Investidores, trabalhadores e órgãos de regulação: algumas verdades

Normas determinam que companhias devem divulgar com transparência e periodicidade informações sobre ações trabalhistas a que respondem, mas Comissão de Valores Mobiliários e Bovespa não fazem questão de que as regras sejam cumpridas.

Rafael de Araújo Gomes

Fonte: Repórter Brasil
Data original da publicação: 06/01/2014

Muitas pessoas acreditam que os interesses dos trabalhadores e dos investidores, que aplicam seu dinheiro em ações, são mutuamente excludentes. O que é bom para os trabalhadores é sempre ruim ao investidor, e vice-versa.

Tal ideia é insistentemente repetida pelas associações empresariais e pelos meios de comunicação, ao ponto de soar verdadeira à população: direitos trabalhistas representam um custo excessivo, prejudicam o desenvolvimento do país, aumentam o “custo Brasil”, enfim, são um mal, e francamente desfavoráveis aos negócios e ao investimento.

Tal ideia é, simplesmente, falsa. Os interesses dos trabalhadores e os interesses da maior parte dos investidores (excluídos os especuladores) podem estar, e frequentemente estão, em sincronia, sendo mutuamente vantajosos.

Os trabalhadores desejam, é claro, boas condições de trabalho, o que significa não apenas bons salários, mas também um ambiente de trabalho seguro e sadio, jornadas adequadas e respeito aos períodos de descanso.

A maior parte dos investidores, e certamente a esmagadora maioria dos pequenos e médios investidores, procura aplicar seu dinheiro esperando, de um lado, o maior rendimento possível, e de outro, segurança quanto ao retorno do investimento. Para isso, busca o investidor escolher com cuidado a empresa na qual depositará seu dinheiro através da compra de ações e debentures.

Algumas oportunidades de investimento prometem retorno bastante elevado, mas o risco mostra-se igualmente alto, o que significa que o investidor pode perder tudo. Para a maioria dos pequenos e médios investidores, tal tipo de investimento simplesmente não é uma opção, pois perder tudo significa perder todas ou grande parte das economias domésticas, muitas vezes fruto de décadas de trabalho.

Por isso, a maioria dos investidores procura investimentos razoavelmente seguros, em empresas sólidas e bem organizadas, que não irão surpreendê-los fechando as portas inesperadamente, ou sucumbindo do dia para a noite em razão de negócios desastrosos.

O problema para o investidor, e particularmente ao pequeno e médio investidor, é que ele não tem acesso a todas as informações de que dispõe o empresário que deseja atrair para sua empresa o investimento. O investidor precisa aferir o risco e o retorno provável a partir das informações disponíveis em mercado, inclusive aquelas que as próprias empresas interessadas em obter o investimento fornecem.

Grau de sustentabilidade

Uma das principais informações que interessam ao investidor em potencial, e que mais podem lhe ajudar a escolher o investimento certo, diz respeito ao grau de sustentabilidade de uma empresa.

Empresas não sustentáveis, envolvidas em numerosos problemas trabalhistas e ambientais, por exemplo, representam um perigo ao investidor, não apenas pelo elevado passivo que elas vão acumulando ao longo do tempo, que determinará diminuição do retorno do investimento, mas também porque tal insustentabilidade sinaliza problemas adicionais, menos visíveis, relacionados à ineficiência produtiva e à incapacidade gerencial, que afetarão o lucro.

Vejamos o exemplo de uma empresa envolvida em numerosos conflitos trabalhistas, que descumpre permanentemente a legislação, digamos, por manter um ambiente de trabalho propenso a acidentes, inclusive fatais, exigindo jornadas de trabalho muito elevadas e chegando ao ponto de submeter seus empregados a condições degradantes, extremamente nocivas, equiparadas por lei ao trabalho escravo. O Ministério Público do Trabalho, aliás, depara-se constantemente com empregadores nessas condições.

O que todos esses ilícitos trabalhistas nos dizem sobre o funcionamento da empresa?

Em primeiro lugar, é certo que o retorno do investimento proporcionado por essa empresa sofrerá, mais dia menos dia, impacto direto decorrente das ações trabalhistas que serão perdidas pelo empregador, e multas que serão aplicadas pelos órgãos de fiscalização.

Por algum tempo, aproveitando a crônica demora na tramitação dos processos trabalhistas, particularmente na fase de execução, tal empresa conseguirá adiar e esconder o passivo trabalhista crescente. Mas um dia ele haverá de ser pago, e os bens da empresa serão penhorados. Se não houver recursos financeiros disponíveis, terão que ser penhorados, inclusive, bens de produção, inviabilizando a continuidade da empresa.

Tendo a existência de violações trabalhistas generalizadas nessa empresa chegado ao conhecimento do Ministério Público, este inevitavelmente exigirá sua completa regularização, e ajuizará se necessário uma ação civil pública para atingir esse objetivo. Novamente em razão da demora na tramitação de processos na Justiça do Trabalho, a empresa conseguirá, por vários anos, ocultar as consequências de tal lide, mas um dia chegará o momento de pagar o passivo acumulado. No caso de uma ação coletiva, isso implicará na realização de investimentos elevados em regularização (por exemplo, substituição de máquinas, aumento do número de funcionários para reduzir o excesso de jornada, reconfiguração de todo o processo produtivo para atender obrigações específicas, etc.), a um custo muito superior ao de ações trabalhistas comuns. Veja-se ainda que, em ações coletivas, tal custo elevado normalmente terá que ser pago de uma só vez, de modo que, do ponto de vista do investidor que colocou seu dinheiro na empresa e nada sabia sobre a ação, o prejuízo aparecerá de forma súbita e imprevista.

O mais importante, entretanto, é que em uma empresa assim os problemas trabalhistas são apenas a ponta do iceberg, e sinalizam dificuldades gerenciais profundas e graves.

De fato, em uma empresa envolvida em muitos conflitos trabalhistas, o ambiente de trabalho e, portanto, a linha de produção transformam-se em um campo de batalha. Os funcionários trabalham muito insatisfeitos, desavenças e acidentes de trabalho são frequentes, paralisando parte ou toda a produção. Os trabalhadores não se dedicam com afinco às suas tarefas, e os melhores funcionários procuram oportunidades mais vantajosas de emprego em empresas melhor organizadas, de modo que permanecerão os menos competentes ou com menor grau de instrução e experiência. Mesmo estes não suportarão por muito tempo, e na empresa se estabelecerá uma grande e acelerada rotatividade de trabalhadores.

Tudo isso faz despencar a produtividade na empresa, e compromete a qualidade dos produtos e serviços gerados. Trabalhadores infelizes, esgotados física e mentalmente, sem experiência na função, e que se sentem presos em um ambiente de trabalho que detestam, envolto em brigas constantes, produzem pouco e mal, e nenhuma ameaça ou coação os fará produzir mais e melhor.

“Dumping social”

Ora, uma empresa que possui sua produtividade comprometida dessa forma, e que lança no mercado produtos e serviços de baixa qualidade, obviamente não terá como se sustentar junto à concorrência por muito tempo. Ela simplesmente não será competitiva. Ela tentará compensar tais deficiências fornecendo produtos a um preço mais baixo, valendo-se, inclusive, do fato de possuir menores custos trabalhistas já que descumpre em larga escala a legislação.

Mas essa estratégia, chamada “dumping social” (tentar obter vantagem concorrencial através da violação em massa de direitos trabalhistas e da economia financeira assim obtida), possui seus limites.

Em primeiro lugar, a imagem da empresa será fatalmente comprometida, pois apesar dos preços mais baixos, o produto ou serviço será de baixa qualidade, e deixará os consumidores cada vez mais insatisfeitos. Ao final de tal processo, o nome da empresa e de seus produtos se tornará, no mercado, sinônimo de algo ruim, a ser evitado.

Em segundo lugar, a economia assim obtida acabará quando as execuções trabalhistas, inclusive as execuções coletivas, chegarem à fase de constrição de bens. Tal fase demora anos para ser atingida, mas quando isso ocorre normalmente a falência já se avizinha. Não há, então, verdadeira economia, mas transferência do pagamento do passivo de um momento para outro, quando já terá se tornado impagável por ter sido acumulado, levando ao fim da empresa – e à perda do investimento nela aplicado.

Em terceiro lugar, todos os problemas acima destacados – insatisfação generalizada dos funcionários, baixa produtividade, baixa qualidade, prejuízos à imagem – fazem despencar o valor da empresa no mercado. Os infelizes investidores que nela aplicaram seu dinheiro correm – sem saber – o risco de ver o valor de suas ações “derreter” em muito pouco tempo, normalmente quando a capacidade da empresa de adiar a revelação do tamanho de seu passivo e de suas más escolhas se esgotar.

Por fim, é evidente que empresários que permitem que todos os problemas acima listados ocorram são, simplesmente, incompetentes, e tal incompetência e falta de visão estratégica não ficará restrita ao âmbito trabalhista, eles cometerão erros também em outros aspectos no negócio, perderão oportunidades vitais, e de um modo geral arruinarão, a curto, médio ou longo prazo, a empresa.

A propósito, é costumeiro que empresários incompetentes assim culpem os seus subordinados, quer dizer, os trabalhadores, pelos problemas que ocorrem na empresa. A culpa é sempre dos outros, nunca dele, o chefe, que não obstante deveria ter detectado e corrigido os problemas, coisa que não faz, já que não possui talentos para a gestão e não possui visão prospectiva, de longo prazo.

Claro que nem todos os investidores buscam empresas sólidas, bem estruturadas, para investir. Há os investidores estritamente especulativos e destrutivos, cujo maior interesse é exterminar empresas para lucrar com os pedaços que sobrarem. Obviamente as conclusões acima não dizem respeito a esse tipo de especulador, mas sim à maioria dos investidores, de perfil muito diverso, que buscam boas oportunidades de investimento compatíveis com os interesses e com o crescimento das empresas.

Por tudo o que se disse, conclui-se que os interesses dos trabalhadores, empregados de uma empresa, são frequentemente compatíveis e estão em sincronia com os interesses da maior parte dos investidores, interessando a ambas as partes que na empresa prevaleçam boas práticas trabalhistas e um bom ambiente de trabalho, favorável à produtividade. Obviamente haverá conflito de interesses quando se discute aumento de salários, mas a preservação de um ambiente de trabalho sadio, seguro e harmonioso interessa a todos, à empresa, se esta deseja se tornar mais competitiva e agregar valor, aos trabalhadores e também aos investidores, que poderão esperar um retorno mais garantido ao investimento.

Sendo assim, a disponibilização de informações sobre as condições trabalhistas em uma empresa mostra-se providência de suma importância aos investidores. Possuindo condições de aferir se uma empresa encontra-se ou não mergulhada em graves e numerosos problemas trabalhistas, terá o investidor condições de realizar uma escolha mais acertada, proveitosa para ele financeiramente, mas também às empresas que promovem melhores condições trabalhistas, que são o “trigo” a ser distinguido do “joio”.

Acesso dos investidores às informações trabalhistas

Tendo percebido tal compatibilização de interesses mutuamente proveitosos, o Ministério Público do Trabalho tem, desde o ano de 2012, insistido em ações no sentido de buscar a ampliação do acesso dos investidores às informações trabalhistas de maior relevância, providência diretamente benéfica aos investidores em geral e, indiretamente, aos trabalhadores.

Descobriu o Ministério Público, entretanto, que os órgãos de regulação do mercado de ações, que possuem por missão a defesa dos legítimos interesses dos investidores, parecem menos preocupados em tutelar estes do que em favorecer as empresas que deveriam fiscalizar.

De fato, as respostas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Bovespa às provocações ministeriais revelam que estes órgãos, o primeiro público, o segundo privado, não consideram relevante assegurar aos investidores o acesso à informação sobre passivos trabalhistas, à revelia das normas aplicáveis, dando respaldo à decisão de certas empresas de ocultar deliberadamente informação vital ao mercado e aos investidores.

Veja-se que em julho de 2012 o Ministério Público do Trabalho encaminhou à Comissão de Valores Mobiliários uma representação em face de cinco grandes construtoras do país, todas sociedades anônimas de capital aberto.

O fundamento da representação estava no fato das empresas não cumprirem as normas expedidas pela CVM no que diz respeito ao preenchimento do documento “Formulário de Referência”, cujo conteúdo há de ser disponibilizado de forma pública ao mercado.

De fato, estabelece a Instrução n. 480 da CVM, de 07 de dezembro de 2009, que entre as informações que devem constar no Formulário de Referência estão as seguintes: “Fatores de risco – Descrever fatores de risco que possam influenciar a decisão de investimento […]: Descrever os processos judiciais, administrativos ou arbitrais em que o emissor ou suas controladas sejam parte, discriminando entre trabalhistas, tributários, cíveis e outros: (i) que não estejam sob sigilo, e (ii) que sejam relevantes para os negócios do emissor ou de suas controladas, indicando: juízo, instância, data de instauração, partes no processo, valores, bens ou direitos envolvidos, principais fatos, se a chance de perda é: provável, possível, remota, análise do impacto em caso de perda do processo, valor provisionado, se houver provisão.

Como forma de informar as empresas quanto ao correto preenchimento do Formulário, foi pela CVM, inclusive, expedido o Ofício-Circular CVM/SEP/N°03/2012, o qual esclarece que: “A relevância deverá ser aferida pelo emissor levando em consideração a capacidade que a informação teria de influenciar a decisão de investimento. Na avaliação da relevância, o emissor não deverá se ater somente à capacidade do processo de impactar de forma significativa seu patrimônio, sua capacidade financeira ou seus negócios, ou os de suas controladas, devendo ser considerados outros fatores que poderiam influenciar a decisão do público investidor, como, por exemplo, os riscos de imagem inerentes a uma certa prática do emissor ou riscos jurídicos relacionados à discussão da validade de cláusulas estatutárias.

Demonstrou o Ministério Público à CVM, documentalmente, que todas as cinco companhias suprimiam, em maior ou menor grau, informações importantes, fundamentais à formação da opinião do investidor, relacionadas à existência e ao resultado de processos judiciais e procedimentos ministeriais de natureza coletiva, tais como ações civis públicas, ocultando assim situações dotadas de grande repercussão sobre a dinâmica de seus negócios e, consequentemente, sobre a obtenção dos resultados financeiros.

Uma das empresas chegou a ocultar em seu Formulário a existência de processos administrativos no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego e ações coletivas em tramitação na Justiça do Trabalho relacionados à exploração do trabalho análogo ao de escravo, casos de enorme repercussão sobre os negócios e sobre a imagem da empresa, que podem levar à perda de todas as linhas de financiamento junto a instituições federais, como a Caixa Econômica Federal e o BNDES. Por duas dessas situações, aliás, a empresa já foi lançada no Cadastro de Empregadores que exploram o trabalho análogo ao de escravo, tendo apenas obtido sua temporária exclusão graças a liminares obtidas no STJ, após ter formulado o mesmo pedido na Justiça do Trabalho e ter sido ele indeferido.

A decisão da CVM

Surpreendentemente, a CVM acolheu em todos os casos as defesas apresentadas pelas construtoras, que alegaram que as omissões, inclusive a ocultação da existência de ações civis públicas de enorme repercussão, “não eram relevantes”.

Entendeu a Comissão que: “consideramos suficientes os esclarecimentos prestados pela companhia em resposta à representação do Ministério Público do Trabalho – Procuradoria do Trabalho no Município de Araraquara, tendo em vista que o julgamento de relevância em tela fica a cargo da administração do emissor”.

Trata-se de decisão insólita, cujo sentido é o de negar aplicação e vigência à norma emitida pela própria CVM.

De fato, a Instrução estabelece, expressamente, que processos judiciais e administrativos dotados de relevância devem ser informados. Então, quando existir relevância, há dever de informar, e não mera facultatividade, competindo à companhia identificar a relevância sempre que existente.

Ademais, a Instrução prevê que a identificação da relevância não está relacionada apenas ao impacto do processo no patrimônio da companhia, devendo ser levados em conta, também, os riscos à imagem (de uma condenação adversa) e os riscos jurídicos envolvidos.

Basicamente, então, a CVM revogou na prática regra contida em sua própria norma, cujo sentido era proporcionar maior transparência na condução dos negócios das companhias abertas.

O prejuízo aos investidores é evidente e extraordinário: nem no caso da empresa incluída na “lista suja” do trabalho escravo, providência que a impede de obter financiamento junto a instituição pública de crédito, foi considerada pela CVM relevante a omissão do dever de informar.

Ora, então não interessa ao investidor saber que a empresa corre o risco sério e concreto de perder todas as linhas de crédito público, o que praticamente inviabilizaria seus negócios? Então não sabe a CVM que, se concretizado tal risco, os investidores perderão todo o investimento aplicado? Que interesse pode ter a Comissão em negar aos investidores acesso a informação tão relevante?

Coloque-se o leitor na seguinte posição: você possui um dinheiro guardado, e procura um investimento que proporcione mais retorno que a poupança. Você decide aplicar em ações, mas não deseja correr o risco de perder tudo, então busca uma opção que proporcione alguma segurança. Você iria, em sã consciência, investir seu dinheiro em uma empresa que você sabe que já está respondendo a processos por trabalho escravo, os quais podem levá-la à proibição de acesso ao crédito público, fundamental à continuidade dos negócios dessa companhia?

Resta evidente que a decisão da CVM, nesse caso, foi tomada pensando nos interesses das companhias envolvidas, que praticaram as grosseiras omissões, e em detrimento dos investidores cujos interesses a Comissão deveria proteger.

Trata-se, portanto, de uma inversão total de valores e de papéis: a Comissão não fiscaliza as companhias em benefício dos investidores e do mercado em geral, mas sim protege as empresas, mesmo quando flagradas cometendo ilícitos, para impedir que os investidores tenham acesso à informação e tenham condições de analisar o risco envolvido (como o risco de aplicar dinheiro em uma empresa que pode perder todo o crédito).

Sob nova gestão

Vale observar que a decisão da CVM parece sinalizar uma mudança de postura do órgão a partir da posse de seu atual presidente, Leonardo Pereira, ex-vice-presidente da empresa aérea Gol, dado que foi durante o mandato do presidente anterior que foi editada a Instrução, cujo propósito é assegurar mais informação ao investidor e mais transparência ao mercado de ações.

Tal mudança mostra-se preocupante, pois Leonardo Pereira era, até pouco tempo antes de sua indicação ao cargo na CVM, investigado pela própria Comissão pela sonegação de informações aos investidores, inclusive por omissão no preenchimento do Formulário de Referência (mesmo objeto da representação do MPT, embora versando sobre outro tipo de informação). Leonardo Pereira celebrou acordo para encerrar o procedimento a que respondia na CVM mediante pagamento de multa de duzentos mil reais, para logo depois ser alçado à condição de presidente da autarquia (conforme informou o jornal Valor Econômico em 17/07/2012).

De investigado por sonegação de informações aos investidores passou Leonardo Pereira a chefe da autarquia que investiga empresas pelo mesmo motivo, sobrevindo logo após a estranhíssima decisão arquivando a representação ministerial, com a negação de aplicação de norma emitida pela própria Comissão.

A postura da Bovespa, companhia que administra a bolsa de valores no Brasil, não tem sido diferente da CVM, privilegiando os interesses das companhias que negociam seus valores em prejuízo do acesso à informação pelos investidores que recorrem à bolsa. Um notável afastamento de seu lema, “seu futuro bem investido”, que merecia ser adaptado para “seu futuro investido às cegas”.

Em outubro de 2013 o Ministério Público do Trabalho encaminhou à Bovespa uma representação em face de uma companhia do setor de processamento de carne, por motivo idêntico: sonegação de informações trabalhistas no Formulário de Referência.

“Novo Mercado”

A representação dizia respeito ao descumprimento das regras do “Novo Mercado”, supostamente o segmento da bolsa, criado pela Bovespa, que observaria normas mais rígidas de governança corporativa e proporcionaria menor risco ao investidor.

De fato, a Bovespa apresenta o “Novo Mercado” em seu sítio institucional nos seguintes termos: “Lançado no ano 2000, o Novo Mercado estabeleceu desde sua criação um padrão de governança corporativa altamente diferenciado. A partir da primeira listagem, em 2002, ele se tornou o padrão de transparência e governança exigido pelos investidores para as novas aberturas de capital. Na última década, o Novo Mercado firmou-se como uma seção destinada à negociação de ações de empresas que adotam, voluntariamente, práticas de governança corporativa adicionais às que são exigidas pela legislação brasileira. A listagem nesse segmento especial implica na adoção de um conjunto de regras societárias que ampliam os direitos dos acionistas, além da adoção de uma política de divulgação de informações mais transparente e abrangente. O Novo Mercado conduz as empresas ao mais elevado padrão de Governança Corporativa. As companhias listadas no Novo Mercado só podem emitir ações com direito de voto, as chamadas ações ordinárias (ON).

Para ingressar no “Novo Mercado” as companhias interessadas precisam assinar um contrato com a Bovespa, assumindo a obrigação de cumprir fielmente, só pena de sanções, as regras contidas no “Regulamento de Listagem da Nova Bolsa”, incluindo o dever de disponibilizar aos investidores as informações exigidas pela legislação.

Nesse sentido, em sua cláusula 6.1 o Regulamento de Listagem do Novo Mercado estabelece: “Informações Periódicas. A Companhia deverá apresentar as seguintes informações periódicas, observando as condições e prazos previstos na regulamentação vigente: (i) Demonstrações financeiras; (ii) Formulário de demonstrações financeiras padronizadas – DFP; (iii) Formulário de informações trimestrais – ITR; e (iv) Formulário de referência”.

No caso a que se referia a representação, o frigorífico não apenas havia omitido o fato de que responde a numerosas ações civis públicas trabalhistas, como ainda afirmava que só respondia, perante a Justiça do Trabalho, a ações movidas por ex-empregados, declaração francamente falsa.

Mostrava-se especialmente preocupante a sonegação da informação de que, entre as ações coletivas às quais responde na Justiça do Trabalho, está uma ação civil pública movida pelo MPT em agosto de 2012 que diz respeito, entre vários outros assuntos, à discriminação de trabalhadores, havendo por esse motivo um pedido (que decorre de expressa previsão legal – art. 3º da Lei 9.029/95) para que seja a empresa condenada a não receber qualquer empréstimo ou financiamento junto a instituições financeiras oficiais, inclusive o BNDES.

É óbvio que um pedido com tal alcance, capaz de impactar seriamente os negócios da companhia e sua capacidade de investimento, jamais poderia ter sido ocultado.

