Home-office é bom, mas é ruim

Fotografia: Pixabay

Trabalho remoto em casa suscita novos problemas nas relações laborais.

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 10/08/2020

Tom Jobim nasceu no Rio de Janeiro em 1927 e viveu nessa cidade até meados dos anos 1960, quando se mudou de mala e cuia para Nova Iorque. De volta à sua cidade natal nos anos 1980, foi perguntado por um repórter se preferia viver aqui ou no exterior. O genial compositor carioca assim resumiu sua indecisão: “Morar nos Estados Unidos é bom, mas é uma merda; morar no Brasil é uma merda, mas é bom”. O autor de “Águas de Março”, na sua sensibilidade de artista, sabia que a vida é feita de paradoxos.

A pandemia nos trouxe um desses grandes paradoxos: milhões de pessoas mundo afora passaram a trabalhar remotamente, em casa, através de computadores conectados à internet.  Essa nova realidade laboral é um progresso do ponto de vista humano? Parafraseando a máxima jobiniana, eu responderia que “trabalhar em casa é bom, mas é ruim; trabalhar na empresa é ruim, mas é bom”.

Creio que, como regra geral, há mais desvantagens do que vantagens no trabalho domiciliar. E isso vale tanto para o empregado como para o empregador. Claro que essa “regra geral presumida” tem tantas exceções que podem invalidar a minha proposição, pois há muitas variáveis envolvidas, como o tipo de atividade econômica empresarial, a natureza da prestação laboral, a proximidade da sede da empresa e acessibilidade de transporte público, a personalidade e psiquê individual de cada trabalhador, os recursos disponíveis na residência do empregado e a seu ambiente familiar, os meios de controle sobre a pessoa do empregado, entre tantos outros fatores importantes para a implantação bem-sucedida de home-office.

Mesmo na presença de condições favoráveis, creio que a experiência do home-office implica em vários prejuízos – ao empregado e ao empregador – pela perda da “sociabilidade laboral”. A identidade de homens e mulheres como trabalhadores ou trabalhadoras é forjada no convívio sob a similaridade de relações de trabalho. A “solidariedade de classe” é impossível de ser formada sem a existência de vínculos prévios suscitados pela convivialidade e identificação no “outro” da similitude de condições de vida.

Isso poderia parecer uma “vantagem” aparente ao empregador: a redução da solidariedade de classe pela falta de convívio social certamente dificulta a organização dos trabalhadores e a ação sindical. Mas essa vantagem ilusória obscurece uma outra desvantagem ao empregador decorrente da perda de sociabilidade laboral, com grande potencial para reduzir os seus lucros: o desestímulo ao trabalho em equipe e à competição entre os trabalhadores por promoção na carreira.

O empregado que trabalha sozinho em casa reluta muito mais a trocar ideias com colegas do que aquele que executa as tarefas presencialmente; da mesma forma, os empregados em home-office costumam executar suas atividades de forma mais burocrática e desinteressada, por acreditar que o seu empenho não está sendo devidamente avaliado, buscando “livrar-se” dos encargos o mais rápido possível para maximizar o seu tempo em casa. Muitas empresas nos Estados Unidos que adotaram o home-office no início dos anos 2000 acabaram revertendo a prática porque ela provocou enorme perda de criatividade em suas equipes, especialmente em setores onde isso é fundamental, como publicidade, design, serviços jurídicos, desenvolvimento de software, vendas, etc.

A própria permanência do trabalhador em sua casa, especialmente quando trabalha “por tarefa” e sem horários muito rígidos, tende a torná-lo mais indisciplinado, o que pode se refletir em sua produtividade. Claro que esse aspecto depende muito da personalidade de cada trabalhador e de suas condições materiais para o home-office.

Outro aspecto ainda pouco estudado por psicólogos laborais diz respeito ao impacto diverso que o home-office pode provocar nos trabalhadores conforme a sua idade e estado civil. Depois de sair do colégio ou da faculdade, é no trabalho onde a maior parte das pessoas jovens e solteiras estabelece seus mais consistentes laços sociais, o que inclui a facilitação para encontrar o futuro companheiro ou companheira. De acordo com a colunista do New York Times Jennifer Senior, há pesquisas nos EUA apontando que até 30% das pessoas casadas indicam que conheceram o seu cônjuge no trabalho. Ainda segundo ela, em empresas de grande porte como companhias aéreas, cerca de dez por cento dos trabalhadores são casados com colegas de profissão.  Ela também dá exemplos bastante famosos de casais que se conheceram no trabalho: Barack e Michelle Obama, Bill e Melinda Gates.

