Estado mau versus mercado bom: os problemas no conceito de patrimonialismo

Alberto Luís Araújo Silva Filho

Os pensamentos político social e brasileiro têm abordado, ao longo do século XX e na presente quadra histórica, o conceito de “patrimonialismo” como central para pensar o modus operandi do arcabouço institucional do Estado brasileiro. Sua definição tem sido comumente relacionada à associação entre interesses públicos e privados na arena estatal, conteúdo que de certa maneira remete à malversação do erário público frequentemente exposta diante de operações policiais midiatizadas de combate à corrupção, à apropriação de recursos humanos e materiais das instituições políticas para o cumprimento de finalidades pessoais e à ausência do princípio do “mérito” na estruturação dos cargos e definição de funções da burocracia. Autores como Raymundo Faoro problematizaram a questão e solidificaram o termo, alertando ainda para a existência de um “estamento burocrático”, expoente prático da noção de posse privada dos meios públicos.

A ideia de “patrimonialismo” se assenta na noção do “pessoalismo”, contundente na obra Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, mas presente não apenas nesse autor. O “pessoalismo” estritamente ligado à brasilidade ou ethos brasileiro – composto por elementos como a cordialidade e a capacidade de conviver democraticamente com a multiplicidade das raças – advém de uma leitura que advoga as potencialidades do racionalismo weberiano.

Ao teorizar sobre a burocracia, Max Weber, sociólogo alemão, teria cunhado características importantes na composição de um “tipo ideal” burocrático”. Seria esse recheado por caracteres como a racionalidade, o distanciamento do “individual” em relação ao “coletivo”, a eficiência, a eficácia, bem como a efetividade. Em razão disso, muitas das transições estruturais realizadas na primeira metade do século XX no Estado brasileiro possuíam como intuito a transição de um modelo burocrático tradicional para um modelo burocrático weberiano.

A originalidade do “patrimonialismo”, enquanto logos, está na capacidade adaptativa de trazer à tona o espírito do “homem nacional”, dotado de pulsões e paixões irrefreáveis, para dentro da esfera do Estado. É a máquina administrativa espaço pour l`excellence da manifestação de uma série de males e vícios do “homem cordial”: tradicionalista, católico e culturalmente colonizado. Essa definição de mesclagem entre “público” e “privado”, com todos os limites que possa apresentar, vem dominando as visões sobre o Brasil, sobre o povo brasileiro e sobre as práticas intra-estatais da nação nas últimas oito décadas

Jessé Souza, ex-presidente do IPEA, faz uma crítica ao termo e seus sentidos, na medida em que tanto descrê o pensamento social que o originou na década de 1930 – como produto de uma leitura equivocada dos entendimentos fenomenológicos de Max Weber – quanto desconstrói a contraposição entre Estado “ruim” e sociedade “virtuosa” – sendo um dos atores societários centrais o mercado.

Souza aponta para a idealização da iniciativa privada no país e para a erguimento de uma percepção atroz acerca do papel do Estado e dos males que o mesmo representa politicamente, na medida em que é ponto de encontro entre o “privado” e o “público”, dificilmente opostos no contexto da modernidade, dadas as transformações na esfera social. Segundo Jessé, há uma contradição inerente ao pensamento social brasileiro, majoritariamente liberal, quando evidencia os fluxos e contrafluxos estatais: de que maneira o brasileiro é cordial socialmente, mas impelido a manifestar suas paixões de maneira desordenada no campo do Estado? Essa é uma afirmação implícita aos pensadores político-sociais, principalmente dos anos de 1930 e 1940, mas que de maneira alguma passa desapercebida pelo pesquisador. A contradictio in adjecto desse dilema é pura e simplesmente a noção de que o Estado cria as práticas corruptas e não os atores societários que as solidificam externamente e depois levam para o interior da burocracia.

Dessa maneira, a iniciativa privada/mercado enquanto uma das três esferas da divisão social tripartite, originada no final do século XVIII em Hegel e baseada na diferenciação entre Estado, mercado e sociedade – mais tarde desenvolvida por Gramsci com as intersecções intituladas “sociedade política” e “sociedade econômica” – se constituiu como fonte de virtudes no pensamento social brasileiro, distorção teórica que Jesse Souza irá tratar como constructo auto interessado. O Estado, ao contrário, é fonte de legitimação das práticas corruptas, que evoluem com a institucionalização “velada” do próprio patrimonialismo – que passa a ser cunhado como “neopatrimonialismo” – no contexto de modernização das burocracias latino-americanas na onda “neoliberal” dos anos 1980. O grande problema teórico para Jessé Souza significa prover uma rearticulação ou atualização do que tem sido pensado na academia nacional a respeito do conceito, articulando uma revisão das leituras hegemônicas sobre a brasilidade e seus efeitos.

Essa recondução dos problemas apresentados pelo conceito de “patrimonialismo” não só pressuporia um entendimento mais adequado de Max Weber e seu entendimento teórico sobre o caráter dual dos fenômenos políticos, econômicos, sociais e culturais, como também uma superação da contraposição colonial entre o “homem brasileiro” e o “homem norte-americano” – oposição temporal notadamente alinhada à idealização do capitalismo anglo-saxão e dos projetos políticos que decorrem do mesmo. Na linha que segue, a associação entre público e privado no contexto do Estado decorre de interações promíscuas não apenas entre agentes do Estado, mas também envolvendo membros de empresas privadas e atores da tão afamada sociedade civil.

Dar conta dos dilemas que envolvem o conceito de “patrimonialismo” e mesmo de “neopatrimonialismo” – sua forma institucionalizada – passa pelas diretrizes apontadas por Jésse Souza nos seus questionamentos em torno de Weber e do patrimonialismo. Porém, não só, tendo em vista que é a própria configuração do capitalismo, reificado pela teoria liberal, que produz justificações históricas e teóricas que direcionam os males ao Estado e os valores puros ao mercado, ainda mais no contexto brasileiro, de subdesenvolvimento e dependência. Eis aí um caso onde a teorização tem papel fundamental na justificação dos interesses. O anti-estatismo, quando não contextualizado, é bandeira fundamental na sustentação da agenda de retrocessos no campo dos direitos sociais e trabalhistas.

Referências

ARAGÃO, Cecília Vescosi. Burocracia, eficiência e modelos de gestão pública: um ensaio. Revista do Serviço Público. Ano 48. Número 3. Set-Dez 1997.
BRESSER-PEREIRA, L.C; PRESTES MOTTA, F.C. O que é burocracia? In: Introdução à organização burocrática. São Paulo: Editora Thomson – 2a. edição revisada.
AVRITZER, Leonardo; BIGNOTTO, Newton; GUIMARÃES, Juarez; STARLING, Heloísa Maria Murgel. (2012). Corrupção, Ensaios e Críticas (2nd Edition ed.) Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil: UMFG. (Weber, pág. 68 a 76; Patrimonialismo e Neopatrimonialismo, págs. 158 a 162)
LAVALLE, Adrián Gurza. Vida pública e identidade nacional: leituras brasileiras. – São Paulo: Globo, 2004 – 219 páginas
MORAES, Reginaldo C. Neoliberalismo – de onde vem, para onde vai? Editora
SENAC São Paulo, 2001 – 154 páginas
WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações/Max Weber; tradução Leonidas
Hegenberg e Octany Silveira da Mota. 18. ed. – São Paulo: Cultrix, 2011.

Alberto Luís Araújo Silva Filho é graduando em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí, membro do Grupo de Estudos em Teoria Política Contemporânea (DOXA) vinculado ao Grupo de Pesquisas sobre Instituições e Políticas Públicas (CNPq) e do Grupo de Pesquisas sobre Democracia e Marcadores Sociais da Diferença (CNPq).

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