Desigualdades, financeirização da saúde e Covid-19

Políticas de resposta dos governos são essenciais para amenizar o impacto da crise e a velocidade e qualidade da recuperação.

Diogo Vieira Mazeron

Fonte: GGN
Data original da publicação: 06/07/2020

A pandemia da Covid-19 ainda traz muitas incertezas sobre seus impactos econômicos e sociais. Entretanto, existem exemplos históricos que mostram que pandemias provocaram mudanças estruturais na sociedade que culminaram em melhora na qualidade de vida dos cidadãos. Dessa maneira descrevo como a Covid-19 pode servir de catalisador para alterações na organização econômica de modo a provocar uma maior inclusão dos indivíduos menos favorecidos.

Pandemias e mudanças estruturais

Na história existem episódios relacionados a graves crises de saúde que culminaram em mudanças estruturais na forma de organização da sociedade. Segundo Acemoglu e Robinson, no livro Porque falham as nações, a crise da peste bubônica no século XIV, ao provocar a morte de quase metade da população na Inglaterra, foi responsável pela alteração da estrutura servil baseada em trabalho feudal para uma estrutura econômica em que as relações de trabalho baseavam-se no pagamento de salários em troca do trabalho ofertado. Essa mudança estrutural na sociedade inglesa foi essencial para o desenvolvimento nos séculos seguintes do primeiro modelo capitalista.

Mais recentemente, em 1918, a pandemia da chamada influenza matou por volta de 50 milhões de pessoas ao redor do mundo, com importante impacto da desigualdade social e de renda sobre os óbitos, tendo em vista que os mais pobres foram os mais afetados pelo vírus. Esse fato colaborou para uma mudança estrutural significativa nos sistemas de saúde dos países após a pandemia. Doenças infecciosas passaram a ser problema de toda a sociedade e não apenas daqueles que tinham se infectado. Isso significa que desde então, aliado à evolução da medicina, programas de vacinação em massa foram implementados, e os sistemas de saúde tornaram-se gratuitos para os usuários na maioria dos países, ou seja, um sistema universal público gratuito passou a ser implementado na década de 20 do século XX.

Agora, em 2020, temos a proliferação da Covid-19. A pandemia do novo coronavírus pode não mudar de forma tão abrupta a estrutura da sociedade do mundo contemporâneo, mas já causou diversos danos nas economias ao redor do globo. No curto prazo, percebe-se uma recessão econômica bastante severa que ainda está sendo analisada no tocante a magnitude e duração. Dessa maneira, as políticas de resposta dos governos são essenciais para amenizar o impacto da crise e a velocidade e qualidade da recuperação.

O mesmo raciocínio pode ser usado para a questão das desigualdades de renda dentro dos países. Programas de transferência de renda sem contrapartidas, facilitação de condições para o crédito ao consumo servem tanto como mecanismo de defesa dos indivíduos devido a possíveis e prováveis reduções de rendimento com o aumento do desemprego em virtude da crise, como um dos mecanismos catalisadores da recuperação econômica via demanda.

Entretanto, ao se olhar para um cenário mais imediato pode-se perceber que as desigualdades de renda e sociais já existentes acabam por provocar diferentes impactos entre as diferentes camadas de uma sociedade. Em recente artigo[1], Acemoglu aponta que o elevado número de mortes pela Covid-19 em países como Estados Unidos e Reino Unido está relacionado com o que ele chama de “grotescos níveis de desigualdade nesses países”. Tomo a liberdade de afirmar que o mesmo raciocínio pode ser aplicado ao Brasil e a sua enorme desigualdade de renda e social. Da mesma forma, Sachs[2] também concluiu que a desigualdade de renda tem relação direta com o agravamento dos casos de Covid-19, tendo em vista o elevado número de mortos pela doença em países com má distribuição de riquezas como Brasil, Chile, Estados Unidos e México, e faz uma comparação entre os índices de letalidade do novo coronavírus em países europeus, concluindo que os países mais desiguais do continente como Espanha, Itália e Reino Unido tiveram uma mortalidade muito maior do que aqueles com distribuição de renda melhor, como Finlândia, Dinamarca e Áustria.

