Entre a independência e a subordinação

Autoemprego, autoempreendedorismo e a falácia do empreendedorismo.

Andre Luiz de Souza

Fonte: A terra é redonda
Data original da publicação: 18/12/2020

No final dos anos de 1990 e no início do século XXI surgiram novas perspectivas do mundo do trabalho nas relações das políticas neoliberais da sociedade “moderna”. As mutações do trabalho e as suas adaptações impeliram a classe trabalhadora a adentrar nas novas dinâmicas de subordinação e exploração das relações de trabalho precarizado. Com a persistência das crises, o capital necessita reorganizar as suas práticas de controle sob diversas formas.

Nesse caso, surge uma palavra mágica que impõe uma nova percepção de realidade aos sujeitos trabalhadores, retirando o conceito de trabalhador, que se torna algo pesado e maléfico aos olhos da sociedade, criando um novo sujeito, denominado empreendedor. Essa nova figura é responsável por si mesma, com o lema “você querendo, você consegue”. Com isso, retiram-se muitas das obrigações entre patrão e emprego, recriar um sujeito com possiblidades de suprir as novas facetas do mercado de trabalho.

A nova realidade obriga o sujeito a ser “patrão” de si mesmo, precarizando as relações de trabalho e gerando uma nova morfologia da magnitude do capital. Portanto, a sociedade capitalista adapta-se aos interesses das corporações liberais, transformando os trabalhadores em camaleões, isso porque adentram a uma subjetividade de percepções que ocultam a realidade. A exploração torna-se velada diante do ditame do capital. As mudanças das regras trabalhistas corroboram para acelerar as mazelas das sociedades subordinadas ao capital.

O empreendedorismo é caracterizado com um elemento ideológico, haja vista que incentiva o trabalhador a pensar que não há problema em ser patrão de si mesmo e ganhar dinheiro, pois isso o tirada ruim condição de assalariado. Atualmente, novas práticas sociais instigam uma gama da população a empreender, como se fosse algo vantajoso para o sujeito. Nesse aspecto, o modelo atual forja no sujeito trabalhador (que vive um dilema de entrada e saída de emprego formal e informal) uma ilusão da prosperidade e de bem-estar. Todavia, para ser empreendedor, é preciso dinheiro. O trabalhador desempregado vive na miséria, o que resta é a captura de sua subjetividade para ludibriar as condições sociais e aliená-lo da dura realidade.  Conforme observam Campos e Soeiro (2016),

“[…] isso que está a acontecer com esta narrativa. Ela exibe-se como uma ideia generosa e evidente face à crise generalizada do emprego. Mas propõe um mundo de gente livre e de microempresários felizes em tudo contrastante com a realidade que nos rodeia”. (CAMPOS; SOEIRO, 2016, p. 10).

A sociedade capitalista está mergulhada em uma crise profunda nas diversas esferas sociais, com uma economia cada vez mais destruída pelo empobrecimento e novas formas de servidão no trabalho (CAMPOS; SOEIRO, 2016). Sustentam os sociólogos que o ideal de empreendedorismo apresenta-se como a saída para a crise do emprego, porém, ressaltam que se trata de uma saída que acentua a lógica neoliberal enraizada na origem do problema da sociedade de classes, como uma falácia nos moldes do liberalismo clássico mais o modelo atual do neoliberalismo repaginado na “liberdade e na autonomia individual”. Para os teóricos, as práticas do novo modelo das relações de trabalhos, na roupagem do empreendedorismo, tem um efeito político cada vez mais evidente: fazer com que cada um se sinta o responsável único pela sua situação (CAMPOS; SOEIRO, 2016).

A relação de mercado é uma relação individualizada, pois, quando acaba força de trabalho, o problema é do trabalhador, e esse não tem nenhum recurso para sobreviver. Reina, desse modo, a individualização, e a sociedade não se ocupa mais disso. A responsabilidade fica a cargo do indivíduo, em uma sociedade que é permeada pelo lucro. O ser humano torna-se meramente uma mercadoria para satisfazer o capital. Essa é lógica do empreendedorismo do século XXI. O Estado lava as mãos e impõe ao sujeito a responsabilidade pela sua sobrevivência diante das mazelas geradas pelo capital.

Nos momentos de crises, as pessoas perdem seus postos de trabalhos e engrossam uma massa de desempregados. Os que perdem seus empregos no período da baixa “crise”, de modo geral, não são reempregados no período da alta ou na estabilização da economia. Assim, Antunes (2009) ressalta que essa massa de desempregados forma um vasto reservatório de pessoas que ficam à margem das relações de mercado, e, à medida que elas vão ficando à margem das relações de mercado, não têm mais lugar na sociedade, que é dominada pelo mercado. Dito de outro modo, se o trabalhador não consegue ver vender a sua força de trabalho, não consegue sobreviver. Logo, a jogada é tornar-se um empreendedor e demostrar que é um vitorioso, capaz de superar as crises das labutas do dia a dia e levantar, reorganizando a sua vida econômica.

Isso faz que um empreendedor, na lógica liberal capitalista, transforme-se em um consumidor de mercadoria para, posteriormente, vende-la, mantendo, assim, seu  giro e oxigenando a economia das grandes corporações. Portanto, ao mesmo tempo em que se produz uma grande capacidade de gerar riqueza, gera-se uma constante de trabalhadores que não têm lugar nesse tipo de modo de produção. E por ser esse o modo de produção dominante, não terão nenhum modo sobreviver.

Antunes (2009) argumenta:

“A nova condição de trabalho está sempre perdendo mais direitos e garantias sociais. Tudo se converte em precariedade, sem qualquer garantia de continuidade: ‘O trabalhador precarizado se encontra, ademais, em uma fronteira incerta entre ocupação e não-ocupação e também em um não menos incerto reconhecimento jurídico diante das garantias sociais”. (ANTUNES,2009, p.50).

Rosenfield Almeida (2014) ressaltam que essa categoria sempre foi imprecisa, entre o por conta-própria, o autônomo e o biscateiro, e extremamente heterogênea, abrigando desde trabalhadores em condições precárias de inserção até profissionais com alto nível de conhecimento.  Nesse sentido, Antunes (2009) destaca as morfologias do trabalho diante da lógica neoliberal e as mudanças das configurações do sentido do trabalho:

Proliferaram, a partir de então, as distintas formas de “empresa enxuta”, “empreendedorismo”, “cooperativismo”, “trabalho voluntário”, etc, dentre as mais distintas formas alternativas de trabalho precarizado. E os capitais utilizaram-se de expressões que de certo modo estiveram presentes nas lutas sociais dos anos 1960, como autonomia, participação social, para dar-lhes outras configurações, muito distintas, de modo a incorporar elementos do discurso operário, porém sob clara concepção burguesa. (ANTUNES, 2009, p.49).

Diante dos pressupostos, dos ditames do capital e das configurações das leis trabalhistas no XXI, a saída para desemprego e para a remodelação do novo sujeito proletário é a idealização do homem empreendedor. É a ênfase da lógica liberal de sociedade movida pelo capital, enraizada no problema clássico das desigualdades sociais. Nesse aspecto, Campos e Soeiro (2016) enfatizam que a retórica assente na liberdade e na autonomia individual. Assim, a narrativa do empreendedorismo tem, por isso, um efeito político cada vez mais evidente: fazer com que cada um se sinta o responsável único pela sua situação. Portanto, o sistema é tão injusto com o trabalhador que “introjeta” nele uma culpa ou um dever de obrigação moral na sua condição social. Nesse sentido, o novo empreendedorismo contribui para forjar novos trabalhadores precarizados e submissos aos grandes interesses do capital hegemônico.

Campos e Soeiro (2016) observam que essa lógica perversa destaca uma maior autonomia, uma hipervalorização do indivíduo, uma apologia à criatividade e à expressão, uma vontade crescente de construir a própria identidade e de refletir sobre as próprias ações, além da desregulação e da mercantilização das relações econômicas e sociais. Portanto, a provisão dos meios de vida dos seres humanos torna-se dependente do mecanismo de mercado, submetendo a própria reprodução do tecido social à reprodução do capital.

A lógica do sistema econômico está mais enraizada em sua própria economia desenraizada. Além disso, as elites econômicas revelam-se capazes de condicionar diretamente e até ocupar as instituições políticas, como de ‘fabricar o consentimento’ (ideal de homem individualista/consumista). O sistema econômico, de acordo com Cangiani (2012), é autorreflexivo, capaz de reorganizar as suas bases para remodelar a sociedade aos seus interesses, preservando o controle e obtendo êxito na subordinação dos indivíduos. Na ótica de Dardot e Laval (2016), vive-se em uma sociedade de pequenos empreendedores, dos quais nenhum tem condições de exercer um poder exclusivo e arbitrário sobre o mercado, e a uma democracia de consumidores que exerce diariamente o seu poder individual de escolha. Nessa circunstância da lógica liberal de gestão do mundo do trabalho, observam os autores, a racionalização empresarial deve tornar o burocrata mais um empreendedor, sujeito à lógica da competição, fazendo o Estado se curvar aos padrões do mercado. Nesse sentido, Colbari (2007) frisa que a concepção tradicional do empreendedor sedimenta uma imagem romântica e mitificada de um indivíduo portador de qualidades e de habilidades excepcionais que fomentam o crescimento e o desenvolvimento da sociedade. Para o autor, a re-significação da noção de empreendedorismo confunde-se com as estratégias de afirmar a sua condição de alternativa legítima ao emprego formal.

A flexibilidade – associada à desverticalização, à terceirização e à quarteirização do mundo do trabalho – está forjando um novo sujeito do século XXI, um trabalhador precarizado nas mais diversas formas das suas relações sociais. O mito do empreendedor na sociedade moderna em pleno XXI oculta um processo de exploração e de subordinação do sujeito trabalhador, que vende a sua força de trabalho para sobreviver diante das mazelas da sociedade capitalista. As novas formas das relações do mercado de trabalho desumanizam o ser humano, tornando-o uma mercadoria de consumo para o capital.  Nesse sentido, o empreendedorismo é uma falácia burguesa para ludibriar as relações de trabalho diante das crises crescentes do capital e da sociedade neoliberal. O novo modelo incorpora no trabalhador uma alma de desbravador, ou, melhor dizendo, uma alma burguesa, porém, as ferramentas que os sujeitos terão de lutar na sociedade de classes giram em torno da sua força, mas sem os meios necessários para agregar forças e romper com a desigualdade da sociedade dita moderna.

Referências

ANTUNES R. O trabalho, sua nova morfologia e a era da precarização estrutural. In: Revista Theomai/Theomai Journal On-line, n. 19, p. 47-57, set. 2009.Disponível em: http://revista-theomai.unq.edu.ar/numero19/artantunes.pdf..

CAMPOS, A.; SOEIRO, J. A Falácia do Empreendedorismo. Lisboa: Bertrand Editora, 2016.

COLBARI, A. de L. A retórica do empreendedorismo e a formação para o trabalho na sociedade brasileira. SINAIS – Revista Eletrônica – Ciências Sociais, Vitória, n. 1, v.1, p. 75-11, abr. 2007. Disponível em: https://silo.tips/queue/a-retorica-do-empreendedorismo-e-a-formaao-para-o-trabalho-na?&queue_id=-1&v=1607627383&u=MTcwLjI0Ny4yNDAuMTYw.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.

ROSENFIELD, C. L.; DE ALMEIDA, M. L. Contratualização das relações de trabalho: embaralhando conceitos canônicos da sociologia do trabalho. REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS – POLÍTICA & TRABALHO, v. 2, n. 41, p. 249-276, out. 2014. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/21219/12645.

Andre Luiz de Souza é doutorando em sociologia na UFRGS.

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