Empoderar trabalhadoras domésticas: Themis lança projeto de capacitação e Direitos Humanos para mulheres

Ilustração: Themis

por Igor Natusch

Poucas categorias profissionais enfrentam um grau de precarização tão elevado quanto o das trabalhadoras domésticas. Vulnerabillidade social, remuneração baixa, jornadas extenuantes, alto grau de isolamento, dificuldades de organização sindical e elevada exposição a situações de violência no local de trabalho são apenas parte dos percalços enfrentados por mais de 6 milhões de brasileiras – na América Latina, são 19 milhões. Não é exagero dizer que, dentro do amplo espectro de lutas pelos direitos das mulheres, a situação das domésticas é uma das mais evidentes. E é diante dessa urgência que a Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos inicia em março deste ano um amplo projeto regional, em parceria com a CARE Internacional, de educação em Direitos Humanos e trabalhistas para domésticas do Brasil, Colômbia e Equador.

Ativa desde 1993, a Themis é uma organização da sociedade civil que busca facilitar o acesso das mulheres ao sistema de Justiça. Nesse período, vem desenvolvendo iniciativas como os cursos georreferenciados de formação de Promotoras Legais Populares (PLPs), lideranças comunitárias que recebem educação jurídica de caráter feminista. Estando presentes nas comunidades, essas PLPs podem agir rapidamente em situações de risco para outras mulheres, em especial na violência doméstica, fazendo atendimento e encaminhando as vítimas para o sistema de Justiça. A Themis também atua na busca de diálogo com as instituições de Justiça (o que, por vezes, envolve também ações de litigância estratégica), e vem investindo cada vez mais na aproximação entre justiça e tecnologia. 

A construção desse projeto voltado às trabalhadoras domésticas dialoga, de um modo ou outro, com todos esses eixos. A partir da aprovação da Lei Complementar nº 150 de 2015, que ampliou o alcance das leis trabalhistas para a categoria, consolidou-se entre as integrantes da Themis a convicção de que é preciso garantir que essas mulheres tenham consciência de seus direitos e se sintam empoderadas para buscá-los. 

O projeto Mulheres, Dignidade e Trabalho é uma iniciativa da Themis em conjunto com a Federação Nacional de Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e entidades semelhantes no Equador e na Colômbia, com financiamento da Associação Francesa de Desenvolvimento (AFD). Um dos objetivos é a criação de uma Escola de Formação de Habilidades para a Vida e o Cuidado. A ideia é oferecer ensino específico em temas voltados à melhora do futuro profissional e pessoal das alunas, como alfabetização em serviços, cozinha saudável e cuidado especializado de crianças e idosos, entre outros. Até o momento, as turmas presenciais estão confirmadas no Rio de Janeiro e em Porto Alegre, com aulas a partir do mês que vem.

Em paralelo, está sendo desenvolvido um processo de formação em Direitos Humanos e trabalhistas, com módulos específicos para trabalhadoras domésticas e para as lideranças sindicais que atuam junto à categoria. Essas aulas serão ministradas em formato de ensino à distância (EAD), em uma parceria com a universidade Uniritter, e estarão disponíveis tanto para as que participarem da Escola de Formação quanto para outras trabalhadoras espalhadas pelo Brasil. A expectativa é que a plataforma para as aulas esteja disponível no segundo semestre de 2020. 

As ações são coordenadas por um Comitê Consultivo, e também incluem estudos de mercado, buscando uma compreensão mais ampla das realidades a serem alcançadas e, ao fim do caminho, transformadas pelo projeto. Ao todo, espera-se que 600 mulheres sejam diretamente atingidas, com as primeiras turmas se formando ainda este ano.

As advogadas Márcia Soares e Aretha dos Santos, respectivamente diretora executiva e assessora de programas da Themis. Fotografia: Virginia Donoso

Coordenadora do projeto e uma das fundadoras da Themis, a advogada Márcia Soares defende que um dos principais atrativos do curso para as participantes é o carimbo de uma universidade – algo que abre portas não apenas em termos de profissão, mas de vida. “Elas vão ser certificadas com um curso de extensão, e nós vamos fazer formatura de quem passar, com toga e tudo que tem direito. Além de ser importante para qualificá-las na busca por vagas de trabalho melhores, é um momento simbólico, faz uma diferença muito grande na vida delas e de suas famílias”, empolga-se.

Aplicativo Laudelina é aliado para alcançar trabalhadoras domésticas

Tão importante quanto a esfera educacional, o uso de plataformas digitais é uma das principais estratégias da Themis para produzir melhora efetiva no cotidiano das trabalhadoras domésticas brasileiras. Além dos aplicativos PLP 2.0 e Juntas – voltados à segurança de mulheres e desenvolvidos em parceria com a Geledés – Instituto da Mulher Negra – a entidade vem aprimorando o Laudelina, que busca reduzir o desconhecimento dos próprios direitos entre essas trabalhadoras.

“A ideia é que elas disponham à mão de todas a informações necessárias para fazer frente a qualquer situação ao alcance de uma pessoa que não seja operadora do Direito”, explica Aretha Santos, advogada e assessora técnica da Themis. A partir de um cadastro via Facebook (realizado de forma segura, já que o app não armazena as informações pessoais da rede social), a usuária pode acessar leis, contatar outras trabalhadoras próximas para tirar dúvidas em tempo real e fiscalizar os próprios pagamentos, a partir de uma calculadora de salários, férias e rescisão. 

Uma das principais metas do Laudelina, segundo Aretha, é romper com a solidão das trabalhadoras domésticas. “Elas trabalham dentro das casas e condomínios, não é uma categoria que tenha espaços para reunião e convivência entre trabalhadoras. E nesse espaço (Laudelina) elas conseguem formar uma rede”, acentua. Um empoderamento individual e comunitário que, é claro, também se fortalece a partir de uma maior segurança financeira. “A trabalhadora baixa o aplicativo e tem como, de forma simples e a partir do salário dela, verificar todos os valores associados à sua folha salarial. Então, ela consegue exigir valores da sua patroa sem o intermédio de um advogado ou de um contador”.  

Em constante processo de aprimoramento, o Laudelina é um dos eixos de uma parceria da Themis com a Think Olga, organização feminista que usa estratégias de comunicação para trazer impactos positivos na vida das mulheres. O objetivo é desenvolver ações de promoção e disseminação, fazendo com que cada vez mais trabalhadoras tomem conhecimento do Laudelina e usem a ferramenta no seu cotidiano.

Parcerias são fundamentais para provocar mudança na vida de mulheres

Uma das principais dificuldades em atrair domésticas para atividades e conteúdos é, também, uma das mais compreensíveis: a disponibilidade de tempo de mulheres que, em um cenário de crise econômica, precisam trabalhar ainda mais do que de costume. “Elas não têm dinheiro para pegar ônibus, muito embora o projeto (Mulheres, Dignidade e Trabalho) tenha esse aporte previsto. Elas estão trabalhando o triplo, elas não são liberadas de trabalhar (para fazer um curso), elas acabam ficando sempre cansadas, trabalham a semana inteira e sábado ou domingo é muito difícil para elas. Não é nada fácil mobilizar”, diz Márcia. 

Para chegar até elas, o estabelecimento de parcerias é de enorme importância, diz a fundadora da Themis. Por meio de esforços conjuntos, se garante tanto o desenvolvimento de tecnologias digitais que cheguem às trabalhadoras quanto uma remuneração para as PLPs que participarão diretamente do acompanhamento das estudantes. Mesmo porque os financiamentos, lamenta Márcia, estão cada vez mais difíceis. “A gente percebe uma estratégia subreptícia de esgotamento das ONGs. Há organizações que precisam entrar na Justiça para obter seus recursos. Nós estamos em um momento que não é simples, e tudo que estamos fazendo se sustenta acima de tudo pela ajuda das instituições parceiras.”

Ainda assim, é claro que não basta a disposição das trabalhadoras domésticas para garantir que elas se engajem em todas essas atividades e opções. Por isso, a Themis também prepara uma campanha, chamada A Trabalhadora da Sua Casa Também Tem Direitos, que buscará sensibilizar empregadoras para a necessidade de cumprir as exigências trabalhistas e liberar suas funcionárias para atividades de capacitação. 

Tudo dentro de uma visão de aproximar mulheres e Justiça que segue a mesma, mesmo tomando diferentes formatos no decorrer de quase três décadas. “A gente não para. O tempo não para, como diria Cazuza”, diz Márcia. “Então a gente precisa ir se revisitando, se reconstruindo e entendendo as novas questões postas para o Judiciário. Porque a questão não é apenas aproximar as mulheres do juiz ou do promotor e fazer com que elas entendam que são funcionários públicos trabalhando para nós. É preciso também abrir discussões e diálogo com o Judiciário, por dentro e por fora.”

Clique aqui para ler o projeto ‘Mulheres, Dignidade e Trabalho’.

Notas

Material produzido com participação de Virginia Donoso.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *