Mais-valia e previdência social

Carlos Fernando Galvão

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 28/08/2019

No entender de Marx e Engels, a mais-valia poderia ser expressa pela diferença entre a soma total dos salários pagos pelos capitalistas e o valor global dos produtos e serviços produzidos e prestados, ou, em outras palavras, o valor global da riqueza produzida é apropriada pelos capitalistas.

O Estado (poder público) é apropriador de mais-valia (sintética e resumidamente, lucro) pelo viés fiscal: ele recolhe os impostos e ainda administra empresas públicas. O Estado também é o garantidor da mais-valia privada do povo, do povo detentor de capital. E por capital não devemos entender, apenas dinheiro. Capital é isso, mas também são as máquinas e os aparelhos e instrumentos tecnológicos das empresas; capital é o acesso ao crédito subsidiado; capital é a base educacional, de saúde, de transporte e segurança que poucos têm, efetivamente, para acessar os postos de poder na sociedade, enfim, capital é, como mostraram Marx e Engels, dentre outros, uma relação social de produção e poder. O Estado capitalista-liberal é, pois, o garantidor desse processo.

Essa apropriação privada dos fundos públicos, que aprofunda o processo de extração e apropriação de mais-valia privada, garantida pelo poder interventor estatal, retira parcelas importantes dos ganhos de todos e de cada um de nós. O filósofo social francês Henri Lefebvre (1901-1991) chamava a apropriação aqui referida de “mais-valia global”. O Estado garante a ordem vigente e investe em setores como educação e cultura na medida em que eles podem elevar a mais-valia estatal e dos “donos do poder” – são os mesmos grupos que dominam o Estado. Para Lefebvre (2001: p.138), o “sistema contratual (jurídico), que o Estado mantém e aperfeiçoa enquanto poder (político), repousa na propriedade privada, a da terra (propriedade imobiliária) e a do dinheiro (propriedade mobiliária)”.

Para não me alongar em demasia, citarei um exemplo recente. No primeiro semestre de 2019, a Câmara dos Deputados, em Brasília, votou e aprovou aquilo que chamaram de “Reforma da Previdência” o qual, segundo dito pelo governo e pelos deputados, acabaria com privilégios existentes e economizaria, nas contas, nunca explicadas para conferência pública, um trilhão de reais.

Pois bem, admitido pelo governo, 85% da tal reforma e a economia supostamente a ser pela União, virão de quem ganha até 2 salários mínimos. Quem, em sã consciência, disser que o trabalhador que ganha até 2 salários mínimos é um privilegiado, das três, uma: ou é muito, mas muito mal informado e ingênuo ou é assustadoramente desinformado ou não tem ideia do que seja viver e sustentar uma família com um salário mínimo.

Há uma quarta alternativa: os mal intencionados, mesmo e que lucram, em termos financeiros e com mais poder, com milhões vivendo na pobreza ou mesmo na miséria. Só que não acabou a história; há muito mais perversidades, mas me deterei em apenas mais duas questões, para fechar este exemplo de apropriação privada de um dos mais ricos fundos públicos existentes no Brasil, o do sistema previdenciário.

O governo havia proposto, felizmente não foi aprovado, benefícios menores do que um salário mínimo, contudo, ao mesmo tempo, para comprar votos no Congresso Nacional, dentre outras medidas, perdoou uma dívida de mais de 80 bilhões de reais dos proprietários de grandes extensões de terra. Isso para não esquecer valores também bilionários, também perdoados de dívidas do setor financeiro e mais de um trilhão de isenções fiscais para petroleiras interessadas no nosso pré-sal. Detalhe. De quanto era mesmo a economia que o pessoal do governo, ansioso por ofertar sangue popular em sacrifício ao “Deus Mercado” disse que gostaria de ter retirar do que chamou de “privilegiados” que ganham até 2 salários mínimos? Um trilhão de reais.

Em O CapitalKarl Marx (1818–1883) e Friedrich Engels (1820-1895) estudaram a mais-valia e gostaria de destacar dois aspectos deste conceito. Primeiro, a produção de mais-valia: é a apropriação do lucro pela exploração do trabalho e do sobretrabalho (e é isso o que permitiu e permite a acumulação primitiva do capital). Segundo, a realização e a distribuição de mais-valia, expressa pela fórmula D-M-D’, ou seja, o dinheiro (D) posto em circulação, leva à produção de mercadorias (M; a materialidade) e serviços (imaterialidade), os quais se transformam novamente em dinheiro, mas em valores maiores do que o originalmente investido (D’). É o lucro, propriamente dito, que apropriado pelos detentores dos meios de produção (infraestrutura) e do poder (superestrutura), se transforma em mais-valia altamente concentrada nas mãos dos poucos capitalistas realmente existentes.

Para Marx e Engels, segundo Lefebvre (2001: p.156-158), as cidades seriam o lugar do político e da administração social, por excelência, ou seja, do Estado, enquanto poder público. Marx, como explicitou Lefebvre (2001), enumera os gastos sociais, não capitalistas, que um Estado deveria ter para haver uma sociedade socialista, que seriam, por exemplo, escolas, saúde e gastos destinados a quem não puder trabalhar (assistência social).

Atualmente, podemos incluir segurança pública, transporte, energia e meio ambiente, mas a lista, claro, varia no tempo e no espaço, além da ideologia de cada um. A ideia do capitalista, contudo, é deixar a sobrevivência e as necessidades humanas supridas ao mínimo, para haver maximização dos lucros e de sua apropriação (Mais-valia).

Não por outro motivo, para ficar em um único exemplo, os salários são mantidos deprimidos, de quem ainda permanece empregado, enquanto os lucros dos banqueiros aumentam ano a ano. O que muitos supostos capitalistas não percebem ou parecem não querer perceber, em nome de lucros exponenciais no curto prazo, é que um país, como o Brasil, onde a concentração de riqueza, com exceção de breves intervalos democráticos e com algum investimento real de distribuição de renda, dentre outras medidas socialmente justas, se acirra com o tempo e a população foi percebendo seu poder aquisitivo diminuir e sem ter acesso aos mecanismos de ascensão social, tem sido, historicamente, condenada à pobreza e a viver em um país que mais parece uma eterna colônia agro-exportadora e escravocrata. Querem mais mercado capitalista, senhores e senhoras liberais? Distribuam riqueza, poder e justiça social. Simples. Simples?

Ainda no entender de Marx e Engels, a mais-valia poderia ser expressa pela diferença entre a soma total dos salários pagos pelos capitalistas e o valor global dos produtos e serviços produzidos e prestados, ou, em outras palavras, o valor global da riqueza produzida que é apropriada pelos capitalistas. Atualmente, a mais-valia é extraída de modos diversos: podemos extrair mais-valia, por exemplo, da enorme quantidade de serviços, os mais diversos, prestados, material (pedreiro etc.) e imaterialmente (trabalhos intelectuais em geral, atividades de alta tecnologia etc.).

Espraiando pelo mundo seus tentáculos vorazes, os capitalistas fazem emergir grande produção de riqueza, sem dúvida, mas em paralelo, também articulam mecanismos eficazes de concentração dessa riqueza, valendo-se de um sistema eleitoral liberal pseudo-democrático, o qual, quando não o satisfaz, é logo substituído, ainda que de modo velado, por todo um sistema de controle estatal de manipulação da vontade popular, ou por eleições forjadas pelo fórceps de mentiras várias que levem ao resultado esperado ou, em último caso, pela violência, pura e simples.

O escritor Luis Fernando Veríssimo disse que “enquanto o capital se internacionaliza, as pessoas se retribalizam”. Exagero? Vejamos um pequeno exemplo. Em relação à tragédia, construída socialmente e anunciada historicamente, do incêndio criminoso, acontecida por descaso e omissão das autoridades e da população (que não zela por si mesma e por sua História e bens públicos), no Museu Nacional, o crítico de arte e curador da Casa Museu Eva Klabin, Márcio Doctors, disse que, o que “salta aos meus olhos das cinzas da destruição é a imagem eloquente do meteorito do Bendegó, símbolo da potência do universo frente à capacidade destrutiva do homem”.

Linda e desesperadora metáfora da sociedade brasileira. Queimamos, literalmente, o passado, em vários sentidos, inviabilizando o futuro e nos aprisionando em um presente recorrentemente volátil e em crise. Somos uma tribo, não no bom sentido de um coletivo interagente de pessoas que se respeitam e se apoiam, mas no sentido ruim, por assim dizer, de um grupo de individualidades dispersas que, vivendo apenas para si, não só não avança, socialmente falando, como ainda regride.

Até quando?

A produção, a realização e a distribuição da Mais-valia é um processo talvez necessário, mas certamente o modo como é conduzido e, especialmente, a concentração de riqueza e de poder social, que ele enseja, tem que mudar. O que mais vale, deve valer para todos e beneficiar a maioria que lhe é merecedora; não dá mais para termos “cidadãos vips” e “cidadãos de segunda classe” (por infelicidade genética e construção histórico-espacial castradora). Isso é tudo, menos humanamente justo e politicamente democrático.

Referência:

LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

Carlos Fernando Galvão é geógrafo e pós doutor em Geografia Humana.

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