Donald Trump na Justiça do Trabalho

Trump pagou mais de um milhão de dólares por terceirização e contratação de imigrantes ilegais.

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 28/11/2017

Alguns pretensos e mal informados liberais, que acham a terceirização e a destruição da CLT uma “modernidade”, agora andam pregando também o fim da Justiça do Trabalho no Brasil. Eles insistem que devemos copiar o modelo americano, pois acreditam que lá se pode terceirizar tudo e de qualquer forma e que o trabalhador enganado com este procedimento não pode recorrer ao judiciário, porque os EUA “não têm Justiça do Trabalho”.

Bem, estes incautos que não sabem o que se passa no mundo deveriam ler a edição do New York Times de 27 de novembro. Em um trabalho de investigação, o jornal descobriu um processo judicial que estava em sigilo desde 1998. Nesta lide, o então empresário Donald Trump pagou na justiça federal daquele país uma indenização superior a um milhão de dólares a um grupo de trabalhadores poloneses que haviam sido contratados ilegalmente, por meio de um intermediador de mão-de-obra, para trabalhar em longas jornadas e em condições de completa insalubridade, com salários abaixo do piso normativo.

Em resumo, os fatos: em 1980 Donald Trump havia abandonado a firma do pai, para iniciar sua carreira solo no ramo imobiliário. Ele adquiriu uma antiga loja de departamentos de doze andares na Quinta Avenida com a rua 56, para ali erguer uma torre gigantesca de apartamentos. Mas antes era necessário derrubar o enorme prédio de doze andares. Trump tinha pressa e contratou um “empreiteiro de mão-de-obra” como se diria aqui, na linguagem da construção civil. Ele era polonês, não tinha experiência com demolição e admitiu aproximadamente duas centenas de compatriotas ilegais que viviam em Nova Iorque. Eles, obviamente, não tiveram qualquer registro formal, trabalhavam de doze a dezesseis horas por dia na penosa atividade de demolição, “peça a peça” (dado a localização central do prédio, não era possível implosão). Era uma atividade duríssima, pois os trabalhadores tinham que remover manualmente toda fiação elétrica e hidráulica e ainda derrubar paredes e piso de concreto na base da marretada. A poeira era terrível, os trabalhadores laboravam sem capacete, luvas ou máscaras. E o agravante: o prédio estava revestido do cancerígeno amianto, recém proibido pelo STF. Os trabalhadores recebiam valores abaixo do salário estipulado em acordo coletivo do sindicato. Quando, além de todo o trabalho degradante, o salário começou a atrasar, alguns trabalhadores procuraram um advogado, John Szabo, que foi atrás do vice-presidente das Organizações Trump, Thomas Macari, quem passou então a pagar diretamente os poloneses, em dinheiro vivo.

O advogado de Trump ligou para Szabo e ameaçou denunciar os ilegais ao serviço de imigração. Sob pressão, o empreiteiro de mão de obra, provavelmente acobertado pelas Organizações Trump, fez um acordo com o sindicato local para regularizar apenas um punhado de trabalhadores, enquanto a quase totalidade dos ilegais permaneceu trabalhando desprotegida.

Um trabalhador descontente com o acordo fajuto do sindicato, Harry Diduck, ajuizou uma ação coletiva em nome de todo o grupo (class action), colocando no pólo passivo da ação o empreiteiro e Donald Trump.

O empresário Donald Trump foi chamado a juízo e disse que desconhecia a situação, que não lembrava de ter visto poloneses ilegais no lugar ou de ter pago os seus salários diretamente. Ele simplesmente terceirizara a mão-de-obra para um empreiteiro e alegava não ter responsabilidade sobre toda a grave situação dos trabalhadores. A culpa era da empresa de terceirização. Mas a tese não colou em juízo. Diversas testemunhas foram ouvidas no processo e afirmaram que Trump comparecia com frequência ao prédio em demolição, pois estava impaciente com o ritmo dos trabalhos. Ele sabia que os trabalhadores eram poloneses e estavam em situação ilegal. Uma testemunha declarou que ele inclusive disse que “os poloneses são caras bons e trabalham duro”. Um consultor que trabalhara para o empresário contou ao juiz, sob juramento, que Trump lhe dissera que estava em dificuldades pois “tinha alguns empregados poloneses ilegais”.

Depois da instrução do processo, o juiz do caso decidiu que Trump era o empregador real dos trabalhadores, para fins de fixação de todas as responsabilidades trabalhistas e civis (sim, nos EUA a Justiça – federal e estadual – pode reconhecer o vínculo de emprego direto entre tomador de mão-de-obra e terceirizados; isto se chama “joint employer“). Trump recorreu à corte de apelações, mas um dia antes do julgamento, pressentindo sua derrota, celebrou acordo de 1,375 milhões de dólares, incluindo taxas judiciárias e honorários. Como uma das condições para a assinatura da transação judicial (settlement), Trump exigiu a confidencialidade do processo e por isto os autos permaneceram em sigilo até recentemente. Mas, analisando uma petição do New York Times e da organização civil Reporters Committee for Freedom of the Press, a juíza federal Loretta A. Preska, da Corte Federal Distrital da Região Sul do Estado de Nova Iorque, resolveu levantar o sigilo do processo, em deferência à cláusula de liberdade de informação e expressão da Primeira Emenda, levando em conta, especialmente, que o caso envolve uma figura pública que agora é presidente do país.

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As revelações sobre este processo pelo NYT são, evidentemente, constrangedoras para Trump, pois ele fez toda sua campanha eleitoral atacando imigrantes ilegais e dizendo que eles roubam os empregos de americanos. Mas, além disso, há um detalhe ainda mais comprometedor. Recentemente, o Departamento de Trabalho (equivalente a um Ministério) do governo Trump promoveu mudança nas regras sobre terceirização. Nos EUA, como já dito, existem normas segundo as quais o contratante pode ser responsabilizado como empregador dos terceirizados, se demonstrado que ele dirigia de fato a organização do trabalho (joint employer doctrine). Até 2015, a normativa do Departamento de Trabalho era aplicada apenas em casos nos quais a empresa tomadora exercesse “controle direto” sobre o local de trabalho dos terceirizados. Em 2015, ainda durante a administração Obama, por iniciativa do Secretário Tom Perez, houve uma mudança no critério, para incluir na doutrina do joint employer situações em que o tomador da mão-de-obra exerce “controle indireto”, como quando, por exemplo, estabelece metas de produtividade que são repassadas pela empresa terceirizada aos trabalhadores. Pois bem, em junho do corrente ano, a administração Trump cancelou a alteração na regra administrativa do joint employer, que era mais favorável aos empregados. Observe-se que a mudança não impede que o judiciário dos EUA aplique a doutrina do joint employer quando houver controle indireto, pois a diretiva do Departamento de Trabalho aplica-se essencialmente a sua ação administrativa. Por isto, um grupo de congressistas conservadores quer agora transformar isto em lei. Em todo caso, a alteração revela que Trump sabe por experiência própria como os terceirizados podem dar uma boa dor de cabeça judicial nos EUA.

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O caso envolvendo Trump e os terceirizados poloneses deve servir para uma boa reflexão no debate sobre terceirização e acesso à justiça no Brasil. A terceirização (verdadeira, isto é, repasse integral de uma atividade empresarial a outra empresa especializada) nunca foi proibida nos EUA e nem no Brasil. O que se discute lá, como aqui, é a responsabilidade do empregador quando a terceirização é desvirtuada, isto é, quando ela se transforma em mera cessão de mão-de-obra sob gestão do suposto “tomador” de serviços. Quando isto acontece – controle direto (ou indireto) do contratante de serviços sobre os terceirizados – o vínculo se estabelece diretamente com aquele que terceirizou a mão-de-obra, no Brasil ou nos EUA. E isto, diga-se, permanece inalterado com a reforma trabalhista nativa. A joint employer doctrine americana é, inclusive, sob certo ponto de vista, mais favorável ao trabalhador, porque não cria o subterfúgio da responsabilidade “subsidiária”.

O processo de Trump mostra ainda como, sob certos aspectos, o acesso dos trabalhadores americanos ao judiciário é mais fácil do que no Brasil pós reforma trabalhista. Lá, um único representante de uma classe de empregados prejudicados pode ajuizar a class action em nome de todo o grupo, que não precisa sequer ser identificado na petição inicial, como se exige no Brasil nas ações coletivas. Ou seja, eles não precisam “temer” uma condenação em honorários de sucumbência. No sistema americano, quem assume os riscos de eventual insucesso da ação é o advogado e não o trabalhador.

Se Trump descobrir o quão “moderna” é a nossa nova legislação trabalhista, quem sabe queira importá-la. Assim, finalmente, poderemos dar algumas lições aos americanos.

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A reportagem do New York Times sobre o processo de Trump pode ser acessada aqui.

Sobre as alterações do Departamento de Trabalho dos EUA na doutrina do joint employer, recomendamos este texto.

Cássio Casagrande é professor de Direito Constitucional dos cursos de graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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