho; ou seja, analisamos como produzem o seu espaço de vida em migração. Podemos estabelecer, nessa condição de migração a trabalho, uma variedade de elementos que concorrem para a produção desse espaço: a origem social e cultural, as relações sociais de gênero dentro e fora do núcleo familiar, dentre outros. Identificamos um forte vazio de honra e a falta de estima social associados pelas próprias migrantes à profissão de trabalhadora doméstica.

Sumário: Introdução | Sobre falas, lembranças e sentidos | Contexto e singularidades do fluxo migratório | Cultura andina: origens e estereótipos | Identidades, gênero e fronteiras sociais étnicas | Classe, honra e status: marcas femininas passadas e presentes | Conclusão

Introdução

As mulheres representam quase a metade do total mundial de migrantes internacionais, chegando, inclusive, em alguns continentes, a ultrapassar a quantidade de homens migrantes. Contudo, a falta de um marco legal adequado às necessidades das mulheres migrantes no mundo as torna mais vulneráveis e muito mais expostas aos riscos decorrentes da mobilidade. Segundo Thompson da International Organization for Migration (IOM):

[…] apesar de as políticas de migração para trabalho nos países de destino parecer neutras no que tange ao gênero, elas continuam a ter um viés e embasamento num modelo focado nas habilidades e trabalhos tradicionalmente masculino. Mais oportunidades para migrar legalmente, acrescenta Thompson, ajudariam a prevenir o envolvimento (involuntário) de muitas mulheres em situações irregulares, de exploração e abuso.

As sucessivas crises mundiais, de acordo com Hirata (2010), têm gerado muitas análises; porém, muito poucas estão voltadas para compreender os impactos sobre os homens e sobre as mulheres. A precarização do trabalho da mulher é mais evidente do que a do homem, gerando maior impacto na precarização familiar.

Ou seja, isso traz implicações, não só para a própria mulher como para o núcleo familiar, gerando mudanças na estrutura social, com enormes repercussões na comunidade local (de origem) e que provocam fenômenos como o da mobilidade indesejada da mulher, afetando a estrutura da família de matriz patriarcal.3

Nesse sentido, a pobreza da mulher propicia uma maior violência para com ela e seus dependentes. Provoca a separação, o afastamento da mulher do seu núcleo familiar, seus afetos e sua cultura, submetendo-a a empregos onde pode sofrer violência física e/ou simbólica. A questão é que o processo de globalização, segundo Hirata (2010), criou mais empregos para as mulheres, porém, trata-se de empregos vulneráveis e precários.

Seguindo essa linha de pensamento, à categoria ‘mulher migrante’ podem ser associadas outras categorias, como a de ‘trabalhadora doméstica’, por exemplo, elemento que demanda do/a leitor/a operações cognitivas de classificação e categorização adicionais. Ao pensarmos as mulheres migrantes trabalhadoras domésticas originárias do Peru e residentes em Brasília – no período de 2008 a 2011, podemos, rapidamente, associá-las à situação de pobreza, desemprego, exclusão social, falta de oportunidades, pouca ou inexistente educação formal etc.

No entanto, elas poderiam, também, ser pensadas como mulheres empreendedoras, determinadas a superar limites materiais e emocionais para melhorar de vida. Mulheres capazes de tomar decisões, apesar das poucas alternativas que possam ter ao longo das suas vidas. Dito de outra forma, mulheres que procuram “dar a volta por cima”, lançando mão daquela chance de trabalho que alguém lhes falou existir numa cidade como Brasília.

Nessa linha, propomos entender que a cidade de Brasília, atualmente, opera como um polo de atração ‘silencioso’ para esse tipo de mão de obra migrante, considerada ‘não-qualificada’ e, graças à qual, homens e mulheres ‘altamente qualificados’ – seguindo a lógica do mercado global de trabalho – conseguem esquecer as tarefas do espaço doméstico para se concentrar nas suas profissões e manter o seu padrão de vida. E isso, simplesmente, ‘graças’ a que existem mulheres que migram pelas metrópoles do mundo ‘vendendo’ anos de suas vidas, para cuidar dos filhos e das casas dos outros e já não mais cuidar, no dia-a-dia, da sua própria família.

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Delia Dutra é Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília. Professora Colaboradora Plena e Bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) no Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados sobre as Américas (CEPPAC), Universidade de Brasília. Pesquisadora do Observatório das Migrações Internacionais e do Laboratório de Estudos sobre Migrações Internacionais (LAEMI).

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