Disrupção e Transformação no Setor Automotivo: um balanço do fechamento da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo (SP)

Raphael Jonathas da Costa Lima

Há poucos dias, a Ford Motor Company anunciou o fechamento de sua fábrica em São Bernardo do Campo (SP). Embora o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (SMABC) já há alguns meses viesse tratando essa decisão como provável, o anúncio surpreendeu a opinião pública e impactou fortemente o conjunto dos trabalhadores da montadora no município. Estima-se que o efeito cascata do fechamento da fábrica atingirá em cheio a cadeia localizada na região, uma vez que empresas desse porte congregam uma série de fornecedores e prestadores de serviço nas suas imediações. Ademais, diferentemente de outras regiões caracterizadas por esse tipo de produção industrial e com plantas bem mais compactas (a exemplo da própria planta da Ford em Camaçari, na Bahia), o ABC viu se desenvolver, entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70, um pujante parque de fornecedores, sobretudo de autopeças. Isso se deu porque a indústria automobilística instalada no Brasil a partir dos anos 50 viu-se obrigada a se orientar no sentido de uma forte verticalização da produção. Em função da inexistência de fornecedores de autopeças confiáveis, foi obrigada a incorporar à sua estrutura produtiva a fabricação de peças e partes dos veículos (Cardoso, 2015).  

Com 3 mil funcionários diretos, cerca de 1,5 mil terceirizados e mais de 20 mil indiretamente prestando algum tipo de serviço, a planta da Ford, juntamente com as fábricas da Mercedes-Benz, Volkswagen, Toyota e Scania, compõe o conjunto de cinco grandes fabricantes localizadas na cidade e responsáveis por empregar parte expressiva do operariado do ABC. A presença dessas montadoras também é simbólica porque a partir delas ganhou projeção o emblemático Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, protagonista do movimento que ficou conhecido como Novo Sindicalismo (Rodrigues, 2002). Em 1978, em plena luta contra a ditadura militar, inúmeras greves tomaram essas fábricas como palco. Depois disso, vale lembrar do Festival de Greves dos anos 1999 e 2000, que também partiu da iniciativa do conjunto de trabalhadores inseridos nessas empresas.

Junto com a fábrica de motores em Taubaté (SP) e a planta de Camaçari (BA), a unidade de São Bernardo integra o conjunto de unidades produtivas da montadora no país. A fábrica, localizada no bairro do Taboão, foi inaugurada em 1968, logo após a montadora norte-americana adquirir a Willys-Overland do Brasil. É uma das mais antigas da empresa no país, depois da já extinta fábrica de motores do Ipiranga, datada de 1957. A produção de caminhões foi integrada à fábrica em 2001, quando as instalações foram modernizadas. Até aqui, respondeu sozinha pela produção de caminhões e do Fiesta, um modelo cuja atual geração foi lançada em 2011 e que, desde então, recebeu poucos incrementos (em acabamento, tecnologia, etc.), fazendo-o perder mercado para os rivais.

A decisão de encerrar as atividades em São Bernardo precisa ser analisada sob duas perspectivas. A primeira e mais preocupante do ponto de vista dos milhares de trabalhadores que perderão seus empregos. Desde o final dos anos 60, época em que ainda se podia falar de um tipo de Capitalismo de longo prazo (SENNETT, 1999) com pessoas passando anos e às vezes décadas no mesmo emprego, gerações de trabalhadores construíram suas trajetórias profissionais e de vida na indústria automotiva. Nesse sentido, a passeata organizada pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC no dia 7 de março e saindo da sede da entidade em direção à Igreja Matriz de São Bernardo do Campo, bem como o encontro reunindo Wagner Santana e Rafael Marques, atual e ex-presidente do sindicato, e o coordenador do Comitê Sindical da Ford, João Quixabeira de Anchieta, com o representantes da matriz da empresa nos Estados Unidos, até podem sensibilizar o staff gerencial e os acionistas da montadora a rever a decisão, mas isso parece pouco provável. Não se pode duvidar da capacidade de articulação e mobilização desse sindicato, que atravessou períodos de turbulência, tanto durante a ditadura quanto no final dos anos 80, quando o ABC parecia fadado a se transformar em um cemitério de galpões industriais abandonados por empresas fugindo do assim entendido elevado custo trabalhista da região. Contudo, ao passo que anúncios dessa magnitude têm grande probabilidade de arranhar a imagem de uma corporação transnacional com operações praticamente em todos os continentes, geralmente só são feitos quando esgotam-se todos os cálculos de reversão dos prejuízos.

Uma alternativa ao fechamento da planta que passou a ser ventilada por alguns veículos de comunicação foi a sua aquisição por outro grupo, como a Caoa, curiosamente uma das empresas que atualmente mais causam fissuras no mercado automotivo brasileiro. Detentora de 50% da participação no Brasil da chinesa Chery, ela produz em Taubaté o QQ Smile, apontado pela revista Quatro Rodas como o veículo mais barato comercializado no Brasil em 2018 (R$ 27.490 contra o Renault Kwid 1.0 Life, vendido por R$ 32.490)[1]. A entrada das concorrentes chinesas no Brasil, além de rebaixar o preço dos automóveis, vem corroendo a estabilidade do mercado automotivo brasileiro (FLIGSTEIN, 2001), não se sabe ainda se pela qualidade inferior do acabamento dos seus produtos ou se em decorrência de estratégias mais agressivas de redução do custo do trabalho, ou ambas as causas.

O setor automotivo ainda é responsável por 20% do PIB industrial brasileiro. Mesmo se considerarmos que o PIB industrial nacional está em franco declínio, não deixa de ser expressiva a participação e relevância do setor para o conjunto da economia brasileira. Isso, inclusive, é regularmente usado pelas montadoras como argumento em defesa das desonerações fiscais negociadas pontualmente governo após governo, visto os recentes casos do Programa Inovar Auto e do Rota 2030. Também não é novidade que o setor é inconstante e extremamente sensível às ondulações da economia. Em períodos de expansão econômica com aumento das vendas e do crédito, os empregos são puxados para cima, trabalhadores costumam ter retornos maiores em termos de Participação em Lucros e Resultados (PLR) e outros benefícios, e até novos investimentos são anunciados. Durante a recessão, prolongam-se as negociações com os sindicatos e, a fim de preservar os empregos, trabalhadores são colocados em regimes de férias coletivas ou lay offs. Essa costuma ser a tendência, ou pelo menos costumava ser, uma vez que os sindicatos conseguiam, na pior das hipóteses, assegurar os empregos mesmo às custas de alguma redução salarial ou perda de benefícios.

E aí entramos na segunda perspectiva de interpretação do anúncio do fechamento da fábrica. Com o anúncio, a Ford aparentemente incorpora a América Latina à tendência mundial de enxugamento irreversível da produção automotiva. A exceção talvez seja o México, onde a Reforma Trabalhista criou condições de upgrading econômico (aumento da produtividade) às custas de um downgrading social (redução salarial e perda de direitos trabalhistas), contribuindo para o aumento dos investimentos do setor nesse país.

Contudo, mesmo que a Ford implementasse uma política agressiva de downgrading social, piorando ainda mais as condições dos trabalhadores brasileiros, isso surtiria pouco efeito, pois a verdade é que a montadora vem perdendo market share no Brasil (de 9,53% em 2017 para 9,24% do mercado nacional em 2018). No Brasil, onde ainda detém a quarta posição do mercado, suas vendas vêm despencando e praticamente se escoam na linha Ka. Dos 226.437 veículos emplacados em 2018, 103.286 (45.6%) eram do modelo Ka Hatch e, considerando a versão sedã, o Ka foi responsável por 62,8% das vendas da Ford no período[2]. Fiesta, EcoSport e a linha Ka são o carro-chefe da Ford no Brasil. Entretanto, o Fiesta, único fabricado em São Bernardo do Campo, perdeu competitividade no mercado nacional, e os outros dois modelos são fabricados na fábrica de Camaçari. De acordo com o plano de reestruturação global da empresa, a tendência é que ele seja aposentado e substituído por um investimento maior no segmento de Sport Utility Vehicles (SUVs).

Da mesma forma, a Ford só atua no mercado de caminhões na Turquia e no Brasil, onde produz os modelos Cargo, F-4000 e F-350. Nesse segmento, a Ford saiu de 13,74% do total de emplacamentos em 2016 para 11,99% em 2017 (FENABRAVE, 2016 e 2017), complementando um cenário de declínio da sua produção de caminhões, que caiu de 22.199 veículos produzidos em 2014 para 9.949 em 2016 (ANFAVEA, 2019). E esses números não parecem ter relação com o melhor desempenho das marcas concorrentes, como a MAN Latin America, a Mercedes-Benz e a Iveco, pois as mais fortes (Scania e Volvo) atuam em um segmento de caminhões premium, diferentes dos modelos Ford. Trata-se mesmo de uma reformulação em curso do seu modelo de negócios.

A longo prazo, o encerramento da produção de um determinado modelo pode gerar transtornos a consumidores pela possível escassez de peças e equipamentos de reposição, que alimentam o expressivo mercado de pós-venda sob o qual as montadoras detêm considerável participação. Mas essa é uma especulação para o futuro. De imediato, fica indicado que estamos tratando de uma empresa que perderá mercado nos próximos anos. Nesse cenário hipotético, não se descarta uma fusão ou aquisição por outro grupo, desfecho bastante comum no segmento automotivo. Entretanto, isso em nada aliviará a vida dos milhares de trabalhadores e, mesmo que a Caoa adquira a planta, não há qualquer indicação do que será produzido, como será produzido e sob que condições será produzido. Assim, temos aqui um conjunto de razões que, do ponto de vista da Ford, não justificam a continuidade das suas operações em São Bernardo do Campo.

É desnecessário dizer o quanto a gigante norte-americana fundada em Dearborn, Michigan, em 1903, foi representativa das (r)evoluções organizacionais e tecnológicas da indústria automotiva ao longo do século XX (BEYNON, 1996). Hoje, contudo, longe de ser uma empresa de vanguarda num mercado altamente concorrencial, procura se manter competitiva enquanto fabricante de veículos automotores e se manter como negócio atraente para os seus acionistas, muitos dos quais poderosos grupos de investimento, mesmo considerando que aproximadamente 45% da sua lucratividade sejam provenientes de atividades financeiras vinculadas à produção, como vendas a prazo e leasing (CARMO, SACOMANO & DONADONE, 2018; FROUD, JOHAL & WILLIAMS, 2002). Inclusive, a financeirização já é uma realidade entre os grupos automobilísticos desde a década de 90, quando esses conglomerados originalmente dedicados à fabricação de automóveis começaram a se inclinar à diversificação do seu portfólio, com bancos que financiam a compra de veículos, atividades de pós-venda (reparo e reposição de peças) e até venda de seguros de automóveis.  

Alguns movimentos recentes da Ford parecem indicar o tipo de estratégia que adotará para conseguir “ir mais longe” (Go further). Um deles é a anunciada construção de uma aliança com a Volkswagen, com a qual compartilhará uma plataforma de picapes médias. A parceria, contudo, não é uma reedição da Autolatina, uma empresa que vigorou entre os anos 80 e 90, originando veículos compartilhados, isto é, veículos praticamente idênticos (como o Volkswagen Apollo e o Ford Verona) mas de marcas diferentes. Outro movimento aparente é a redução do line up de produtos disponíveis, cortando os menos rentáveis e almejando ganhos de escala em segmentos com os de SUV e de carros maiores em detrimento dos carros menores, transição já em curso no mercado norte-americano, onde a Ford fechou três plantas (Norfolk, Virgínia; Wayne e Wixom, ambas em Michigan) entre 2007 e 2011 (MEDINA & CARRILLO, 2014).

Por fim, silenciosamente, o fechamento da planta do ABC esconde um complexo processo disruptivo que já vem alterando profundamente o modelo de negócios desses grupos automobilísticos. Esconde porque esses grupos continuam a praticar todo tipo de chantagem locacional e a pressionar o poder público por incentivos fiscais para fábricas que não se sabe por quanto tempo existirão. Enquanto isso, testemunham a profunda disrupção em curso no setor automotivo, a qual mexerá com a posição incumbente de certos grupos e criará novos nichos de mercado. A Ford é parte ou vítima desse processo, constituído dos seguintes movimentos irreversíveis: a) a quarta revolução industrial, com potencial para dizimar o emprego industrial através da indústria 4.0; b) a eletrificação, com impactos que vão desde uma nova concepção de automóvel, menos poluente e independente do combustível fóssil, até a desestruturação do segmento de oficinas mecânicas, fadadas ao desaparecimento, mediante a menor complexidade do motor elétrico; e c) o fortalecimento casado dos conceitos de autonomia, conectividade, mobilidade e compartilhamento, submetendo cada vez mais as empresas do setor àquelas do segmento de alta tecnologia, como a Google e o Facebook.

Notas:

[1] Melhores do Brasil. Revista Quatro Rodas, Ano 58, Edição 718, Fevereiro de 2019.

[2] Arrimo de Família. Revista Quatro Rodas, Ano 58, Edição 718, Fevereiro de 2019.

Referências:

Anuário Estatístico da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA), 2019. Acesso em 08/03/2019.

Anuário da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (FENABRAVE), 2016. Acesso em 09/03/2019.

Anuário da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (FENABRAVE), 2017. Acesso em 09/03/2019.

Arrimo de Família. Revista Quatro Rodas, Ano 58, Edição 718, Fevereiro de 2019. Acesso em 07/03/2019.

BEYNON, H. Trabalhando para a Ford. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

CARDOSO, A. Globalização e relações industriais na indústria automobilística brasileira: quadro global e um estudo de caso. 1. ed. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2015. v. 1. 262p.

CARMO, M. J.; SACOMANO NETO, M; DONADONE, J.C. . Análise da financeirização no setor automotivo: o caso da Ford Motor Company. Nova Economia (UFMG), v. 28, p. 549-577, 2018.

MEDINA, M. L. G.; CARRILLO, J. Reestructuración productiva de Estados Unidos y México después de la crisis económica de 2008. In: El Auge de la indústria Automotriz em México em el Siglo XXI, L. A.; Carrillo, J. & Marín, M. L. G. (orgs.). Distrito Federal:    Uiversidad Nacional Autónoma de México, 2014.

Melhores do Brasil. Revista Quatro Rodas, Ano 58, Edição 718, Fevereiro de 2019. Acesso em 07/03/2019.

FLIGSTEIN, N. The architecture of markets. An economic sociology of twenty-first century capitalist societies. Princeton: Princeton University Press, 2001.

FROUD, J.; JOHAL, S.; WILLIAMS, K. New Agendas for Auto Research: financialisation, motoring and presente day capitalism. Competition and Change. 7(1), p. 1-11, 2002. https://doi.org/10.1080/10245290212671RODRIGUES, I. J.

SENNETT, R. A Corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.

Raphael Jonathas da Costa Lima é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFF) e coordenador do projeto Brazilian Research in Auto Industry (BRAIN). Contato: raphaeljonathas@gmail.com

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