Desigualdade vira pauta liberal

Líderes empresariais de peso passam a defender uma melhor distribuição de renda. E um pacote nessa direção já foi anunciado no Congresso. E agora, esquerda? O que fazer? 

Homero Fonseca

Fonte: GGN
Data original da publicação: 22/11/2019

Há algo no ar e não é disco voador. Líderes e qualificados porta-vozes da intelectualidade liberal, da indústria nacional, da grande mídia e do meio político passaram a defender a prioridade ao combate à desigualdade social no Brasil. Há anos, a pauta era a corrupção, o ajuste fiscal e a desestatização (que, junto a outros fatores, desembocou no impeachment de Dilma, prisão de Lula e eleição de Jair Bolsonaro).

Estou me referindo a pronunciamentos, em diversos meios, de gente do calibre de Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central no Governo FHC; do industrial Walter Schalka, presidente do grupo Suzano; do empresário de shoppins centers e presidente do Sistema Jornal do Commércio de Comunicação, João Carlos Paes Mendonça, e do deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados. Pesos pesados incontestes em suas áreas de atuação, exemplares castiços da elite decisória brasileira. É uma mudança de discurso e tanto.

A voz dos donos

No dia 25 de agosto passado, em entrevista ao Jornal do Brasil online, o dr. Walter Schalka, numa espécie de rara mea culpa entre seus pares, disse:

A omissão de empresários e executivos brasileiros nos últimos anos é uma das contribuições para levar o Brasil aonde o país está. () As pessoas vão ter que entender que sim, os mais ricos vão ter que pagar uma parte da conta. (…) Acho que temos que tributar cada vez menos as pessoas de menor renda, direta ou indiretamente. E cada vez mais tributar as pessoas de alta renda. Eu sei que é polêmica a minha tese, mas eu sou a favor por exemplo do imposto sobre heranças, que é muito forte nos Estados Unidos, mas muito baixo no Brasil.

Em 13 anos no governo, o PT não quis ou não pôde executar essa pauta.

Menos enfático que seu colega paulista, o nordestino João Carlos Paes Mendonça, é no entanto mais explícito no reparo ao modelo neoliberal vigente.:

O liberalismo tem seus limites, assim como o capitalismo não pode ser selvagem. () Ambos precisam ser sociais, precisam ajudar as pessoas. () Precisamos que todos deem sua contribuição: o empresário, o profissional liberal, os jornalistas e os políticos, para que a gente reduza as disparidades vergonhosas de renda entre o pobre e o rico. Não é com liberalismo total, é preciso ter controle.[1]

A cruzada de Fraga

A movimentação de Armínio Fraga, notória cabeça pensante do sistema financeiro, chega a configurar uma cruzada contra desigualdade. Num artigo publicado no jornal digital GGN[2], em 07 de novembro de 2019, o ex-presidente do Banco Central sustenta não haver contradição entre os objetivos de crescer e distribuir no Brasil de hoje, contrapondo-se de forma incisiva ao neoliberalismo vigente. Deve soar como uma heresia aos velhos e novos cultores da Escola de Chicago a defesa, na atual conjuntura, do aumento dos investimentos públicos nas áreas sociais, o que se choca frontalmente com a política fiscal implantada por Temer e aprofundada por Guedes que prevê 20 anos de arrocho na pobreza. Armínio também defendeu imposto sobre herança e elogiou programas como o Bolsa Família, o BPC – Benefício de Prestação Continuada e até, pasmem, os aumentos reais do salário mínimo na era Lula, contra o que se posicionara contrário em 2014, quando coordenou o programa econômico do candidato Aécio Neves. Heterodoxia até umas horas.

Advertindo não se tratar “de um jogo de soma zero”, o presidente da Gávea Investimentos e ex-conselheiro mundial do JP Morgan Bank, entre outros importantes cargos, explica que os perdedores numa política redistributiva serão os privilegiados donos de “aposentadorias, pensões, salários, rendas e vantagens tributárias descabidos.”

Por Zeus! Um liberal de pura cepa defendendo aumento de impostos, transferência de renda e redução de privilégios! Ele próprio justificou a razão: “Porque o país passou de todos os limites[3] (grifo meu).

Das ideias à ação

Enquanto as oposições pastam, seguindo pavlovianamente a agenda grotesca do clã presidencial e seus ministros malucos, as ideias dos novos liberais sociais chegam ao Congresso Nacional, iniciando assim uma caminhada que pode levá-las à prática. Há apenas dois dias (19/11/2019), o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, anunciou um pacote com propostas de combate à desigualdade e à pobreza, com o nome de fantasia Agenda de Desenvolvimento Social.

As medidas foram elaboradas por um grupo de parlamentares  de vários partidos (sem PT nem PSOL) e serão apresentadas nas próximas semanas na forma de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) e de ao menos sete projetos de lei. Uma das propostas, por exemplo, prevê incluir programas de transferência de renda como o Bolsa Família na Constituição[4].

O dilema das esquerdas

E agora, Mané? Qual o significado disso tudo? Claro que os líderes citados não se reuniram um belo dia, escondidos, com capuzes e insígnias misteriosas, para combinar tudo e mandar Rodrigo Maia preparar o pacote. Não cabe teoria conspiratória fantasiosa, feito mostrado nos filmes de Hollywood e nas redes sociais. Mas também não cabe a inocência de achar candidamente que tudo é coincidência, que a política flui sempre aleatoriamente por canais de águas cristalinas. Existe algo chamado sincronismo: numa determinada época e lugar certas coisas acontecem simultaneamente não por uma combinação prévia, mas por um estado de espírito surgido no seio de grupos ou sociedades. São uma mistura variável de condições objetivas e subjetivas que fazem surgir certos pensamentos, certa linguagem e certa ação. O que não exclui que, deliberadamente, os líderes não intervenham para acelerar as mudanças (geralmente conhecidos  como progressistas) ou retardá-las (os conservadores). Nem tudo é espontâneo.

Dessa forma, o liberalismo social explicitado por nossos personagens pode ser perfeitamente produto de um sentimento entre parte da classe dominante de que o fundamentalismo neoliberal pode fazer tudo explodir por aqui, como no Chile e outras partes do mundo, sentimento respaldado por boas assessorias estratégicas. Talvez esses setores se deram conta de que a vitória eleitoral do Incógnito (o capitão fanfarrão comprometido por oportunismo eleitoral com uma pauta neoliberal, não enunciada para o povo, mas sinalizada para quem interessava pela escolha prévia de Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, para o Ministério da Economia) não foi uma boa aposta. Aí está o aumento da pobreza e da miséria apontado por recentes estatísticas do IBGE. E o Chile é bem ali.

Já em 25 de abril, Armínio Fraga, em palestra em plena Fundação Fernando Henrique Cardoso, perante uma seleta plateia de políticos, empresários, economistas e jornalistas (a grande maioria tucanos), alardeou de forma cristalina:

A desigualdade social é um veneno que impede o crescimento equilibrado do país e torna o Brasil presa fácil de políticos populistas, tanto de esquerda como de direita. Daí a necessidade de retomar com urgência políticas de redução da desigualdade que começaram a ser construídas a partir da Constituição de 1988 e ganharam impulso durante os governos FHC e Lula, associadas a um conjunto articulado de reformas que tenha como objetivo incrementar a eficiência do Estado e a produtividade da economia(…) Não há por que esperar para atacar a desigualdade, é preciso agir imediatamente em diversas frentes, pois os brasileiros, principalmente os mais pobres, não apoiarão um governo reformista se não sentirem que sua vida está melhorando[5].

Do que podemos deduzir que há um claro reposicionamento político nessa discussão: parte da elite se deu conta rapidamente do perigo de um Bolsonaro à frente de um país complexo como o Brasil, quer fazer correções de rumo dentro da institucionalidade (daí o pacote no Congresso para amenizar os “exageros” da turma do Guedes) e procura espaço para as eleições de 2020 (“pois os brasileiros, principalmente os mais pobres, não apoiarão um governo reformista se não sentirem que sua vida está melhorando”.) Esse posicionamento tem suas contradições: em não poucos aspectos significa uma revisão das reformas já aprovadas pelo atual e pelo governo Temer com o apoio de todo o patronato (exemplo mais claro: a PEC dos gastos públicos).

Ao mesmo tempo, e mais agudamente talvez, isso coloca um claro dilema para as oposições, principalmente à esquerda. Desdenhar dessas iniciativas e continuar se regendo pela pauta bizarra do clã presidencial ou ou entrar de cabeça nessa discussão, depois de um mínimo consenso entre si, e tentar objetivamente melhorar as condições de vida dos brasileiros atolados na pobreza e na miséria.

Quem sou eu para indicar o caminho. Mas há um novo personagem na cena política atual, mestre em conciliação, negociação e alianças (nas quais chegou até a ir longe demais, quando se aliou à banda podre da política e consentiu práticas pouco ortodoxas em nome da governabilidade). Talvez essa seja a chance de Luiz Inácio Lula da Silva ir além da microvisão político-eleitoral e assumir de uma vez por todas a dimensão de estadista. Sei que nesse país, historicamente, todos os pactos são firmados pelo alto, sem efetiva participação popular. Mas penso que há pactos e pactos. Ás vezes, quando se quer tudo de uma vez, com a pressa dos insensatos, não se consegue nada. Soluções heroicas fracassadas são ótimas para se elogiar no aconchego de um lar seguro e confortável. Para os lascados lá de baixo, um Bolsa Família com garantia constitucional pode ser a segurança necessária para dar os primeiros passos com os próprios pés. Ou não?

Notas:

[1] https://jconline.ne10.uol.com.br/canal/economia/pernambuco/noticia/2019/11/18/continuamos-firmes-na-defesa-da-sociedade-afirma-joao-carlos-paes-mendonca-393114.php

[2] https://jornalggn.com.br/artigos/estado-desigualdade-e-crescimento-no-brasil-por-arminio-fraga/

[3]https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/10/24/internas_economia,800709/pais-passou-de-todos-os-limites-afirma-arminio-fraga.shtml

[4] https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/11/19/rodrigo-maia-anuncia-pacote-com-propostas-de-combate-a-desigualdade-e-a-pobreza.ghtml

[5]https://fundacaofhc.org.br/iniciativas/debates/politica-social-reformas-e-reducao-da-desigualdade-social-no-brasil

Homero Fonseca é jornalista, blogueiro e escritor pernambucano, é autor dos livros Viagem ao Planeta dos Boatos, A Vida É Fêmea, Roliúde, O computador que queria ser gente, entre outros.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *