Crise de identidade e disrupção moral: a experiência dos trabalhadores portuários avulsos de Santos no processo de modernização portuária

Rosana Machin
Márcia Thereza Couto
Eunice Nakamura

Fonte: Revista de Ciências Sociais: Política & Trabalho, João Pessoa, n. 44, p. 191-209, jan./jun. 2016.

Resumo: O artigo explora a experiência e os sentidos atribuídos pelos trabalhadores ao processo de mudança do trabalho portuário no Porto de Santos, em São Paulo – Brasil. Nosso enfoque são as transformações implementadas no cotidiano dos trabalhadores portuários avulsos, baseadas no novo modelo de gestão portuária fundamentado em pressupostos de eficácia e eficiência, visando o melhoramento da competitividade do setor. O estudo, de natureza qualitativa, desenvolveu-se na área de abrangência do Porto de Santos. Foram entrevistados representantes de diferentes categorias de trabalhadores portuários, totalizando 31 entrevistas. O processo de modernização abala uma cultura de trabalho ancorada num sistema ocasional, coletivo, de ritmo irregular, essencialmente masculino e com controle do processo de trabalho. As mudanças se expressam em experiências reveladoras de disrupção moral, decorrentes das tensões entre elementos constituintes de uma identidade de trabalhador portuário e as novas configurações desse trabalho.

Sumário: Introdução | O percurso metodológico da investigação | “Antes e Hoje” – pensando sobre o processo de modernização portuária | Relações de trabalho, sociabilidade e geração | Identidade e masculinidade | Considerações finais | Referências

Introdução

Na contemporaneidade, o modelo econômico prevalente dita as formas de organização da produção, adequando-a para um mundo de competitividade, e impõe formas de organização do trabalho que garantam respostas efetivas, por meio da diminuição dos custos e o aumento dos lucros.

No caso do setor portuário, esse processo apoiou-se na desarticulação da organização sindical como prerrogativa do gerenciamento da escalação para o trabalho, em novas formas de contratação do trabalho, na redução do contingente de trabalhadores, na intensificação do trabalho, na aceleração no ritmo de produção e inserção de novos equipamentos e maquinários, mudanças que impactaram de maneira significativa o trabalho executado (TURNBULL, WOOLFSON, KELLY, 1992; GREEN, 2000; PÉREZ, MORENO, 2008). O processo de modernização do Porto de Santos tem incorporado estes pressupostos tal como ocorreu em outros Portos do Brasil e da América Latina, igualmente vivenciado por portos da Europa, América do Norte e Ásia (DIÉGUEZ, 2007).

Segundo Turnbull, Woolfson e Kelly (1992), os estivadores correspondem a um dos últimos setores da antiga classe trabalhadora industrial a experimentar substantivas transformações na organização do trabalho, seguindo os passos de mineiros e gráficos. O autor faz referência às tentativas de introduzir de maneira extensiva novas regulamentações nas relações de emprego industriais na Europa, por volta do final dos anos 1980, em atenção a demandas de empregadores por maior flexibilização nas relações de trabalho. Não podemos deixar de mencionar o papel crucial do enfraquecimento do Welfare State, em países como França e Inglaterra, e outras mudanças ocorridas no campo dos direitos sociais, na medida em que avança a promoção de um capitalismo voltado à competitividade do mercado (COOPER, 2000). Nesse contexto, o ano de 1989 foi marcado pelo desencadeamento mundial (em portos na Europa, Austrália, América do Norte e Sul) de ações voltadas à estiva, objetivando modificações quanto aos termos e condições de contratação. De fato, muitos países se movimentavam, ao longo do final dos anos 1980 e na década seguinte, em torno de novas regulamentações do trabalho em seus portos, e cada um experimentou situações distintas quanto ao tempo demandado para as mudanças, atores envolvidos e alianças construídas.

Deve-se considerar que as alterações no contexto portuário envolvem uma gama variada de atores, certamente maior que em outros contextos industriais. É necessário, nesse caso, dependendo do modelo adotado, considerar a intrincada articulação entre Estado, administração portuária (nem sempre de caráter federal/ nacional, podendo ser municipal), agentes que respondem pela infraestrutura e manejo dos portos, empregadores, muitas vezes pulverizados em diversas empresas (donos de navios ou proprietários de empresas atuando no comércio internacional) e sindicatos de trabalhadores, em suas diversas linhas políticas e segundo as diferentes categorias de trabalho.

Nesse contexto, modernizar portos implica aparelhar a infraestrutura portuária para o movimento das cargas (estradas, ferrovias), investir em equipamentos e maquinários de custo elevado, redesenhar o modelo de porto (presença ou não do Estado na administração e manejo da infraestrutura) e alterar as relações de contratação e a organização do trabalho. Na maioria dos países, essa reforma foi feita em conjunto com uma reforma trabalhista do setor, já que era necessário desmontar o sistema de controle do processo de trabalho estivador vigente em muitos portos (DIÉGUEZ, 2007).

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Rosana Machin é Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Faculdade de Medicina, Departamento de Medicina Preventiva da USP, Brasil.

Márcia Thereza Couto é Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora da Faculdade de Medicina, Departamento de Medicina Preventiva da USP, Brasil.

Eunice Nakamura é Doutora em Antropologia pela USP. Professora do Instituto Saúde e Sociedade, Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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