Diante da crise: materiais para uma política de civilização

FERRYdiante_350Diante da crise é o relatório apresentado por Luc Ferry na condição de presidente do Conselho de Análise da Sociedade, órgão constituído pelo governo francês com o objetivo de refletir sobre a sociedade e esclarecer as escolhas e decisões políticas e os seus efeitos sociais.

Aqui, o filósofo e ex-ministro da educação da França, com extrema acuidade e em uma redação clara e concisa, elabora um estudo crítico sobre a atual crise econômica mundial e propõe diretrizes para o seu enfrentamento no âmbito da França.

O autor parte da premissa de que a crise tem suas raízes na economia real e que a sua compreensão imprescinde da análise do seu desenvolvimento histórico, intimamente ligado à globalização, processo que Ferry entende como tendo ocorrido em duas fases. A primeira, inaugurada com a Revolução Científica (séculos XVI ao XVIII), implodiu as antigas concepções de mundo e deu à razão o estatuto de um discurso válido para toda a humanidade, imprimindo um sentido civilizatório e um rumo para a mesma – daí, impõem-se os direitos humanos, a democracia, a igualdade, a liberdade, a fraternidade e outros princípios. A segunda, por sua vez, orientada pela doutrina liberal-capitalista, mercantilizou o mundo, desprovendo de sentido a primeira ao impor uma estrutura autômata de economia de competição – o mundo deixou de ter um norte e de ser dirigido por uma vontade consciente e coletiva dos homens em prol de um projeto em comum.

A originalidade do estudo reside no fato de que, ao contrário da opinião largamente difundida, a crise atual não é, na sua origem, financeira, mas econômica, enraizada no próprio coração da economia moderna, com reflexos nas esferas financeira, social e política.

Em breve síntese, pode-se dizer que o autor acredita que a busca desenfreada pela remuneração do capital/lucro, fim último do capitalismo (segunda globalização), levou a uma competição acirrada entre os atores econômicos (estados, empresas, trabalhadores) e a uma necessidade de constante diminuição dos custos produtivos, o que causou uma deteriorização dos salários e das relações de trabalho (surge, aqui, a ideia de “mercado de trabalho”) e achatou a classe média, que era quem impulsionava o crescimento econômico/consumo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Com essa nova realidade, diz que a única forma de se sustentar o consumo e o crescimento econômico foi através do crédito, ou seja, com o endividamento maciço da classe média, de forma que a riqueza passou a ser gerada com a assunção de dívidas, e não através da própria riqueza. Porém, como os créditos passaram a ser concedidos com base em uma expectativa de riqueza e não em uma poupança ou lastro reais, as instituições financeiras passaram a utilizar como garantia os próprios bens-objeto da relação creditícia. E, tendo em vista que a economia é cíclica e as expectativas de riqueza nem sempre são confirmadas, qualquer oscilação negativa passou a gerar descumprimento em massa das obrigações, instabilidade que levou as instituições financeiras a titularizar esses créditos ditos ¨podres¨, o que só foi possível com a colaboração das agências de rating e com a negligência do Estado (a exemplo, o estopim da crise financeiro-imobiliária nos EUA [*], popularmente chamada de subprime).

Assim, com a segunda globalização, a ideia mesma de sujeito de direitos e obrigações, a serviço do Estado e junto com ele, cedeu lugar para o homem mercantilizado: o cidadão passou, antes de mais nada, a ser um consumidor, seu número de CPF hoje importa mais que seu documento de identidade. E os trabalhadores são quem mais sofrem os efeitos negativos desta nova realidade, pois o elevado nível de industrialização nos países ocidentais e o surgimento dos países asiáticos na disputa mercantil causaram uma crescente bipolarização do mercado de trabalho. De um lado, os trabalhadores com elevada formação, altamente remunerados e muito especializados, e, de outro, uma massa de assalariados pouco qualificados e parcamente remunerados.

Quais seriam, então, os instrumentos para mudar esta dura realidade? À parte das propostas especificamente feitas para a França, que aqui não nos interessa analisar, Luc Ferry milita que é preciso repensar os ideais coletivos e reconstruir a política, fazer com que ela retome os rumos da história, para alguns já acabada, colocando a política a serviço da esfera privada (ideia que o autor aprofunda em Família, amo vocês). Não se trata de deixar de lado as grandes questões de Estado, mas sim colocá-las em benefício dos cidadãos, num mundo mais humanista. A crise pela qual passamos, lucidamente sustenta Ferry, é, antes de tudo, de falta de sentido, de incapacidade de pensarmos que o coletivo não é o contrário do privado, mas uma instância dele, e que por ele deve existir e se responsabilizar, “pois a pobreza, que é algo relativo, fica quase insuportável quando as seduções do consumismo formam o fundo e o horizonte da existência, quando o trabalho já não é mais um fim que se confunde com a própria vida”.

[*] Se você tiver interesse em melhor compreender a denominada borbulha imobiliária (crise financeiro-imobiliária), recomendamos fortemente que assista ao genial vídeo de animação Españistan, que pode ser acessado em http://www.youtube.com/watch?v=WcbKHPBL5G8 (versão original em espanhol) e em http://www.youtube.com/watch?v=EqW9srTn7xM (versão legendada em português). Nele, de forma didática, autoexplicativa e muito divertida, em poucos minutos é demonstrado como, com um “SDM” (soldo de mierda), se vive uma vida “DPM” (de puta madre), na linguagem dos espanhóis!

(texto de Ingrid Renz Birnfeld)

Informações

Título: Diante da crise: materiais para uma política de civilização
Autor: Luc Ferry
Editora: Difel
Ano: 2010
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Onde encontrar: A obra pode ser adquirida diretamente de sua editora, em livrarias, como Saraiva, ou em sebos cadastrados no site Estante Virtual, entre outros.

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