Apesar da relevância do tema, em menos de um mês do recebimento da petição ministerial a Bovespa providenciou o arquivamento da representação, nos seguintes termos: “Diante dos esclarecimentos prestados pela Companhia e tendo como premissa o estabelecido no Artigo 14 da Instrução CVM n. 480/09 e no item 1 do Formulário de Referência (Anexo 24 da Instrução CVM n. 480/09), que atribuem ao emissor a responsabilidade pela veracidade, precisão e integridade das informações prestadas, não existem outras medias a serem tomadas pela BM&FBOVESPA com relação aos fatos relatados por V. Sa., exceto se apurada mediante processo administrativo instaurado pela Comissão de Valores Mobiliários, a ocorrência de infração aos comandos informacionais previstos na Instrução CVM n. 480/09”.

Por tal resposta pode ser aquilatado quão séria é a garantia proporcionada aos investidores pela Bovespa com o “Novo Mercado”. Quando demonstrado o descumprimento das regras instituídas pela própria Bovespa para permanência no “Novo Mercado”, a Bovespa limita-se a lavar as mãos, afirmando categoricamente que o fato não lhe diz respeito, e que de qualquer forma não lhe caberia verificar a “veracidade, precisão e integridade” das informações prestadas pelas companhias.

Ora, se o dever de informar interessa apenas à CVM, o que a obrigação está fazendo, como antes transcrito, no “Regulamento de Listagem do Novo Mercado”, cuja estrita fiscalização a Bovespa faz questão de prometer publicamente, como segurança aos investidores? E o que dizer da sugestão de que as companhias estão livres para mentir e omitir informações aos investidores, se bem quiserem?

Percebe-se que a garantia proporcionada pela listagem no “Novo Mercado” constitui uma ilusão, não tendo a Bovespa interesse ou disposição para dar cumprimento às regras que ela própria criou, não obstante esteja em jogo o direito dos investidores à informação relevante. Age a Bovespa, em suma, e com enorme agilidade, em defesa dos interesses das companhias que negociam ações na bolsa e em detrimento dos investidores que são, supostamente, os principais destinatários da atenção da Bovespa.

Não admira, então, que tantos investidores tenham sido surpreendidos, recentemente, amargando enormes prejuízos após investir em companhias que figuravam no “Novo Mercado”, como nas empresas do ex-bilionário Eike Batista. O “Novo Mercado” é um jogo de aparências, destinado a ludibriar investidores incautos e a beneficiar companhias, não é algo real.

Companhias x investidores

Concluímos, então, que os investidores em geral possuem enorme e legítimo interesse de ter acesso a informações acerca da existência ou não de graves problemas trabalhistas nas empresas em que pretendem investir, já que tal informação é vital à análise do risco existente e do retorno esperado ao investimento.

Afinal, empresas sustentáveis do ponto de vista trabalhista costumam ser mais sólidas, organizadas e produtivas, e proporcionam menor risco. Constatamos que tal pretensão está em sintonia com os interesses dos trabalhadores, aos quais se mostra benéfico que empresas que proporcionem melhores condições de trabalho sejam identificadas pelos investidores e recebam, em razão disso, a merecida preferência na captação de investimentos.

Vimos ainda que já se encontra em vigor legislação contemplando o dever de informar, normas que, se cumpridas, proporcionariam proteção aos interesses tanto de investidores quanto de trabalhadores, favorecendo melhores práticas trabalhistas e empresariais, bem como o avanço da competitividade e produtividade das empresas brasileiras.

E descobrimos que, lastimavelmente, os órgãos que possuem por missão exigir o cumprimento de tais normas, Comissão de Valores Mobiliários e Bovespa, não possuem qualquer disposição de fazê-lo e rejeitam o papel institucional que possuem, eis que dão preferência aos interesses particulares das companhias que deveriam fiscalizar em detrimento dos investidores.

Rafael de Araújo Gomes é procurador do Trabalho em Araraquara/SP.

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