Desigualdades estruturais e a Covid-19

Uma das consequências da desigualdade de renda e social é a forma de vida que levam os mais vulneráveis, com piores condições de saúde, higiene, moradia e trabalho.

Entre os fatores que acabam por aumentar o risco de contração do vírus estão as más condições de higiene em moradias, falta de estrutura domiciliar para realização do trabalho de casa (o chamado home office) e mesmo o tipo de trabalho exercido, que reduzem a necessidade de sair de casa e mantêm o isolamento social (os indivíduos com empregos formais em escritórios têm maiores possibilidades de trabalhar de casa do que pessoas empregadas em estabelecimentos comerciais). Até mesmo a manutenção do emprego depende do tipo de atividade exercida, reforçando-se a regra descrita no ponto anterior.

Além disso, Sachs salienta que a desigualdade em casos extremos pode agravar a polarização política, enfraquecendo, por exemplo, qualquer ação de combate ao vírus tendo em vista a falta de apoio e unidade para medidas mais ou menos drásticas, como lockdowns ou até mesmo a manutenção de atividades não essenciais em funcionamento, principalmente em países organizados politicamente através de pactos federativos entre estados com autonomia, como Brasil, Estados Unidos e México.

Outro fator muito importante que acaba por agravar ainda mais o impacto da Covid-19 nas diferentes classes sociais é o acesso ao sistema de saúde. Em muitos países, no inicio da pandemia, as pessoas mais afetadas foram as das classes mais altas, que viajaram para o exterior e acabaram por ser infectadas, espalhando posteriormente o vírus para a rede de contatos mais próxima. O momento seguinte da pandemia foi de alastramento do vírus para as camadas mais pobres, que dependem exclusivamente do sistema público de saúde. A estrutura do sistema de saúde é importante, assim, para entender como o novo coronavírus afetou as diferentes classes sociais.

Financeirização da saúde, desigualdade e a Covid-19 no Brasil

Os indivíduos das classes sociais mais altas em geral possuem planos de saúde privados e, apesar de o sistema de saúde no Brasil ser universal e gratuito, a rede particular (paga) de saúde ganha cada vez mais importância. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) consolidados pelo Banco Mundial mostram que, nos últimos cinco anos, os gastos privados em saúde no Brasil cresceram de maneira significativa em um processo oriundo das políticas de austeridade aliadas à financeirização de serviços públicos.

Em minha tese de mestrado em Economia, pela Universidade de Coimbra, intitulada As veias abertas da financeirização da Saúde e da Educação no Brasil: Instituições, Políticas Sociais e Desigualdade no século XXI, a ser disponibilizada publicamente em breve, mostro a existência de uma correlação entre a financeirização da saúde no Brasil e o recente aumento da desigualdade de renda. Isso decorre do fato de a financeirização dos serviços públicos como saúde e educação estar diretamente ligada às políticas de austeridade que provocam redução dos gastos públicos nesses setores.

Na Figura 1, abaixo, fica evidente a correlação negativa direta entre o aumento da desigualdade medida pelo índice de Gini no Brasil nos últimos anos e a redução dos gastos públicos, principalmente após a entrada em vigor da Emenda Constitucional 95/2016, a já conhecida PEC do teto dos gastos.


