Labour Lawfare: o uso da lei como estratégia de dissuasão

Um conflito vem sendo travado diariamente nos Fóruns e Tribunais do Brasil: a luta de milhões de trabalhadores pelo direito constitucional de ação e pelo livre acesso ao Poder Judiciário.

Renato da Fonseca Janon

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 22/01/2020

Sob o pretexto de reduzir o número de ações trabalhistas e, assim,  combater o alegado “excesso de litigiosidade”, a Lei 13.467/2017 limitou o benefício da Justiça Gratuita e estabeleceu sanções econômicas para desestimular o trabalhador de reivindicar seus direitos perante o Poder Judiciário, ameaçando-o com o chamado “ônus da sucumbência”, ou seja, com a obrigação de pagar valores expressivos a título de custas e honorários (advocatícios e periciais) caso seus pedidos venham a ser julgados improcedentes (art. 790, §§ 3.º e 4.º, da CLT e o art.791-A, caput e §4o, CLT).

Entretanto, os diversos dispositivos da lei 13.467/2017 que buscam cercear  o direito de ação do trabalhador e restringir o seu acesso à Justiça, além de limitar o benefício da gratuidade, configuram verdadeiro LAWFARE TRABALHISTA ou “LABOUR LAWFARE”, na medida em que a edição dessas normas manifestamente inconstitucionais tem por objetivo dotar o sistema legal de preceitos discriminatórios contra um determinado grupo de indivíduos que passam a ser marginalizados pela ordem jurídica vigente. Afinal, a intenção, claramente, é desestimular o ajuizamento de ações trabalhistas com a ameaça de uma sucumbência que o autor jamais poderá pagar ou, pior, terá que pagar com as verbas de natureza alimentar que, porventura, venha a ganhar. Podemos nos deparar com situações surreais, como a de um trabalhador que entra na Justiça para receber os salários que não lhe foram pagos  e, depois, se tiver algum outro pedido rejeitado, ainda ter que usar esses mesmos salários para pagar honorários para o advogado da parte contrária. O paradoxo é que esse ônus não se estende a outros cidadãos que ajuizam uma ação cível, por exemplo, para reclamar um direito do consumidor, o que demonstra que se trata de uma medida nitidamente discriminatória e abusiva. Basta ver que não há a mesma restrição para o benefício da gratuidade nos artigos 98 a 102 do CPC nem no art.54 da Lei 9.099/95. Qual a razão de o autor de uma ação trabalhista ter um tratamento muito mais oneroso?

Na prática, esse tratamento discriminatório tem o indisfarçável objetivo de cercear o direito constitucional de ação,  institucionalizando a Espada de Dâmocles, que estará sempre pairando sobre a cabeça do trabalhador que ousar levar uma demanda ao Poder Judiciário. Aliás, os formuladores da reforma disseram, abertamente, sem nenhum constrangimento, que a intenção era mesmo criar uma barreira econômica para inibir o ajuizamento de ações trabalhistas porque entendiam que havia um excesso de litigiosidade. Significa dizer que o objetivo do legislador foi desestimular o trabalhador a exercer o seu direito de ação, elevando o risco de uma eventual condenação  ao pagamento de honorários de sucumbência e de despesas processuais em caso de improcedência dos seus pedidos. É uma clara estratégia legal de intimidação, que se vale do medo e da ameaça para tentar reduzir, a fórceps, o número de demandas trabalhistas. Seria semelhante a  fechar os hospitais para dizer que o número de doentes diminuiu.  Nessa distopia, a doença não acaba. Quem morre é o paciente.

