Ética e luta de classes no século XXI

Mudanças tecnológicas redefiniram os termos da disputa. Na era da produção imaterial, a arma dos que querem quer manter a riqueza concentrada são patentes e catracas eletrônicas. E o Conhecimento Livre é nova bandeira anticapitalista.

Ladislau Dowbor

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 19/09/2020

Em outra era – e esse é ainda o caso do produtor rural, em particular –, a casa se localizava em cima da própria terra, morar e trabalhar faziam parte do mesmo espaço, e toda a família participava, o menino e a menina com poucos anos já ajudavam. A lógica da era industrial gerou o êxodo para as cidades, que se constituíram em torno das grandes unidades produtoras, a usina, a fábrica, os escritórios. O trabalhador passou a alugar a sua força de trabalho por um determinado número de horas por dia, fazendo o que mandassem. Individualmente, passamos a constituir capacidades produtivas disponíveis para aluguel, pagos por hora, por dia ou por mês segundo as circunstâncias. É o chamado emprego.

O vínculo salarial, que hoje ainda nos parece a forma natural de ganhar a vida, de poder sustentar a nossa família, está mudando, não por ideologias, mas porque a sociedade do conhecimento, densa em tecnologia, está mudando as relações de trabalho. Robert Reich, no seu O futuro do sucesso, considera que o vínculo salarial tradicional terá duração de 150 anos e será substituído por outras formas de relação. Sem entrar no exagero de O fim dos empregos, de Jeremy Rifkin, o fato é que as relações de trabalho se deslocam segundo algumas grandes linhas que estão se tornando claras.

A revolução tecnológica que vivemos – tal como foi a Revolução Industrial – gera uma fratura entre o trabalho sofisticado e criativo dos que organizam e gerem o sistema e o trabalho dos que apenas operam segundo instruções recebidas, cada vez mais substituídos pela automação, pela robótica e pela inteligência artificial. Isso envolve, inclusive, os chamados profissionais, como arquitetos, advogados, economistas e semelhantes, conforme a pesquisa de Richard e Daniel Susskind, The Future of the Professions: How Technology Will Transform the Work of Human Experts [O futuro das profissões:como a tecnologia transformará o trabalho de especialistas humanos]. Por exemplo, o trabalho mais conceitual de advogados de primeira linha se sofistica, mas o amplo emprego de juristas novatos que faziam as pesquisas de jurisprudência e organização de informação nos grandes escritórios de advocacia tende a desaparecer, pois hoje está tudo online e acessível por meio de algoritmos de pesquisa inteligente.

Por exemplo, pelo menos em boa parte, os consultores fiscais já estão sendo desintermediados por softwares de declaração de impostos online,os advogados, por sistemas de ordenamento de documentos, os médicos, por aplicativos de diagnóstico, os professores, pelos Moocs [massive open online courses – cursos online abertos e massivos], os arquitetos, por sistemas CAD online e os jornalistas, por blogueiros.1

O processo agrava outra dinâmica preexistente, que é a do trabalho informal. De tanto acompanharmos as estatísticas de desemprego, esquecemos do que se trata. Se no Brasil, antes da pandemia de covid-19, o desemprego estava estimado em 11,6 milhões de pessoas, quase 11% da população economicamente ativa, igualmente ou mais grave é o imenso desemprego oculto representado pelas pessoas que já não se declaram na força de trabalho por terem desistido de procurar (terem saído da população ativa por desalento) ou por aquelas que cada vez mais sobrevivem no mundo do “bico organizado”, atividades absurdas e de transição, como as dos telecentros e dos terceirizados precários de diversos tipos. De maneira mais ampla, temos de considerar a imensa faixa de informais – 38,4 milhões no Brasil – que apenas “se viram” das mais diversas formas, com renda que representa menos da metade do setor formal. Somando os desempregados e o setor informal da economia, estamos falando em 50 milhões de pessoas. O trabalho informal é da ordem de 30% a 40% na América Latina, chegando a 70% nos países do Norte da África. São pessoas que nunca chegaram a se empregar realmente, com todos os direitos, e cujas esperanças de inserção recuam à medida que avança a nova onda tecnológica. O que caracteriza esta era é uma gigantesca subutilização das capacidades produtivas da população mundial, mal acobertada com a alegação de que não é o sistema que é falho, e sim as pessoas que não dispõem da “empregabilidade” adequada seriam “inempregáveis”2.

Mesmo nos espaços mais sofisticados do emprego criativo, ter a pessoa sentada junto à mesa de trabalho durante oito horas por dia pode não ser a melhor opção para a empresa: muito trabalho desse tipo já está sendo realizado em casa, e o que interessa não é mais o relógio de ponto e a presença física do trabalhador, e sim a rede interativa de pessoas conectadas, seja qual for a sua localização. Em estudo sobre o impacto da era digital sobre o emprego, o Livro Branco Trabalhar 4.0, publicado pelo Ministério Federal de Trabalho e Assuntos Sociais da Alemanha, sugere que “muitos esperam que a economia das plataformas gere um aumento na quantidade de trabalhadores autônomos, sobretudo naqueles de caráter unipersonal, que podem oferecer seus serviços e produtos de maneira simples e econômica”3. André Gorz utiliza o conceito de “autoempreendedor”4:

A grande firma não conservas e não um pequeno núcleo de assalariados estáveis e em período integral. O restante de “seu”pessoal – ou seja, 90% no caso das cem maiores empresas americanas – será formado de uma massa variável de colaboradores externos, substitutos, temporários, autônomos, mas igualmente de profissionais de alto nível. A firma pode se desincumbir, no que diz respeito a esses externos, de uma parte crescente do custo (do valor) de sua força de trabalho23.

Até o tão cuidadoso Banco Mundial desperta:

Ajustar-se à mudança da natureza do trabalho também exige que se repense o contrato social. Precisamos de novas maneiras de investir nas pessoas e de protegê-las, seja qual for a sua situação empregatícia. No entanto, quatro de cada cinco pessoas nos países em desenvolvimento nunca souberam o que é viver com proteção social. Com 2 bilhões de pessoas que já trabalham no setor informal – sem a segurança de um emprego estável, das redes de proteção social e dos benefícios da educação –, os novos moldes de trabalho ampliam um dilema que antecede as recentesinovações5.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também aponta para a falência do atual contrato social, que não responde nem aos desequilíbrios herdados, nem aos novos desafios: “A adoção de medidas urgentes para fortalecer o contrato social em cada país exige que se aumentem os investimentos nas capacidades das pessoas e das instituições do trabalho, e que se orientem as oportunidades no sentido de um trabalho decente e sustentável”25. Isso, por sua vez, envolve

incluir aquelas pessoas que historicamente permaneceram excluídas em grande escalada justiça social e do trabalho decente, em particular as que trabalham na economia informal. Implica, ademais, tomar medidas inovadoras para enfrentar a diversidade cada vez maior de situações em que se apresenta o trabalho e, em particular, o fenômeno emergente do trabalho digital através da economia de plataformas. Consideramos que a Garantia Universal do Trabalho é uma ferramenta adequada para responder a esses desafios […].26

Nessas tentativas de olhar para o futuro do emprego, há muito tateamento inseguro. Mas o que se constata, de forma geral, é uma mudança profunda nesse eixo fundamental do capitalismo tradicional que é a relação de trabalho. A fragilização das organizações sindicais e dos trabalhadores diante dos mecanismos de exploração é patente. No universo fragmentado e hierarquizado do trabalho, a construção de movimentos de solidariedade torna-se mais difícil. É irônico vermos no Brasil, a partir do golpe, um processo que nos joga para o passado em termos de garantias e segurança, quando se trata justamente de proteger e de expandir direitos, e de retomar a dinâmica do desenvolvimento. As soluções, a meu ver, estão nas novas formas de inserção que a economia do conhecimento permite.

A lógica do capital cognitivo

Vimos anteriormente uma característica fundamental da economia do conhecimento: trata-se de um fator de produção cujo uso não reduz o estoque. Em outros termos, poderia ser socializado de forma universal sem gerar custos adicionais. Isso muda em profundidade a lógica do capitalismo. Fazendo a relação entre essa característica do capital cognitivo e a lógica do valor, Gorz escreve:

[…] a expressão “economia do conhecimento” significa transtornos importantes para o sistema econômico. Ela indica que o conhecimento se tornou a principal força produtiva, e que,consequentemente, os produtos da atividade social não são mais, principalmente, produtos do trabalho cristalizado, mas sim do conhecimento cristalizado. Indica também que o valor de troca das mercadorias, sejam ou não materiais, não mais é determinado em última análise pela quantidade de trabalho social geral que elas contêm, mas, principalmente, pelo seu conteúdo de conhecimentos, informações, de inteligências gerais. É esta última, e não mais o trabalho social abstrato mensurável segundo um único padrão, que se torna a principal substância social comum a todas as mercadorias. É ela que se torna a principal fonte de valor e de lucro, e assim, segundo vários autores, a principal forma do trabalho e do capital6.

Estamos aqui alterando profundamente a teoria do valor, que se baseava no custo relativamente homogêneo da força de trabalho e na mais-valia. “A heterogeneidade das atividades de trabalho ditas ‘cognitivas’, dos produtos imateriais que elas criam e das capacidades e saberes que elas implicam, torna imensuráveis tanto o valor das forças de trabalho quanto o dos seus produtos. […] A crise da medição do trabalho engendra inevitavelmente a crise da medição do valor.”28 Uma visão semelhante é apresentada por Gar Alperovitz e Lew Daly no excelente Apropriação indébita:

Dividir o bolo da economia – mesmo por uma aproximação grosseira de contribuições e recompensas, como muitas outras situações de barganha tentam fazer – torna-se até mesmo extremamente difícil quando compreendemos, no que tange ao crescimento, a centralidade das contribuições baseadas em conhecimento histórico. Quem ou o que gera o crescimento – em qualquer sentido moralmente relevante é, para dizer o mínimo, uma questão muito mais complicada. Tudo isso, sugeriu Daniel Bell, requer uma nova “teoria do valor-conhecimento” [knowledge theory of value], especialmente à medida que avançamos mais profundamente na esfera da altatecnologia29.

Na medida em que o conhecimento pode ser incorporado indefinidamente em mais atividades sem custos adicionais, característica que embasa a “economia com custo marginal zero”, conforme a definição de Rifkin, o eixo da guerra do capital para se valorizar se desloca no sentido de gerar a escassez do principal fator de produção, o conhecimento. A ampliação e extensão do conjunto de direitos sobre a propriedade intelectual, com cobrança de copyrights, patentes, royaltiese outras taxas, encontra aqui a sua lógica principal: é dessa forma que se realiza a apropriação privada dos meios de produção quando estes são imateriais e, por natureza, podem ser de acesso aberto e gratuito. Quando um fator de produção é abundante, não há como uma empresa dele extrair valor de troca, tal como não se cobra a utilização do ar. Em vez de generalizar gratuitamente o acesso ao conhecimento criado, e assim assegurar um valor social muito mais amplo, o capital busca aqui restringir esse acesso, pois a escassez é que gera o valor de troca mais elevado. Enzo Rullani, em “Le Capitalisme cognitif” [O capitalismo cognitivo], explicita isso claramente: “O valor do conhecimento está, pois, inteiramente ligado à capacidade prática de limitar sua livre difusão, ou seja, de limitar, com meios jurídicos (certificados, direitos autorais, licenças, contratos) ou monopolistas, a possibilidade de copiar, de imitar, de ‘reinventar’, de aprender conhecimentos dos outros”7

Os imensos recursos acumulados pelos gigantes farmacêuticos, por exemplo, são essencialmente baseados no travamento do direito de produzir os medicamentos essenciais para a sociedade e cujo custo de produção e lucro correspondente já foram amplamente cobertos8. A partir desse ponto, trata-se, como sustenta Stiglitz, de rentismo, “unearne dincome”. O sobrecusto para a sociedade será, por sua vez, transformado em rendimentos financeiros, conforme vimos. Mas é essencial realçar aqui que esse capitalismo cognitivo contribui menos para propiciar acesso do que para a geração artificial de escassez. Oligopólio em vez de concorrência de mercado, escassez em vez de abundância, rentismo em vez de lucro sobre a produção.

