Debate sobre ações afirmativas, erradicação e perspectivas marca último dia do Seminário Trabalho Escravo Contemporâneo

Imagem: Anamatra

“Trabalho escravo contemporâneo: ações afirmativas, erradicação, perspectivas”. Esse foi o foco do terceiro e último dia do Seminário Trabalho Escravo Contemporâneo, na quinta (18/6). O evento, transmitido simultaneamente pelo Instagram, Facebook e Youtube da Anamatra, teve como tema central “Trabalho Escravo Contemporâneo: trabalho digno, dilemas e perspectivas”, reunindo acadêmicos e especialistas para analisar a jurisprudência, as políticas adotadas pelo Brasil e formas de combate a essa grave mazela social.

Durante a fala de abertura, a presidente da Anamatra, Noemia Porto, que mediou o debate, afirmou que o Seminário representa não apenas um fórum de discussões, de reflexões críticas e de formação de ideias, mas, também, um ato político. “O evento expressa o compromisso de uma Magistratura especializada que se importa; que não é indiferente; que está apta a discutir os temas contemporâneos que afligem e impactam a sociedade brasileira; e apta a participar da construção de um futuro que não seja uma mera repetição da nossa imensa dificuldade de romper o elo com um passado escravocrata que ecoa até os nossos dias”.

Ao analisar os debates já realizados no evento, a magistrada avaliou que, talvez, o grande pano de fundo tenha sido a discussão sobre “o que é ser escravo no século XXI?”, já que há razoável consenso na constatação de que cerca de 45,8 milhões de pessoas em todo o mundo estão sujeitas a alguma forma de escravidão moderna. “A controvérsia reside no uso, e nas disputas, em torno da palavra ‘escravidão’ para descrever várias formas contemporâneas de exploração”.

Noemia lembra que a escravidão nas Américas no século XIX estava ancorada na reivindicação de propriedade sobre as pessoas e que, atualmente, usar o termo para caracterizar abusos modernos, quando nenhum Estado oficialmente reconhece mais a propriedade sobre as pessoas, carrega o risco do anacronismo. Para a presidente, o exercício dos poderes inerentes ao direito de propriedade não necessariamente deriva de um prévio direito legal à propriedade, mas pode ocorrer por diversos mecanismos com comprometimento grave à liberdade individual. “O fato é que o mundo não está livre da escravidão. Ela apenas está, hoje, mascarada sob outras formas de exploração do trabalhador e da trabalhadora”.

Diante desse preocupante quadro, a presidente da Anamatra reforçou o entendimento da entidade quanto à necessidade de um compromisso permanente com a construção de uma consciência pública sobre o problema. “Uma sociedade contemporânea que reconhece, juridicamente, que todos são livres e iguais, nas suas diferenças, é corresponsável pelo fracasso na eliminação de todas as formas de escravidão e de servidão que colocam em cheque a crença num paradigma realmente democrático de direito para todos e para todas. É necessário fazer algo. É necessário fazer muito”.

Para isso, a juíza destaca a intensa atuação da Associação em prol do combate a este grave violação dos direitos humanos, com importantes contribuições durante as Conferências Anuais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na IV Conferência Mundial para a Erradicação Sustentável do Trabalho Infantil, realizada em Buenos Aires – Argentina, em 2018, mesmo ano em firmou Protocolo de Intenções com o Unicef – Brasil, contemplando cláusula de Formação que incluía o Combate ao Trabalho Escravo e ao Trabalho Infantil. Já em 2019, a Associação apresentou uma Carta-Denúncia no Congresso Internacional na Colômbia que, entre outros itens, destacava que a auditoria-fiscal do Trabalho no Brasil contava, à altura, com 1.317 cargos vagos, dos 3.644 existentes.

Por fim, Noemia Porto ressaltou que a educação é uma importante ferramenta para a defesa dos direitos humanos e que essa pode ser uma força poderosa na construção de um elo compromissário com as novas gerações. “De fato, educação, prevenção, fiscalização e repressão são atuações que devem ter fluxo de forma coordenada e sistematizada, para que possamos ter uma sociedade justa, livre e solidária”.