Figura 1: Gastos públicos em saúde e educação e índice de Gini no Brasil (2000-2018)

Fonte: autor, elaborado com dados do IBGE e Banco Mundial

O aumento da desigualdade de renda pode, dessa forma, ser explicada em parte pelo aumento da financeirização da saúde no Brasil, já que a redução de gastos públicos nos serviços de saúde tendem a provocar uma piora na qualidade e oferta de serviços pelo sistema público de saúde e, consequentemente tem o potencial de afetar a renda dos indivíduos que dependem apenas do serviço público de saúde via aumento do desemprego e/ou afastamento por um maior tempo do trabalho por motivos de saúde, tendo em vista que a piora da qualidade do sistema de saúde  pode prolongar ou mesmo agravar um tratamento. Em outras palavras, a desigualdade nos serviços de saúde provocada pela financeirização e programas de austeridade dos serviços públicos tende a agravar a desigualdade de renda. Diversos autores importantes na literatura sobre crescimento e desenvolvimento econômico, como Lucas em On the mechanics of economic development, e Mankiw, Romer & Weil em A contribution to the Empirics of Economic Growth defendem e comprovam empiricamente o papel dos gastos públicos em setores básicos como saúde e educação para um crescimento sustentável dos países.

Ao levar essa lógica para o momento atual da crise do novo coronavírus no Brasil fica evidente a necessidade de programas de proteção social como mecanismo de defesa para evitar o agravamento da desigualdade de renda com a perda de rendimento, principalmente entre os mais pobres. O Programa de Renda Básica Emergencial (RBE) lançado pelo Governo Federal tem esse objetivo e, no curto prazo, vem permitindo a manutenção de parte do rendimento médio das famílias mais pobres e trabalhadores informais, apesar do aumento significativo das taxas de desemprego através de pagamento mensal de R$ 600 (regra geral) para os indivíduos elegíveis ao programa.

A figura 2, abaixo, com dados retirados da PNAD Contínua do IBGE de junho/20, mostra o efeito positivo da RBE sobre a massa de rendimentos recebidos no trimestre março-maio/2020. Mesmo com aumento do desemprego, trabalhadores do setor privado sem carteira de trabalho assinada, trabalhadores por conta própria sem CNPJ e empregadores sem CNPJ auferiram aumento nos seus rendimentos, comparados com o trimestre anterior e o mesmo período de 2019, fruto do programa de transferência de renda.

Figura 2: Rendimento médio real das pessoas ocupadas

Fonte: autor, elaborado com dados do IBGE

Com o impacto do RBE sobre os rendimentos das pessoas já se percebe a importância do programa para a redução da extrema pobreza no Brasil. Os primeiros dados mostram que milhares de indivíduos podem sair da situação de extrema pobreza de maneira contínua e sustentável com a manutenção do Renda Básica Emergencial e, dessa maneira, aumentar a capacidade de consumo desses indivíduos e ajudar na retomada da economia ao fim da crise provocada pela Covid-19. Entretanto, o desenho da RBE, com duração (até o momento) de apenas cinco meses deve mostrar-se insuficiente e teme-se que, ao término desse período, tendo em vista a continuidade de pandemia no Brasil e a falta de políticas públicas de longo prazo que puxem uma recuperação econômica, o efeito da Covid-19 seja devastador para as camadas mais pobres.

Sendo assim, além da questão estrutural do sistema de saúde brasileiro que precisa ser revista para aumentar os gastos no sistema público universal, tendo em vista que da forma que atualmente está desenhada beneficia aqueles que possuem renda suficiente para pagar tratamento de saúde de melhor qualidade, a crise do novo coronavírus pode aumentar ainda mais a desigualdade brasileira em virtude da falta de políticas sustentáveis de transferência de renda, inclusão social e criação de emprego. Dessa forma, cria oportunidade de revisar as questões da austeridade com o aumento do gasto público produtivo não apenas no setor da saúde mas de uma forma generalizada (e controlada), para estimular a economia de uma maneira mais inclusiva e sustentável.

Notas

[1] https://www.project-syndicate.org/onpoint/four-possible-trajectories-after-covid19-daron-acemoglu-2020-06

[2] https://www.project-syndicate.org/commentary/inequality-fuels-covid19-mortality-by-jeffrey-d-sachs-2020-06

Diogo Vieira Mazeron é mestre em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *