“É uma crise fabricada para justificar a entrega da Previdência”: entrevista especial com Maria Lúcia Fattorelli

Maria Lúcia Fattorelli. Fotografia: Hugo Scotte/Divulgação

por Felipe Prestes

A entrevista já acabou oficialmente e Maria Lúcia Fattorelli ainda segue ávida por informar. Pega um papel cheio de marcações a caneta marca texto. É a PEC 06/2019, que estabelece a Reforma da Previdência. “Aqui, olhem isto: risco de longevidade. No regime de capitalização, se você acha que vai viver muito, você tem que pagar mais. Quem faz isso aqui não se importa com as pessoas, não”.

A coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida tem rodado o país para conscientizar a população sobre os perigos da Reforma. Em Porto Alegre, no último dia 3, Fattorelli falou a uma plateia de estudantes na UFRGS e concedeu entrevista ao Democracia e Mundo do Trabalho em Debate – DMT, na qual garantiu: o Brasil tem dinheiro em caixa para irrigar a economia e cessar a crise, mas não o faz para justificar medidas como as reformas trabalhista e previdenciária, teto de gastos e privatizações. De acordo com a auditora fiscal aposentada, o país conta com recursos no Caixa Único, com as reservas internacionais e ainda tem drenado recursos com as chamadas operações compromissadas, que remuneram a sobra de caixa dos bancos. “Então, só não vê quem não quer que essa crise foi fabricada. Que país que tem 4 trilhões em caixa? Que crise é essa?”, questiona.

Para Fattorelli, se esses recursos fossem alocados na economia, não seriam necessários mais que ajustes pontuais na Previdência. A auditora garante que o problema da Seguridade Social é o desemprego, que gera uma diminuição nas contribuições. “Se a economia estiver funcionando bem, não tem problema nenhum com o financiamento dos nossos idosos”, diz.

Você tem alegado que a Previdência não tinha déficit até 2015 e que só começou a ter déficit por causa da crise econômica. Então, o problema do déficit não seria o modelo previdenciário.

É, desde a Constituição até 2015 só a arrecadação das contribuições para a Seguridade Social foi suficiente para todo o gasto com Previdência, Assistência e Saúde e sobraram dezenas de bilhões de reais todo o ano. Em 2015 essa sobra caiu para 13 bilhões, e em 2016 o Governo precisou começar a fazer aportes. Mas nem assim há que se falar em déficit, porque se você ler com atenção o artigo 195 da Constituição, ele diz que a Seguridade Social vai ser financiada pelos orçamento público e pelas contribuições. A questão é que só as contribuições davam conta de tudo e sobrava dinheiro. Mas é natural que o orçamento público dê a parte dele. Nos países avançados – Noruega, Dinamarca, Finlândia, etc – a participação do Governo ultrapassa 70% do financiamento da Seguridade e ninguém chama isso de déficit lá, porque é normal ter participação do Governo. A conta que o Governo faz, que apresenta um déficit brutal, compara o que os trabalhadores pagam com todo o gasto da Previdência, como se a única fonte de financiamento da Previdência fosse a arrecadação de trabalhadores. Não é. No Brasil existe um sistema de multifinanciamento, de várias fontes. Tem a participação do Governo, das empresas, dos trabalhadores e de toda a sociedade.

Mas com o envelhecimento da população não existe o risco de ir aumentando essa parte que o Governo tem que colocar, tirando recursos da Educação e de outras áreas?

Não tem esse risco. O problema de financiamento da Seguridade aqui no Brasil está ligado ao aumento do desemprego e à quebradeira das empresas. Em 2014, a sobra de recursos, considerando somente as contribuições, foi mais de 50 bilhões de reais. Em 2013 e 2012 chegou a ultrapassar 80 bilhões. Por que caiu em 2015? Porque aí aprofundou a crise, essa crise que a gente fala que é uma crise fabricada pela política monetária do Banco Central. Milhões de empresas quebraram e milhões de pessoas foram jogadas no desemprego e na informalidade. Empresa quebrada não paga contribuição, quem tá desempregado também não paga. Nós temos aqui no Brasil quase 50 milhões de pessoas desempregadas ou na informalidade. Se esse pessoal tivesse contribuindo minimamente para a Seguridade Social, olha… Todo mundo pode envelhecer muito e a gente quer que envelheça. Isso é benção, isso não é problema. Se a economia estiver funcionando bem, não tem problema nenhum com o financiamento dos nossos idosos.

E qual seria a solução para esta crise?

O que produziu a crise é essa política monetária suicida. Aqui no Brasil nós temos uma combinação perversa de taxas de juros muito elevadas e mecanismos do Banco Central que enxugam um volume imenso moeda da economia. Enxugar moeda da economia é como tirar sangue de um corpo: mata. O dinheiro circulando na economia é que faz a economia entrar em um círculo virtuoso. Se você tira o recurso, entra em um círculo vicioso. Vou te explicar o mecanismo. Sobra dinheiro no caixa dos bancos, porque os bancos querem cobrar taxas de juros altas demais para emprestar, taxas de 200% ao ano. As pessoas e as empresas não têm coragem de pegar esse dinheiro – só pega aquela empresa que já tem uma encomenda grande. O que acontece com esse dinheiro que sobra nos bancos? O Banco Central vai lá, aceita o depósito e entrega título da dívida para os bancos. À medida em que os bancos estão de posse destes títulos, eles recebem juros diariamente! Essa operação, então, ao mesmo tempo, retira essa moeda toda que sobra no caixa dos bancos e gera dívida pública. Essa operação ainda tem um custo elevadíssimo, que nos últimos dez anos foi de 754 bilhões de reais – se a gente corrigir: 1 trilhão de reais. Por isto que a gente tem mandado um recado para o Guedes: não precisa destruir a Seguridade Social para ter 1 trilhão, basta parar de remunerar a sobra de caixa dos bancos.

Mas este dinheiro que vem da sobra de caixa dos bancos não é usado pelo Governo no dia-a-dia?

Não pode ser usado, porque na hora em que o banco quer de volta, o Banco Central é obrigado a entregar.

Então, não está financiando a Educação, nada parecido…

De forma alguma, pelo contrário. Está tirando dinheiro do Orçamento Fiscal para remunerar a sobra de caixa dos bancos. E aí é o seguinte: o que vocês acham que aconteceria se o Banco Central parasse de remunerar essa montanha de dinheiro? Estamos falando de quase 20% do nosso PIB. Se o Banco Central falasse: “bancos, tomem aqui o seu trilhão”. Vocês acham que os bancos iam querer ficar com esse dinheiro guardado na gaveta?

Teriam que baixar os juros.

Iam ter que baixar os juros para emprestar! Então, o que seria da nossa economia irrigada, com mais de 1 trilhão de reais a juro baixo? Acabou a crise. Só enfrentar esse mecanismo, modificaria a economia brasileira, porque as empresas voltariam a ter acesso a crédito barato, as pessoas também. Quando a empresa tem acesso a crédito, ela investe na produção. Aí ela precisa contratar gente, e aí começa a girar a economia brasileira. Essas pessoas vão consumir, e o consumo aumenta a demanda e nós temos de novo o ciclo virtuoso. A economia brasileira está paralisada porque está sem crédito. A falta de crédito foi a principal causa da quebradeira de empresas e da paralisação: não tem dinheiro para investir, para o consumo, para puxar os investimentos.

E esta remuneração da sobra de caixa dos bancos começou quando?

Essa remuneração sempre existiu, mas num patamar pequeno. Ela se agravou muito com Meirelles e chegou a provocar essa crise de 2013 para cá, quando foi chegando a 800 bilhões. Enquanto tava em 200, 300 bilhões era uma benesse para os bancos; quando ela chega a 800 bilhões aí quebra a economia. É muita coisa.

Qual a relação deste sistema com a crise dos estados?

A relação é direta, porque a principal arrecadação dos estados é o ICMS e as empresas quebradas param de pagar o ICMS. E o juro alto impacta as finanças dos próprios estados. Então, os estados já pagaram suas dívidas para a União mais de três vezes e ainda devem cerca de cinco vezes. Essa conta não fecha. É outro sistema arquitetado para funcionar assim. A dívida não é para viabilizar investimentos. É para funcionar como um ralo de recursos. E o sistema financeiro foi muito esperto de escolher a dívida para ser o veículo do roubo, porque dívida é uma coisa que todo mundo respeita – muita gente não fala em pagar dívida, fala em honrar dívida. Então, os estados já pagaram suas dívidas e estão sendo obrigados a privatizar tudo. E mais: os estados são credores perante a União, dos créditos da Lei Kandir, uma lei lá da década de 90, que obrigou os estados a darem isenções de ICMS e ficou de repor essa perda para os estados. Só que essa reposição não foi feita corretamente, todos os estados têm um crédito enorme perante a União. E a União fala que não tem dinheiro para pagar, mas é mentira. Só no Caixa Único do Tesouro tem 1,27 trilhão parado. Fora esse 1,2 trilhão que está no Banco Central. E ainda tem mais de 1,5 trilhão em reservas internacionais. Então, só não vê quem não quer que essa crise foi fabricada. Que país que tem 4 trilhões em caixa? Que crise é essa? É uma crise fabricada para justificar a entrega do nosso maior patrimônio social, que é a Previdência; e a entrega do nosso patrimônio público – nós estamos privatizando Petrobras, Eletrobras, Embraer, Casa da Moeda, Banco do Brasil… tudo!

Na sua visão não haveria necessidade de fazer nada na Previdência? Nenhum tipo de reforma?

Olha, eu acho que haveria sim algum ajuste. Por exemplo: eu acho que trabalhadores que têm atividades mais tranquilas, ali no ar-condicionado, sem pressão, não tem problema aumentar um pouco a idade. Agora, não pode ser esse aumento de idade generalizado, penalizando o pessoal do campo, penalizando atividades especiais. Imaginem um bombeiro tendo que subir uma escada magirus, com 65 anos, com uma mangueira ligada, para salvar pessoas num incêndio. Você vê algum bombeiro de 65 anos?

É ruim até para a própria população.

É ruim para a própria população! Então, algumas atividades é impossível exercer depois de certa idade. Este aumento de idade teria que ser uma coisa estudada por especialistas, não pelo mercado financeiro. Nós temos especialistas em Seguridade Social, que passam a vida estudando isto. Poderia fazer um debate aberto com a sociedade, com os próprios beneficiários, porque se todo mundo quer o bem do Brasil e quer um sistema que se sustente, eu tenho certeza que tem certas atividades que concordariam em aumentar um pouco a idade, em ver onde tem algum desajuste. Todo país tem feito um ajuste ou outro. Agora, nenhum país europeu está destruindo a Seguridade Social, porque a Seguridade é básica para a própria economia do país. Quando o Guedes fala de economizar 1 trilhão, o que ele está dizendo de verdade? Que 1 trilhão deixará de ser pago em aposentadorias, em benefícios, em pensões. Ou seja, ele vai tirar 1 trilhão da economia. E para onde vai este trilhão? Tem muita gente iludida de que este trilhão vai ser investido em educação, que ele mesmo está falando… Mentira! Ele confessou isso na posse do atual presidente do Banco Central: ele precisa do trilhão para alavancar a capitalização. O trilhão que vai deixar de chegar na mão das pessoas vai para os bancos.

É para os custos da transição, não é? Porque sem os mais novos financiando para os mais velhos, o Brasil não vai ter dinheiro para pagar as aposentadorias de quem está no regime atual.

É maior ainda. Esse custo de ter que cobrir as aposentadorias atuais sem o ingresso das contribuições de quem vai para a capitalização é só uma parte da transição. A parte mais grave não está sendo divulgada. É o seguinte: imagina um trabalhador ou trabalhadora, que já contribuiu dezoito anos para o INSS. Vamos supor que esta trabalhadora está desempregada há três anos. E aí aparece uma empresária que oferece uma vaga, mas esta vaga é só para quem optar para a capitalização, porque esta empresária não quer contribuir para o INSS. Aí eu te pergunto: você se estivesse desempregado há três anos, optaria ou não pela capitalização? É isso que vai acontecer: todo mundo vai oferecer emprego somente para quem optar pela capitalização. E aí, no caso desta trabalhadora, ela contribuiu dezoito anos para o INSS, mas a opção pela capitalização é irreversível, depois que ela optar pela capitalização, ela vai ter que se aposentar por este regime. Mas vai entrar zerada a conta dela? Não, o Estado, que recebeu esses dezoito anos da contribuição dela, vai ser obrigado a fazer um aporte. Quanto vai custar isso? Esse é o maior custo da transição, que não está sendo divulgado.

É para aí que vai este 1 trilhão?

Só para começar, porque no Chile, que tinha um volume de desempregados infinitamente menor do que o Brasil, este custo foi de 139% do PIB. Se for este custo no Brasil, nós estamos falando de uma conta de entre 9 e 10 trilhões de reais. Então, todo mundo que está apoiando esta PEC está sendo iludido pelas propagandas do Governo.

(deputada Fernanda Melchionna faz uma intervenção, ressaltando que 837 bilhões de reais vão sair do bolso de quem ganha até 1,3 mil reais)

Foi muito importante a Melchionna lembrar disso, porque na própria PEC, na última página da exposição de motivos, o Governo colocou uma tabela, explicando de onde vão sair o trilhão dos primeiros dez anos e os quatro trilhões em 20 anos. Nós pegamos essa tabela dos dez anos: 715 bilhões vão sair do Regime Geral e 182 bilhões do BPC e do Abono Salarial. A PEC está cortando abono de quem ganha entre 1 e 2 salários mínimos, só quem ganha até um salário mínimo vai receber abono. Então, aqui no Rio Grande do Sul ninguém mais vai receber abono, porque o salário mínimo aqui ultrapassa o salário mínimo federal. Então, o trilhão vai sair desse pessoal, do pessoal mais pobre! E vai para onde? Segundo Guedes, vai para os bancos, porque vai financiar parte da capitalização.

E com isto a crise vai se aprofundar, não?

Esse trilhão que está sendo cortado é dinheiro que chega na mão das pessoas. Quem ganha até dois salários mínimos não são especuladores. Essas pessoas recebem sua pensão, sua aposentadoria, seu benefício, elas vão à feira, o feirante contrata ajudante, o ajudante leva dinheiro para casa, a mãe vai à feira de novo, vai à farmácia, manicure. Em 80% dos municípios brasileiros, o dinheiro da seguridade social supera o Fundo de Participação dos Municípios. Para você ver a relevância disso. É mais dinheiro ainda que vai ser retirado da economia, quando a gente precisava fazer o contrário.

Qual foi o pacto que se desfez? Porque a gente vinha em um pacto que estava dando certo. Não era o mundo ideal, mas vinha incluindo pessoas, a gente teve um desenvolvimento com inclusão social, as empresas produzindo. O que pode ter acontecido, que deu esta disruptura entre Estado e iniciativa privada?

A gente está ainda fazendo estudos para entender melhor essa crise fabricada, mas uma coisa já ficou evidente. A fabricação desta crise – que derruba o PIB brasileiro em 2015 e 2016 em mais de 7%, queda equivalente a países em guerra – passou a justificar medidas que significam um avanço imenso do capital. Por exemplo: essa PEC do Teto foi a primeira medida com a justificativa da crise. O que essa PEC significa? Todos os serviços prestados à população congelados, corrigidos apenas pelo IPCA durante 20 anos. O que ficou fora da PEC do Teto? Gastos financeiros com a dívida. E também ficou fora da PEC do Teto gastos com as estatais não dependentes, que é a modalidade das novas estatais que estão sendo criadas para operar o esquema fraudulento da securitização de créditos, um esquema que quebrou a Europa e que está entrando no Brasil em vários estados e municípios. Nesse esquema, o capital se apodera diretamente da arrecadação tributária antes de chegar no cofre público. É um escândalo. Então, ó: PEC do Teto foi aprovada com a justificativa da crise, Reforma Trabalhista, que significou um retrocesso de… nós voltamos a antes de Getúlio Vargas.

E que não adiantou nada, não é? Não foi empregado ninguém.

Claro que não! Puro retrocesso! Mas o discurso de crise serviu para aprovar a Reforma Trabalhista. Agora, as privatizações. A crise está justificando o avanço das privatizações: refinarias da Petrobras, até Banco do Brasil. O Guedes já falou em entregar o Banco do Brasil para o Bank of America, que é um banco está quebrado desde 2008. O Bank of America recebeu, em 2008, 1 trilhão 344 bilhões de dólares do FED (o banco central americano). Ele vai ter que devolver esse dinheiro para o FED. O Paulo Guedes quer fazer o quê? Uma parceria com o Banco do Brasil para assumir a dívida do Bank of America… ah, peraí! Então, é um escândalo. A crise fabricada está servindo para isto. Há um alto custo social. Quantas pessoas estão desempregadas, desesperadas, o suicídio no Brasil já aumentou. E o PIB continua caindo. O Governo sabe que é só jogar um pouquinho de dinheiro na economia, tanto é que eles estão debatendo agora liberar o uso do FGTS. Mas o que ele faz? Só libera após aprovar a Reforma. Por quê? Porque um pouquinho que liberar, a economia volta a crescer e aí desaparece a justificativa de Reforma. É bem fabricado mesmo.

Como tem sido a sua rotina? Você tem dado muitas palestras sobre a Reforma? O que você tem sentido das pessoas?

Eu tenho me desdobrado para conversar com o máximo de pessoas possível, porque quando as pessoas entendem e acordam é como tirar gente da Caverna, vocês conhecem aquele Mito da Caverna, de Platão? Quem estava dentro da Caverna acreditava que a verdade era aquelas sombras. Quando sai da Caverna e vê que o mundo era colorido e maravilhoso, alguém vai conseguir convencer de que a verdade estava naquelas sombras? Nunca mais: quem sai da Caverna, sai para sempre. Entender esta conjuntura é a mesma coisa. Quem entende que essa história de déficit da Previdência é coisa de Caverna, essa coisa de que o Brasil é pobre é coisa de Caverna, essa coisa de que tem que fazer essa Reforma é coisa de Caverna… Quem entende isso, entende esses mecanismos do sistema da dívida, é como quem sai da Caverna. Acorda para sempre. Essas pessoas não vão cair nessa manipulação da propaganda terrorista da mídia, não vão cair nos engodos que são colocados. Então, a gente tem se esforçado para produzir folheto, vídeo, dar palestras, viajar, conversar com as pessoas. Todo mundo tem que fazer isso. Todo o material da Auditoria Cidadã é de livre utilização. Para tirar o maior número de pessoas desta Caverna, porque a gente vai virar esse jogo! Essa reforma não passará!

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