Sistemática internacional

“O trabalho escravo se nutre da vulnerabilidade dos economicamente desfavorecidos e da certeza de impunidade dos criminosos que não hesitam em explorar essa comunidade”. Com essas palavras, o ministro Lelio Bentes iniciou a sua participação no Seminário, fazendo um paralelo entre as implicações da exploração do trabalho escravo com o trabalho infantil.

Membro da Comissão de Peritos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Bentes fez uma sistematização da atuação da OIT em prol da erradicação, a exemplo das Convenções 29, 105 e do protocolo 14, esse último cujo escopo abarca também as situações de tráfico de pessoas. “A OIT estima que o trabalho escravo gera lucros de US$ 150 bilhões ao ano, uma das três atividades ilícitas do planeta”.

Especificamente sobre o Brasil, Lelio Bentes lembrou o fato de o país não ter ratificado a Convenção 29, cujo conceito de escravidão abrange todas as situações de trabalho forçado experimentadas ao redor do mundo. “A Convenção é declaradamente inspirada no exemplo construído no Brasil de combate ao trabalho escravo”, observou. Segundo o ministro, o país sempre foi visto, dentro da comunidade internacional, como um exemplo a ser seguido, o que vem mudando a partir de 2016. Entre as razões, Bentes apontou o encaminhamento de projeto de lei propondo a revisão do conceito de trabalho escravo, e a falta de aparelhamento da inspeção do trabalho.

“Se queremos realmente nos posicionar como um caso de sucesso e de liderança no combate ao trabalho escravo, precisamos investir na prevenção, sobretudo educação, geração de oportunidades de emprego e renda, no incremento do desenvolvimento humano, no fortalecimento do aparato fiscalizatório do Estado e na efetividade das decisões judiciais que condenam aqueles que infringem a lei, tanto na Justiça do Trabalho, quanto na Justiça Federal”, finalizou.

Aspecto criminal e repressão

A subprocuradora-geral da República, Ela Wiecko, falou de aspectos relacionados à repressão ao trabalho em condições análogas as de escravo, já que o conceito do crime consta no Código Penal brasileiro. Apesar disso, lembra a doutora, o conceito sociológico e político é muito mais amplo e suas formas têm aumentado e se espalhado por todos os setores da economia, não somente no campo, mas, também, no âmbito urbano.

Para Wiecko, essa abrangência do trabalho escravo no Brasil não é acompanhada pelo texto penal, especialmente em um cenário político atual preocupante, com apresentações de projetos de lei que visam restringir o alcance do tipo penal e não ampliar o combate âs hipóteses de exploração.

Na visão da professora, um dos fatores que dificultou e desestruturou todo o trabalho desenvolvido acerca do combate ao trabalho escravo foi a criação da categoria que trata do combate ao tráfico de pessoas. “São lógicas diferentes de investigação e enfrentamento. O tráfico de pessoas é uma categoria que veio atrapalhar, mascarar e criminalizar a migração. Temos que trabalhar com o direito à mobilidade e não criminalizar essa mobilidade. Precisamos criminalizar a exploração”.

Ao encerrar sua fala, a subprocuradora exaltou o trabalho realizado no passado, mas ressaltou que a aplicação da lei penal é insuficiente para a prevenção e menos ainda para a erradicação dessa prática criminosa, especialmente por conta das falhas existentes no processo de fiscalização do trabalho. “Os agentes do Judiciário e do Ministério Público do Trabalho só podem agir mediante uma fiscalização efetiva. Se não houver fiscalização, toda estratégia que for construída não será eficiente”.

Retrospectiva

O professor Dr. José Cláudio de Brito fez uma retrospectiva da evolução do combate ao trabalho escravo desde 1995, quando o Brasil reconheceu oficialmente a existência de trabalho forçado em seu território perante a comunidade internacional; passando pela alteração do Código Penal (art. 149) em 20013; a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) pela competência da Justiça Federal para julgar o crime, ocorrida em 2006; e a desvinculação jurisprudencial do conceito de trabalho escravo até então vinculado à liberdade de locomoção.