Os papéis dos sujeitos econômicos mudam. O que nos conecta ao sistema é hoje muito menos a troca entre produtores, de um lado, e consumidores, do outro, numa transação que envolve bens e serviços concretos, e muito mais o fluxo virtual de intangíveis. Passamos a nos conectar através de plataformas e temos de participar das plataformas que os outros usam, pois de outro modo ficamos isolados e sem poder alcançá-los. Preciso comunicar no WhatsApp porque todos se comunicam por esse sistema, preciso escrever no Word da Microsoft e assim por diante. É o chamado monopólio por demanda, temos de utilizar o que os outros usam, e isso permite aos que controlam a plataforma cobrar de maneira desproporcional pela contribuição. A apropriação privada da comunicação entre as pessoas, apoiada nas plataformas planetá- rias e na informação detalhada sobre os nossos gostos, relações, pensamentos, doenças e tantos outros detalhes, gera uma nova relação entre os sujeitos do processo econômico.

Douglas Heaven resume:

Facebook, Google, Apple e Amazon eludem os impostos de maneiras variadas, esmagam a competição e violam a privacidade, como registram as queixas. Os seus algoritmos inescrutáveis determinam o que vemos e o que sabemos, formatam opiniões, estreitam as visões de mundo e até subvertem a ordem democrática que lhes deu nascença. Em2018, uma revolta tecnológica [“te-chlash”] está em pleno vigor. Há amplo acordo de que algo deve ser feito relativamente à alta tecnologia.[…] Quer se trate da função “clientes que compraram isso também compraram”, da Amazon, ou das bolinhas vermelhas ou laranja que atraem a atenção para “algo novo” nos aplicativos do celular, os produtos da alta tecnologia [big tech] não são apenas bons, mas sutilmente desenha – dos para nos controlar, ou até nos tornar adictos – agarrar-nos pelos olhos e nos segurar. O resultado é a economia da atenção, cuja moeda édata9.

O deslocamentos dos mecanismos de mercado

O mercado é essencial como mecanismo regulador, mas não é nem de longe suficiente. Como mecanismo de livre concorrência, nele faz sentido a oferta e a procura definirem preços e quantidades. Em termos de estruturação dos processos produtivos, essa lógica supõe que o lucro do produtor resulte de uma resposta adequada às necessidades da sociedade, manifestadas pela demanda. Nesse sentido, o mercado pode ser visto na produção de inúmeros bens de consumo corrente, desde sapatos e automóveis até a pizza que pedimos. Mas a realidade hoje é que esse tipo de bens e serviços, onde a concorrência efetivamente joga um papel, constitui uma fatia cada vez menor das atividades econômicas.

No nível mais amplo, temos o gigantismo corporativo. Quando vemos os já mencionados 147 grupos que controlam 40% do sistema corporativo mundial, ou os 16 gigantes que controlam o essencial das commodities no mundo, ou ainda as 28 instituições financeiras sistematicamente importantes (Sifis – system ically important financial institutions), não há como não nos darmos conta de que se trata de uma estrutura de poder. Estudei essa estrutura em A era do capital improdutivo. Aqui me interessa o fato de que gigantes dessa dimensão, hoje dotados de sistemas de articulação, geram um imenso espaço de preços administrados, onde a tal concorrência “para melhor servir o cliente” permanece apenas em alguns segmentos da economia e no âmbito da pequena e da média empresas. Isso não exclui a guerra entre os grupos, naturalmente, guerra que alimenta gigantes da área jurídica e uma luta feroz pela indicação de ministros e de presidentes de bancos centrais, assim como pelo controle de segmentos da mídia.

Mas o mercado, no sentido original, sobrevive apenas nas brechas, e qualquer concorrente significativo que tente ocupar espaço no andar de cima será simplesmente quebrado, como o navegador Netscape, ou comprado, como o Instagram e o WhatsApp, ou ainda transformado em subcontratado de um grupo maior.

Fazemos face a uma gigantesca pirâmide de poder, em que os chamados executivos se tornaram essencialmente operadores políticos. Os que apontam indignados para políticos corruptos esquecem que se trata, hoje, em grande parte, de meros representantes dos corruptores. É o “Estado-biombo”, que permite que as políticas impostas pelas corporações apareçam como iniciativas impopulares dos governos; útil, mas inócuo para-raios da cólera cidadã. Como diz o comediante estadunidense George Carlin de maneira veemente, os políticos existem apenas para que pensemos que temos escolha34.

Outra mudança muito significativa na grande corporação é a tensão entre os técnicos e gestores de empresas, por um lado, os quais poderiam estar interessados no equilíbrio de longo prazo e na utilidade econômica e social do que fazem, e os interesses de curto prazo dos grandes acionistas, por outro, os chamados investidores institucionais, a esfera financeira em geral. Lynn Stout escreveu um livro importante sobre esse conflito, The Share holder Value Myth[O mito do valor para o acionista], em particular sobre o mito de que as corporações têm como obrigação legal defender os interesses dos acionistas. A autora demonstra que se trata muito mais de uma construção cultural e política do que propriamente de uma obrigação legal. Essa cultura, no entanto, aliada ao gigantismo dos investidores institucionais, os que detêm o grosso das ações, leva a que o interesse do rentismo, daqueles que investem em papéis financeiros, supere amplamente a visão de uma empresa que responda no longo prazo aos interesses da própria empresa, dos trabalhadores, das comunidades e do meio ambiente. O desmonte da Petrobras em função dos interesses dominantes de investidores financeiros internacionais é aqui apenas um exemplo a mais.

Nenhum operador financeiro vai entender o impacto real de “um conglomerado que vende de tudo, desde ração para animais de estimação até motores de avião e serviços financeiros. O que será considerado é a rentabilidade das aplicações. A British Petroleum (BP) defendeu bem os interesses de maior rentabilidade dos acionistas, mas gerou imensos custos externos para a vida marítima no Golfo do México, para a indústria pesqueira local, para o turismo e as cidades litorâneas.

[…]sob pressão do governo estadunidense na sequência do derrame de petróleo da Deepwater Horizon, a BP anunciou que suspenderia o pagamento regular dos dividendos. Isso suscitou uma onda de protestos dos pensionistas britânicos que dependiam dos dividendos da BP para as suas aposentadorias. A BP rapidamente concordou em retomar o pagamento de dividendos depois de anunciar planos de vender cerca de 30 bilhões de dólares em ativos,inclusive muitosdeseuscamposdepetróleo36.[…]

Ou seja, manter os dividendos, ainda que descapitalizando a empresa. A busca descontrolada de maximização dos lucros para alimentar os investidores institucionais levou a subinvestimento tecnológico, multiplicação dos riscos, prejuízos para o conjunto dos atores interessados, inclusive para o capital de base da em- presa. O interesse sistêmico e de longo prazo foi deixado de lado. Os exemplos desse tipo constituem uma lista infindável, desde fraude com medicamentos (GSK) ou com implantes (Johnson & Johnson) até o entupimento dos nossos alimentos com agrotóxicos e antibióticos (Bayer e inúmeras outras empresas), fraude nas taxas de juros (todos os grandes bancos, sem exceção), passando por apoio técnico e jurídico para evasão fiscal e lavagem de dinheiro (praticamente todos os grandes intermediários financeiros), fraude nos dados de emissão de poluentes (VW e muitas outras), venda de leite para crianças contaminado (Lactalis) e assim por diante. O leitor pode colocar o nome de qualquer empresa grande da sua preferência, por exemplo “GSK”, em um buscador da internet acompanhado da palavra “settlements”, ou seja, “acordos judiciais”, para ver a ficha corrida dos crimes cometidos por ela. Como comenta a The Economist, para as grandes empresas, “ficou cada vez mais difícil ficar dentro da lei”.

O divórcio entre os interesses do consumidor, da sociedade e do meio ambiente, por um lado, e os interesses financeiros de curto prazo, por outro, aprofunda-se. O que chamamos de mercado não é mais mercado, e sim uma estrutura política, financeira e jurídica (quando não militar) que desorganiza a economia. Em termos econômicos, Lynn Stout usa uma imagem forte: “Quando os interesses de investidores de curto e longo prazo divergem, o pensamento do acionista em termos de valor coloca os mesmos riscos que a pesca com dinamite. Alguns indivíduos poderão conseguir resultados imensos e imediatos. Mas, no conjunto e com o tempo, os investidores e a economia perdem”. E isso apesar dos imensos avanços tecnológicos que os pesquisadores e organiza- dores dos processos efetivamente produtivos estão assegurando. Não se trata de falta de meios técnicos ou financeiros, e sim da orientação política do seu uso.

Até aqui vimos as transformações na base produtiva da sociedade, com a evolução para a economia do conhecimento, intangível na designação de uns, imaterial na de outros, mas essencialmente ancorada em sinais magnéticos. Na era da conectividade planetária por meio da internet, dos smartphones e de outros instrumentos de estocagem, gestão e transmissão de conhecimento, a própria lógica do capitalismo se desloca. A base técnica transformada gera, por sua vez, um conjunto de relações sociais de produção que atingem tanto o mundo do trabalho – com uma nova hierarquização, outros vínculos profissionais e formas de exploração – como o mundo corporativo, com as gigantescas plataformas nas quais estamos todos condenados a navegar. Em particular, a própria desmaterialização do dinheiro e sua volatilidade no espaço virtual deslocaram e ampliaram profundamente as formas de extração da mais-valia. A base organizacional do capitalismo muda em profundidade. Mas mudam igualmente as formas de poder e as ideologias de dominação, as chamadas superestruturas do sistema.

Notas

1 Richard Susskin de Daniel Susskind,The Future of the Professions: How Technology Will Transform the Work of Human Experts,Oxford:OxfordUniversityPress,2015,p.121.

2 SobreasubutilizaçãodaforçadetrabalhonoBrasil,verIBGE,CoordenaçãodePopulaçãoeIn- dicadores Sociais, Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira, Rio de Janeiro: IBGE, 2019, pp.32ss., disponívelem:<https://biblioteca.ibge.gov. br/visualizacao

3 Friedrich-Ebert-Stiftung, “Digitalização e o futuro do trabalho: resumo do estudo ‘Trabalhar 4.0’, elaborado pelo Ministério Federal de Trabalho e Assuntos Sociais da Alemanha”, Análise, São Paulo: 2017, n. 37, p. 9, disponível em: <http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/13785.pdf>, acesso em: 12 abr. 2020.

4 AndréGorz,O imaterial,op. cit.,p.24.

5 World Bank Group, World Development Report 2019: the Changing Nature of Work, Washington: World Bank, 2019, p. viii, disponível em: <http://documents.worldbank.org/curated/ en/816281518818814423/pdf/2019-WDR-Report.pdf>,acesso em:14abr.2020. Comisión Mundial sobre el Futuro del Trabajo, Trabajar para un futuro más prometedor, Ginebra: OIT, 2019, p. 14, disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/–-cabinet/documents/publication/wcms_662442.pdf>, acesso em: 14 abr. 2020.

6 Ibidem, pp. 29-30.

7 Gar Alperovitz e Lew Daly, Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum, trad.RenataLuciaBottini, SãoPaulo: Editora Senac, 2010, p.64 .AlperovitzeDaly se referem ao clássico de Daniel Bell, originalmente publicado em 1973, O advento da sociedade pós-industrial.

EnzoRullani,“Le Capitalisme cognitive: dudé jà vu?”, Multitudes, v.2,n.2,2000, pp.87-94, apud André Gorz, O imaterialop. cit., p. 36.

9 Ver, a respeito, Marcia Angell, A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: como somos enganados e o que podemos fazer a respeito, trad.Waldéa Barcellos,RiodeJaneiro:Record,2007.

10 Douglas Heaven, “How Google and Facebook Hooked us – and How to Break the Habit”, New Scientist, 7 fev. 2018, disponível em: <https://www.newscientist.com/article/mg23731640-500-how- google-and-facebook-hooked-us-and-how-to-break-the-habit/>,acessoem:14abr.2020.

Ladislau Dowbor é economista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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