Embora esses fatos possam parecer anedóticos, o impacto psicológico do home-office em pessoas solteiras (e que muitas vezes vivem sozinhas) não pode ser desprezado, já que a solidão e a anomia podem levar a quadros de depressão, desinteresse pelo trabalho e baixa produtividade laboral.  Esse é certamente um fator que explica por que pessoas casadas e com filhos tendem a preferir o home-office em relação a empregados solteiros e sem filhos.

Mesmo para os grupos que dizem preferir o home-office (como os trabalhadores casados com filhos), esse novo regime de trabalho pode representar um canto-da-sereia, já que os seus efeitos deletérios talvez só possam ser avaliados no longo prazo. Como já referi, o trabalho domiciliar é um forte embaraço à ação sindical, o que pode significar achatamento salarial ao longo do tempo. Além disso, o empregador tende naturalmente a priorizar a negociação individual com os trabalhadores em home-office do que a resolver problemas de trabalho coletivamente com um representante dos trabalhadores.

A própria existência de um contrato formal de trabalho fica ameaçada, já que muitos empregadores, diante da aparente flexibilidade do trabalho em domicílio e da fragilidade de representação coletiva, podem ficar inclinados a transformar (ilegalmente) seus empregados em “pessoas jurídicas”, especialmente no atual quadro de insegurança trazido pelas sucessivas “reformas trabalhistas”.

Além disso, custos que tradicionalmente são suportados pelo empregador, como energia, despesas imobiliárias, asseio e conservação, conexão com internet, mobiliário ergonômico e alimentação, entre outros, passam a ser administrados pelo empregado, se não houver negociação individual ou coletiva em contrário. Embora esses custos possam parecer pequenos quando analisados em módulo mensal, podem representar mais uma forma de achatamento salarial no longo prazo.

A própria ideia de que se “trabalha menos” em casa é bastante duvidosa. Os controles laborais por meio de algoritmos que vêm sendo desenvolvidos pela cibernética (neotaylorismo) tendem a estabelecer metas que induzem à aceleração do ritmo de trabalho, ainda que remotamente. Em pesquisa desenvolvida pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ, coordenada pelo Prof. Rodrigo Carelli, que entrevistou mais de trezentos advogados que passaram a laborar remotamente na pandemia, 59% responderam que o teletrabalho intensificou a demanda de serviço; 58% relataram sentir-se mais cansados e 61% declararam estar mais estressados.

Esses e outros dados já conhecidos demonstram que a extrema facilidade de comunicação por meios telemáticos, que permite ao empregador contatar o empregado “em qualquer lugar, a qualquer hora”, deve suscitar um importante debate sobre o direito à desconexão e à necessidade de um “muro de separação” entre trabalho e convívio familiar.

A forma como nos relacionamos com o trabalho – deslocando-nos diariamente de casa até a empresa ou repartição e lá cumprindo um expediente – é relativamente recente na história da humanidade.  Ela foi estabelecida apenas nos últimos dois séculos e meio, como resultado da Revolução Industrial, cuja lógica de trabalho centralizado e sob o relógio foi expandida para além da fábrica, sendo implantada no comércio, na administração pública e no setor de serviços.

Essa técnica, tão essencial ao capitalismo moderno, pressupõe tradicionalmente o controle presencial ou semi-presencial do empregador sobre a pessoa do empregado. Mas a técnica em si de controle laboral não desaparecerá com o trabalho remoto, pois não há capitalismo sem “compra de trabalho” (e sem vigilância sobre a fiel execução desse contrato). Bom ou ruim, é preciso lembrar que o home-office é apenas uma nova e refinada forma de imposição desses mecanismos de controle, que precisa ser muito bem regulada pelo Direito para preservar a esfera individual inalienável de liberdade, intimidade e privacidade dos trabalhadores.

Cássio Casagrande é doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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