“O combate ao trabalho escravo continua sendo realizado, mas existem questões que não foram feitas”, observou. Exemplo disso, segundo Brito, é o baixo índice de fiscalização durante o período de pandemia. “Precisamos encontrar, dentro da esfera pública, uma alternativa para que a fiscalização continue ocorrendo, sob pena de ficarmos à margem de um problema que permanece”, disse.

Na visão do professor, o desafio passa pela retomada da fiscalização do trabalho e por uma mobilização para que os projetos de lei que tentam alterar o conceito de trabalho escravo não avancem. “Precisamos de políticas de geração de renda e talvez ações afirmativas não sejam o meio mais eficaz do ponto de vista geral”, ponderou. Nessa linha, Brito defendeu políticas “focalistas” em lugares onde haja um maior índice de exploração. “Precisamos de políticas de manutenção do indivíduo, evitando que ele seja aliciado por uma circunstância que independe de sua vontade, que é não ter meios para sobreviver”.

Atuação do CNJ

A juíza do Trabalho e conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Flávia Pessoa falou sobre a atuação do CNJ na proteção do trabalho digno feita pelos seguintes microcolegiados: Comissão Permanente de Democratização do Acesso à Justiça; Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das demandas relacionadas a exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e Tráfico de Pessoas (Fontet); Fórum Nacional da Infância de da Juventude (Foninj); Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão; Comissão Permanente da Agenda 2030; a criação dos Laboratórios de Inovação, Inteligência (LIODS) e os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS). Sobre os laboratórios, Flávia lembra que “a ideia é que sejam espaços horizontais em que os usuários possam discutir questões fundamentais da própria gestão judiciária”.

Em relação à agenda 2030, a conselheira do CNJ falou da importância da inserção, entre as Metas Nacionais para o Poder Judiciário em 2020, da integração da Agenda ao Poder Judiciário, por meio de ações de prevenção ou desjudicialização de litígios voltadas aos objetivos de desenvolvimento sustentável (meta 9). “Esses planos de ação são fundamentais para possibilitar a implementação de medidas de enfrentamento em diferentes áreas, inclusive o combate ao trabalho escravo”, ressaltou.

Diante de todas essas ações, Flávia Pessoa aponta o monitoramento dessas atividades como o principal desafio a ser enfrentado em todas as esferas do Judiciário, não descartando a interligação dessas atividades.

MPT

O debate também contou com a participação do presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), José Antonio Vieira de Freitas Filho. Em vídeo, o dirigente ressaltou que o fim da escravidão e do tráfico de pessoas constituem prioridades absolutas para o Ministério Público do Trabalho (MPT). Nos últimos cinco anos, apontou, a partir de 5.909 denúncias, foram ajuizadas 516 ações civis públicas e celebrados 1.402 termos de ajustamento de conduta.

Segundo o presidente, o MPT, com a parceria da fiscalização do trabalho e de outros órgãos e instituições, organiza-se em regime de força-tarefa, constituindo equipes multidisciplinares com membros e servidores, cuja efetividade demanda foco, planejamento, articulação, inteligência e segurança. “Não se pode prescindir, contudo, do elevado grau de comprometimento público dos juízes e juízas do trabalho, na aferição das condições das ações propostas, sobretudo da legitimidade ativa, e na urgência da apreciação de requerimentos liminares – de interdição de estabelecimentos, de satisfação ou de liberação de créditos, de concessão de adequado abrigo aos resgatados e de custeio do retorno às regiões de origem, por exemplo”.

TV Anamatra

Confira abaixo a íntegra da programação de hoje. No canal da TV Anamatra no Youtube, na playlist “Seminário Trabalho Escravo Contemporâneo”, também estão disponíveis os debates dos dias anteriores, bem como os vídeos com as participações especiais e de apoio sobre o tema.

Fonte: Anamatra
Data original da publicação: 18/06/2020

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