O termo “LAWFARE” provém da junção de duas palavras da língua inglesa com elevada força retórica: law (direito) e warfare (guerra). Em 2001, o major-general Charles J. Dunlap Jr. usou, pela primeira vez, o termo “Lawfare”, em texto escrito para a Kennedy School de Harvard, no qual fez uma reflexão sobre formas de “conflitos modernos”,  incluindo, dentre as novas modalidades de armas não convencionais, a má aplicação das leis em substituição ao campo físico de batalhas –.[1]Por sua vez, elaborando o conceito de Dunlap, Joel Trachtman, professor da “ Fletcher School of Law and Diplomacydefendeu que a guerra jurídica pode substituir o combate quando proporciona um meio para compelir um comportamento específico com menos custos do que a guerra cinética, ou mesmo em casos onde a guerra cinética seria ineficaz”. [2]

Podemos dizer, então, de uma forma bem simples, que LAWFARE consiste na utilização do Direito como arma de uma guerra jurídica, na medida em que o sistema legal passa a ser direcionado para a persecução ou marginalização de uma pessoa ou de um grupo específico de indivíduos (no caso, os trabalhadores), que passam a não gozar dos mesmos direitos usufruídos pelos demais cidadãos, à semelhança do que ocorre, por exemplo, no chamado “Direito Penal do Inimigo”, conceito introduzido por Günther Jakobs, para quem, em circunstâncias excepcionais (por exemplo, terrorismo), “certas pessoas, por serem inimigas da sociedade ou do Estado,  não detém todas as proteções constitucionais que são asseguradas aos demais indivíduos”. Jakobs chega a propor a distinção entre um direito penal do cidadão (Bürgerstrafrecht) e um direito penal para os inimigos (Feindstrafrecht), orientado para o combate daqueles que são considerados perigosos para a paz social – Günther Jakobs:  Bürgerstrafrecht und  Feindstrafrecht .[3]

A utilização do Direito como arma de uma  guerra híbrida ou psicológica nada tem de novidade. Nicolau Maquiavel, autor do clássico “O Príncipe”, escreveu que  “há duas maneiras de lutar: com força ou com leis. E a segunda é mais eficaz que a primeira.”

O general chinês SUN TZU, na obra “A Arte da Guerra”, dizia que “a melhor estratégia de combate é aquela em que se derrota o inimigo sem lutar”, fazendo-o sucumbir antes mesmo de iniciar o conflito.”

Sun Tzu parte da premissa de que a  vitória ideal é aquela em que se convence o adversário a desistir de lutar por acreditar que nunca poderá vencer. .Segundo ele, a vitória conquistada pela força é penosa e custosa para todos, inclusive para os vencedores, tendo, por vezes, o gosto amargo de derrota. Já a vitória conquistada pela dissuasão, o medo alimentado pela simples ameaça do que poderia vir a acontecer em caso de um confronto, poupa o vencedor dos efeitos colaterais. Daí ser chamada pelo general de “a arte suprema da guerra” :  vencer sem precisar confrontar.

Em outras palavras, essa obra milenar, até hoje lida nas escolas militares, sugere o uso da intimidação como estratégia de combate, justamente o mesmo raciocínio que foi adotado pelos formuladores da reforma trabalhista: intimidar o trabalhador, com a ameaça do risco da sucumbência, para que ele desista de lutar por seu direito (ajuizar a ação) antes mesmo de se iniciar o conflito (o processo).

Entretanto, nem é preciso muito esforço de interpretação para se concluir que tanto o LAWFARE quanto o DIREITO DO INIMIGO são  inadmissíveis em nosso sistema constitucional por violarem os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana, bem como a garantia sacrossanta do devido processo legal.

LÊNIO STRECK, citando Tomas Bustamente, lembra que JOSEPH RAZ,  filósofo israelense e “o mais importante positivista  vivo, escreveu já na década de 70, que o Estado de Direito (rule of lawé um princípio que existe para servir de contraponto aos riscos que a existência de um sistema jurídico gera. O risco de apropriação do Direito e sua utilização como arma política, sempre esteve presente. Isto porque o direito é capaz de oprimir. Salva e oprime. O rule of law protege o próprio Direito contra o uso distorcido dele mesmo.”[4]

