Evolução recente do emprego doméstico no Brasil

No mês de abril, completaram-se sete anos desde a aprovação de emenda constitucional que deu origem a uma importante regulamentação do emprego doméstico no Brasil. A Emenda Constitucional n. 72 (PEC das domésticas), de 2 de abril de 2013, e a Lei Complementar n. 150, de 1° de junho de 2015, estenderam às empregadas domésticas um amplo leque de direitos antes previstos aos trabalhadores assalariados em geral, mas não necessariamente às domésticas. Destacam-se, dentre esses direitos, a proteção do salário, a jornada máxima, o pagamento de horas extras, a segurança no trabalho, o FGTS obrigatório e o seguro-desemprego. Em dois artigos produzidos para o site Democracia e Mundo do Trabalho em Debate, analisamos a evolução recente do emprego doméstico no Brasil. O primeiro artigo trata do país como um todo, enquanto o segundo artigo destaca diferenças entre as grandes regiões.

Por Virginia Rolla Donoso e Carlos Henrique Horn

Durante a primeira década deste século, e pelo menos até o ano de 2014, o número de pessoas ocupadas na condição de empregadas domésticas [1] no Brasil vinha diminuindo gradativamente, fazendo com que sua participação no mercado de trabalho passasse de um percentual de 9% do total de ocupados em 1999 para quase 6% em 2014. Os indicadores do mercado do trabalho doméstico evidenciavam que uma mudança de largo alcance estava em curso no Brasil, com rápida redução da importância de um tipo de ocupação que deita raízes na transformação do trabalho escravo em trabalho assalariado a partir de fins do século XIX e nas migrações do meio rural para o urbano no século XX. Ao final desse século, o Brasil era um dos países em que o emprego doméstico ainda representava uma alternativa muito importante para as famílias pobres. Em poucos anos, porém, o quadro parecia ter mudado. Até o ano de 2014, não apenas houve grande redução no número de empregadas domésticas, como seu perfil sofreu sensível mudança, em especial com o envelhecimento das ocupadas num ritmo bastante superior ao que ocorria com a população brasileira. Num mercado de trabalho aquecido e com baixo desemprego, jovens mulheres conseguiam se ocupar em atividades do comércio e em outros serviços, aparentemente quebrando o ciclo familiar que as destinava ao trabalho doméstico remunerado [2].

A emergência da recessão de 2015-16, no entanto, foi acompanhada por uma reversão na tendência de contração do emprego doméstico no Brasil. Neste artigo, exploramos as estatísticas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE com o intuito de descrever a trajetória recente do nível do emprego doméstico. Em especial, procuramos contrastar a evolução do emprego doméstico na recessão (2015-16) e nos anos de baixo crescimento (2017-19) com sua posição no ano que antecede o aprofundamento da conjuntura de recessão e estagnação na economia nacional (2014).

Como a série de dados da PNAD Contínua inicia no ano de 2012, podemos constatar que o comportamento do mercado do trabalho doméstico antes da recessão ainda refletia a tendência de diminuição no nível do emprego doméstico que se estendia desde a década anterior. Às vésperas da recessão, havia 5.944 mil pessoas empregadas como domésticas no Brasil, correspondendo a 6,49% do total de ocupados. A partir de então, como se observa na Figura 1, o número de domésticas voltou a crescer. Em 2019, o emprego doméstico ocupava 6.249 mil pessoas e representava 6,69% da estrutura ocupacional brasileira.

Figura 1 – Número de empregadas domésticas (mil pessoas) e participação no total de ocupados (%), Brasil, 2012-19

Fonte: PNAD Contínua, IBGE. Elaboração dos autores.

Há dois tipos básicos de inserção laboral no mercado do trabalho doméstico: empregadas mensalistas e empregadas diaristas. Em geral, as mensalistas, como o próprio termo indica, são contratadas para realizar serviços num mesmo domicílio ao longo de todo o mês, recebendo um salário pago no dia ajustado com seu empregador. Já as diaristas realizam serviços em mais de um domicílio, normalmente na limpeza da casa, recebendo seu pagamento no mesmo dia em que o serviço é prestado. No entanto, em sua divulgação mensal, a PNAD Contínua não chega a apresentar os dados do emprego doméstico decompostos nas categorias de mensalistas e diaristas. Alternativamente, oferece informações sobre as empregadas domésticas que têm registro do contrato em carteira de trabalho (com carteira) e as que não têm esse registro (sem carteira), bem como sobre as empregadas que trabalham em um único domicílio e as que trabalham em mais de um domicílio.

No ano de 2019, havia 1.764 mil empregadas domésticas com carteira (28,23%) e 4.484 mil empregadas sem carteira (71,77%) no Brasil. Ao longo do quinquênio de recessão e estagnação da economia, os dois grupos mostraram distintos comportamentos. Assim, o número de empregadas com carteira aumentou até 2016, quando chegou a representar um terço do total de domésticas, mas diminuiu substancialmente no triênio seguinte. Já o número de empregadas com carteira apresentou um pequeno crescimento entre 2014 e 2016, que acelerou a partir de então. Na Figura 2, observam-se as trajetórias do número de empregadas em cada categoria (eixo da esquerda) e de sua participação no total de domésticas (eixo da direita).

Figura 2 – Número de empregadas domésticas com e sem carteira (mil pessoas) e participação no total de domésticas (%), Brasil, 2012-19

(a) Empregadas domésticas com carteira

(b) Empregadas domésticas sem carteira

Fonte: PNAD Contínua, IBGE. Elaboração dos autores.

O outro recorte dos dados habitualmente divulgados pelo IBGE refere-se aos grupos das domésticas que trabalham em um único domicílio e das domésticas que trabalham em mais de um domicílio. Em 2019, o primeiro grupo totalizava 4.374 mil pessoas e representava 70% do emprego doméstico no Brasil. Ao longo do período de recessão e estagnação econômica, e mesmo antes de 2015, o número e a proporção das empregadas domésticas que trabalham em um único domicílio mostraram propensão a diminuir – em comparação com o ano de 2012, houve redução de 264 mil pessoas. Contrariamente, o número de domésticas que trabalham em mais de um domicílio cresceu continuamente nos anos recentes e chegou a 1.875 mil pessoas em 2019, correspondendo a 30% do emprego doméstico. Em comparação com o ano de 2012, houve um aumento de 405 mil pessoas no grupo. A Figura 3 apresenta as trajetórias de ambos os grupos de domésticas entre 2012 e 2019.

Figura 3 – Número de empregadas domésticas que trabalham em um único domicílio ou em mais de um domicílio (mil pessoas) e participação no total de domésticas (%), Brasil, 2012-19

(a) Empregadas domésticas que trabalham em um único domicílio

(b) Empregadas domésticas que trabalham em mais de um domicílio

Fonte: PNAD Contínua, IBGE. Elaboração dos autores.

A evolução recente do nível do emprego doméstico como um todo e de seus segmentos, conforme as classificações da PNAD Contínua, permite algumas qualificações importantes. Assim, nos anos da recessão e estagnação da economia brasileira, ocorreu uma reversão na tendência de queda no número e na participação das domésticas que acompanhara a diminuição do desemprego desde os primeiros anos do século XX. A piora do mercado de trabalho a partir de 2015, restringindo as oportunidades de inserção na ocupação formal, teria ocasionado uma retomada da oferta de pessoas para os serviços domésticos. Além disso, como ilustra a Figura 4, a estagnação no rendimento médio real do trabalhador doméstico depois de anos de crescimento robusto, apontaria para uma redução do custo desses serviços, medido em relação ao rendimento médio real do total de ocupados.

Figura 4 – Rendimento médio real habitualmente recebido por empregadas domésticas, Brasil, 2012-19 (em R$)

Nota: valores atualizados para out./dez. 2019.
Fonte: PNAD Contínua, IBGE. Elaboração dos autores.

Considerado o quinquênio 2015-19 como um todo, essa nova expansão do nível e da participação do emprego doméstico na estrutura ocupacional brasileira concentrou-se na forma mais precária do trabalho sem carteira assinada. Vale dizer, o crescimento do número de domésticas muito provavelmente ocorreu nos subgrupos das mensalistas sem carteira e das diaristas. Em alguma medida, ainda a ser melhor estudada, o aumento no número de empregadas sem carteira pode também indicar uma fuga de parte dos empregadores das obrigações derivadas da nova legislação do emprego doméstico, consagrando uma prática largamente majoritária nesse mercado, como indica a elevada proporção de domésticas sem carteira mesmo antes da crise e da vigência da nova legislação. Além disso, foi nesse subgrupo das domésticas sem carteira que o rendimento médio real habitualmente recebido pelas trabalhadoras se manteve virtualmente estagnado num nível levemente inferior ao que havia sido praticado no ano de 2014.

De certa forma, a trajetória do emprego doméstico descortina as vicissitudes do mercado de trabalho brasileiro nos anos recentes. O forte aumento na desocupação retirou oportunidades de melhor emprego, sobretudo das famílias de menor renda, que tiveram que buscar seu sustento em atividades informais e mais precárias. A esperança anterior de poder adiar a entrada de seus filhos no mercado de trabalho para que pudessem estudar ou de vê-los trabalhar em empregos de melhores condições foi substituída pela dura realidade da sobrevivência em qualquer ocupação, sujeitando-os à conhecida disciplina de um mercado de trabalho sem crescimento dos postos de trabalho formais.

Notas

[1] Há larga predominância das mulheres no emprego doméstico no Brasil, representando mais de 90% desta ocupação. Assim, optamos por adotar a declinação no feminino quando nos referirmos ao conjunto das ocupadas (mulheres e homens).

[2] Ver os estudos de Cristina Vieceli e outros pesquisadores. Em especial, Vieceli, Wünsch e Steffen (2017) e Vieceli, Furno e Horn (2017).

Referências

VIECELI, C. P.; WÜNSCH, J. G.; STEFFEN, M. W. Emprego doméstico no Brasil: raízes históricas, trajetórias e regulamentação. São Paulo: LTr, 2017.

VIECELI, C. P.; FURNO, J.; HORN, C. H. Recessão econômica e emprego doméstico no Brasil. Gênero, Niterói, v. 18, n. 1, p. 26-55, jun./dez. 2017.

Virginia Rolla Donoso é economista e trabalha no site Democracia e Mundo do Trabalho. É mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Carlos Henrique Horn é economista e diretor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É doutor em Industrial Relations pela London School of Economics and Political Science.

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