“Cruzada de Bolsonaro” depende de sucesso contra desemprego e violência

Leonardo Sakamoto

Fonte: UOL
Data original da publicação: 03/01/2019

Entre outros assuntos, os discursos de posse de Jair Bolsonaro e da fatia de seus ministros mais estridentes reforçaram que o novo governo foi eleito para uma cruzada (na acepção medieval na palavra) a fim de livrar o Brasil de posicionamentos e pautas progressistas, que seriam – segundo eles – a fonte do mal. É papel de Bolsonaro e assessores convencerem a opinião pública que a população brasileira lhes deu mandato para liberá-la do socialismo, do marxismo, do “globalismo”, do “gayzismo”, do “coitadismo”, do “abortismo”, do “mimimismo” e qualquer outra fantasia que viralize nas redes sociais a partir de sua ilimitada criatividade e a de seus parceiros da extrema direita internacional.

Liberá-la de algo que não existe, como uma hegemonia socialista, é igual a tentar aterrorizar uma população para os riscos do Homem do Saco ou da Mulher de Branco. Por outro lado, fomentar um estado de apreensão constante é fundamental para que a base do bolsonarismo, que esteve com o presidente desde sempre, mantenha-se coesa e orientada a manter a guerra política.

Mas é papel de todos que não estiveram presos em uma caverna sem acesso a wi-fi durante o processo eleitoral lembrar que o grosso dos quase 57,8 milhões votos do presidente não eram de extrema direita e escolheram-no pela esperança de ter mais segurança (diante das quase 64 mil mortes violentas em 2017), mais ordem (frente à corrupção adotada como instrumento de governo) e mais emprego (por conta dos 12,2 milhões de pessoas sem trabalho). Apostaram que aquele que se anunciou como o destruidor do sistema traria respostas que o sistema não seria mais capaz de dar.

Conforme pesquisa Datafolha de outubro, a vontade de renovação para resolver esses problemas foi a razão principal no voto no eleito e não a implantação de uma sharia cristã no país.

O Brasil que elegeu Bolsonaro não compartilha necessariamente do mesmo pacote simbólico e ideológico que o seu novo presidente – ao contrário do que ele e seus auxiliares fizeram crer nos últimos dois dias.

O ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez afirmou que o presidente “prestou atenção em pais e mães reprimidos pela retórica marxista que tomou conta do espaço educacional”. E que combateria o “marxismo cultural”.

Desconfio que a maioria dos responsáveis pelas crianças e jovens estão mais preocupados com a formação precária dos alunos, muitos dos quais saem do Ensino Médio analfabetos funcionais, com a ausência ou má qualidade da merenda escolar, a falta de estrutura nas escolas, a insuficiência do ensino técnico, entre outras coisas mais práticas.

Enquanto isso, o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, adotou um discurso com tons messiânicos (“presidente Bolsonaro está libertando o Brasil por meio da verdade“) e religiosos. “Deveria preocuparmos cada vez mais a teofobia, o ódio contra Deus. Há uma teofobia horrenda e gritante na nossa cultura, não só no Brasil, em todo o mundo. Um ódio contra Deus que vem sabe-se lá de onde, canalizado por todos os códigos de pensamento e de não pensamento que perfazem a agenda global.”

Creio que a maioria dos empresários e da sociedade esteja mais preocupada em ampliar acordos multilaterais e bilaterais para fomentar crescimento em nossa economia, garantir uma relação pacífica com a maior quantidade possível de nações, firmar-se como principal liderança em energia limpa e políticas contra mudanças climáticas e concretizar uma integração regional na América do Sul profunda e condizente com os interesses brasileiros, nos âmbitos comercial, regulatório, migratório e de infraestrutura.

O Brasil tem uma maioria conservadora, mas com posicionamentos flexíveis. É majoritariamente a favor do encarceramento de mulheres que abortaram em casos não permitidos pela lei, como apontam pesquisas de opinião, por exemplo, mas muda de opinião quando se pergunta aos entrevistados se eles manteriam a posição se fosse sua filha ou  esposa.

Não estou, portanto, entrando na discussão bizantina se o Brasil é conservador ou progressista, mas analisando como a população não está alinhada necessariamente às pautas da parte estridente do novo governo.

A maioria (61%) afirma que a posse de armas de fogo deve “ser proibida, pois representa ameaça à vida de outras pessoas”, segundo pesquisa Datafolha divulgada em 31 de dezembro. E uma minoria (37%) defende que a posse de armas é “um direito do cidadão para se defender”. A facilitação da posse (direito de ter em casa ou no escritório) e do porte (direito de transportar consigo) de armas é uma das principais propostas de campanha de Bolsonaro para combater a criminalidade, mas não encontra lastro na sociedade.

O Brasil é mais plural e complexo que as ideias defendidas por Bolsonaro e seus ministros nos últimos dias. Se essa pluralidade não for respeitada, não serão apenas minorias que irão protestar contra o governo, mas o próprio setor empresarial. Afinal, quem vai ser responsabilizado quando os direitos de indígenas forem negados como consequência do ministério da Agricultura ter se tornado o responsável por resolver sua questão territorial? Quem vai pagar o prejuízo quando exportações forem bloqueadas por fotos de chacinas correndo o mundo? Porque isso derramará sangue de populações tradicionais, mais do que já derramamos cotidianamente.

Claro que será tarefa de todos os eleitores (pessoas físicas e jurídicas), das instituições por mais desgastadas que estejam e da imprensa lembrá-lo constantemente disso a fim de que não se ache no direito de moldar o país à sua imagem e semelhança. Por que líderes, da esquerda e à direita, que falam o tempo todo de Deus, não raro, acabam se sentindo à vontade para agir como tal.

Bolsonaro sabe que terá mais liberdade para sua pauta de costumes e comportamentos se conseguir reduzir significativamente o desemprego e a violência, temas sob o comando de Paulo Guedes e Sérgio Moro. Afinal, a parte da população que votou por mudança e não por fiscalizar o sexo alheio aceitaria mais facilmente a excentricidade temática por ele proposta desde que o Estado garanta segurança econômica e o direito de ir e vir sem ser molestado.

Deveria, portanto, se preocupar em seus discursos em explicar como ambos irão fazer isso, de preferência sem jogar a conta nas costas dos mais vulneráveis e sem cortar mais direitos, ao invés de colocar a carroça na frente dos cavalos.

Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

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