Não por acaso o PAPA FRANCISCO, em encontro realizado na Pontifícia Academia das Ciências Sociais,  condenou o Lawfare, alertando para a prevalência da dignidade da pessoa humana:

“O Pontífice declarou-se preocupado com uma nova forma de intervenção exógena nos cenários políticos dos países através do uso indevido de procedimentos legais e tipificações judiciais, prática conhecida como “lawfare”, e com o isolamento dos juízes.”  Francisco, então, concluiu:

“Estimados magistrados: vocês têm um papel essencial, são também poetas sociais quando não têm medo de ser ‘protagonistas na transformação do sistema judicial baseado no valor, na justiça e na primazia da dignidade da pessoa humana’ sobre qualquer outro tipo de interesse ou justificação.” [5]

O Direito não pode ser usado como instrumento de guerra, uma vez que a razão de sua existência é a  pacificação social. Logo, nenhum cidadão pode ser tratado como “inimigo”. Vejamos o  o exemplo da Suprema Corte do Reino Unido, um país reconhecidamente liberal e capitalista. Recentemente, a Suprema Corte do Reino Unido decidiu pela ilegalidade da exigência de custas processuais para os trabalhadores reclamarem perante os tribunais, implementada pelo parlamento em 2013 por iniciativa do governo daquele país, que resultou na redução artificial e forçada de 70% no número de ações trabalhistas. Antes desse dispositivo, o acesso era gratuito. A decisão foi entendida pela imprensa britânica como uma “triunfante defesa do Estado de Direito”, bem como uma reprimenda ao Poder Executivo que introduziu as medidas sem provas que sustentassem a decisão de implementação das custas ou sem uma mais aprofundada discussão parlamentar. A Suprema Corte Real assim decidiu com base na Magna Carta, de  1297, que dispõe que “Nós não venderemos a nenhum homem, não vamos negar ou retardar para nenhum homem a Justiça ou o Direito” (Nulli vendemus, nulli negabimus aut differemus rectum aut justiciam)[6]  

Nessa perspectiva, concluo que o  art. 790, §§ 3.º e 4.º, da CLT e o art. 791-A, §4o, CLT configuram verdadeiro LAWFARE, sendo inconstitucionais por violarem as garantias fundamentais de assistência jurídica integral e gratuita (art.5º, LXXIV, CF) e do acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF), cláusulas pétreas da Constituição Federal, revelando que o desiderato da lei 13.467/2017 foi cercear o pleno exercício do direito de ação  do trabalhador. 

Eles podem cortar todas as flores, mas não podem deter a primavera (Neruda). Porque, “depois da guerra, vão nascer lírios nas pedras” (Vinícius de Moraes)”.  A Justiça é uma semente.

Notas:

[1] Colonel Charles J. Dunlap, Jr., “Law and Military Interventions: Preserving Humanitarian Values in 21st Conflicts. – Humanitarian Challenges in Military Intervention Conference Carr Center for Human Rights Policy. Kennedy School of Government, Harvard University. Washington, D.C., 29 de novembro de 2001

[2] Joel P. Trachtman, “Integrating Lawfare and Warfare,” Boston College International and Comparative Law Review 39, no. 2 (2016): p. 267 e 281, acesso em: 07.01.2020 – http://lawdigitalcommons.bc.edu/iclr/vol39/iss2/3.

[3] Günther Jakobs: Bürgerstrafrecht und FeindstrafrechtIn: HRRS 3/2004, S. 88–95.

[4] https://www.conjur.com.br/2019-dez-26/senso-incomum-apropriacao-moral-politica-direito-degrada-estado-direito – acesso em 07.01.2020.

[5] https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2019-06/papa-francisco-discurso-juizes-encontro-vaticano.html – acesso em 18.12.2019.

[6]  https://www.supremecourt.uk/cases/uksc-2015-0233.html . Acesso em: 07.01.2020

Renato da Fonseca Janon é Juiz Titular da 1ª VT de Lençóis Paulista/SP.

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