Consciência Negra: ‘Escravidão é o assunto mais importante da história brasileira’, diz Laurentino Gomes após percorrer África para trilogia

Quando estava pesquisando sobre a chegada da família real portuguesa ao Brasil para escrever o best-seller 1808, lançado em 2007, o escritor Laurentino Gomes acreditava que ali não estava contemplada a grande história brasileira. “A escravidão é que é o nosso principal assunto. Impossível compreender o país, tanto do passado quanto do futuro, sem voltarmos às raízes africanas”, disse à BBC News Brasil.

Mais de uma década depois do lançamento do livro (o primeiro de uma trilogia sobre o império brasileiro, seguido por 1822 e 1889), Laurentino Gomes passou a trabalhar no “assunto mais importante de toda a história brasileira” para uma nova trilogia histórica.

O primeiro livro, com lançamento previsto no segundo semestre do ano que vem, se passa entre o primeiro leilão de escravos africanos enviados às Américas, organizado em Portugal ainda no século 16, até a morte do escravo pernambucano Zumbi dos Palmares, decapitado em 20 de novembro de 1695 – em 2003, a data entrou para o calendário escolar e, em 2011, o governo federal a decretou como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, que é feriado apenas em cidades e Estados com leis específicas para isso. O texto já foi concluído e enviado para a editora.

O segundo, previsto para sair em 2020, vai cobrir todo o século 18, considerado o auge do tráfico negreiro da África para as Américas. Em 2021 deve sair a obra final, abordando a crise da estrutura escravista brasileira e a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em maio de 1888. Estima-se que 4,8 milhões de africanos escravizados chegaram ao Brasil entre os séculos 16 e 19.

Segundo o escritor, “a participação dos africanos no tráfico de escravos se tornou um tema politicamente explosivo no Brasil”. Para ele, “o fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com os seus afrodescendentes”. “Não se pode culpar os escravos pela sua própria escravidão”, falou Gomes.

O tema foi motivo de polêmica durante a campanha presidencial de 2018, devido declaração do então candidato Jair Bolsonaro de que os portugueses não entraram na África para capturar escravos.

“Basta ver as estatísticas, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica. Precisamos corrigir isso urgentemente, e não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos”, afirmou o escritor.

Para escrever os novos livros, Laurentino Gomes passou seis meses em 2017 viajando por Angola, Cabo Verde, Moçambique, Senegal, Gana, Benim, Marrocos e África do Sul, além do período de pesquisas e entrevistas em Lisboa, capital portuguesa, onde vive há alguns anos.

Nos meses em que viajou pela África, Laurentino admite que descobriu realidades diferentes do que esperava. Para além do futebol e da música, por exemplo, que são idolatrados na maior parte do continente, ele percebeu que o Brasil é um “parente” distante do qual eles queriam estar mais perto.

“Não observei qualquer traço de ressentimento ou cobrança relacionados à história da escravidão. Ao contrário: se pudessem, os africanos estariam mais próximos dos brasileiros do que são hoje”, conta. Mas também lamenta: “Há ainda muito preconceito no Brasil em relação à África, é uma pena”.

A seguir, trechos da entrevista que Laurentino Gomes concedeu à BBC News Brasil sobre a nova trilogia e as viagens pela África:

BBC News Brasil – Como a história sobre a escravidão africana para as Américas é contada hoje nos países africanos que você visitou?

Laurentino Gomes – Existem algumas distorções parecidas com o estudo e o ensino oficial da escravidão fora da África. Lá estuda-se e discute-se pouco o papel dos próprios africanos no processo de escravização, com uma ênfase muito grande no papel dos europeus, dos traficantes e dos compradores de cativos que estavam na América.

Os africanos são apontados nos discursos hegemônicos como vítimas do regime escravista. De fato, pelo menos 12 milhões de prisioneiros africanos foram vítimas do tráfico, porque cruzaram o Oceano Atlântico como escravos a bordo dos navios negreiros.

Mas há ainda uma lacuna que precisa ser preenchida, e que diz respeito ao papel dos chefes africanos aliados aos traficantes europeus e brasileiros, que capturavam pessoas no interior do continente e os vendiam depois no litoral. Esses chefes se enriqueceram muito com isso, tanto é que grande parte da elite africana atual é herdeira desses comerciantes de escravos nativos.

BBC News Brasil – O presidente eleito, Jair Bolsonaro, disse durante a campanha que os portugueses não entraram na África para capturar escravos. Como o senhor vê essa afirmação?

Gomes – A participação dos africanos no tráfico de escravos se tornou um tema politicamente explosivo no Brasil. Obviamente, os portugueses entraram, sim, na África. Ocuparam e colonizaram Angola, por exemplo, um território enorme naquela época, para abastecer o tráfico negreiro para as Américas. Mas essa discussão pode ter consequências políticas muito ruins atualmente.

Muita gente afirma que, se os africanos participaram e lucraram com a escravidão, não haveria razão para manter no Brasil um sistema de cotas de inclusão dos afrodescendentes em escolas, universidades ou postos da administração pública. A chamada “dívida social” brasileira em relação aos descendentes de escravos estaria anulada pelo fato de os africanos serem co-responsáveis pelo regime escravista. Desse modo, não haveria porque indenizá-los ou compensá-los pelos prejuízos sociais e históricos decorrentes disso.

Tudo isso é muito injusto porque, obviamente, não se pode culpar os escravos pela própria escravidão. O fato de chefes africanos terem participado do tráfico nada tem a ver com a enorme dívida social e real que o Brasil tem com os seus afrodescendentes.

Basta ver as estatísticas, onde a nossa população negra aparece como a parcela da sociedade com menos oportunidades e a que mais sofre com a desigualdade social crônica. Precisamos corrigir isso urgentemente e não podemos nos esconder atrás de falsas e incorretas discussões a respeito de fatos históricos.

Além de tudo isso, há um enorme equívoco conceitual nesse tipo de raciocínio, porque dizer hoje que africanos escravizavam africanos é o que os historiadores chamam de anacronismo, ou seja, o uso indevido de valores e referências de uma época para julgar ou avaliar personagens ou acontecimentos de outro período histórico.

A noção de uma identidade pan-africana, que unisse os habitantes de todo o continente, ainda não existia nos tempos do tráfico de escravos. Ninguém se reconhecia como africano, até porque a África sempre foi um território de grande diversidade e de riqueza culturais diversas, habitado por uma miríade de povos, etnias, nações, linhagens e reinos que frequentemente estavam envolvidos em guerras e disputas territoriais.

Aceitar, portanto, a ideia de uma identidade continental naquele tempo seria o equivalente a imaginar que, antes da chegada de Cabral à Bahia, um índio guarani do sul do Brasil identificasse como irmão pan-americano um índio navajo, dos Estados Unidos, ou um asteca, do México.

BBC News Brasil – Como Portugal lida hoje com seu papel central de articulação desse mercado de escravos do passado?

Gomes – Há uma discussão enorme e passional entre os portugueses sobre o passado escravagista.

Tempos atrás, a inauguração de uma estátua em homenagem ao padre Antônio Vieira foi alvo de protestos em Lisboa. O motivo foi que Vieira é hoje considerado um defensor da escravidão africana.

Obviamente, a história é dinâmica e conceitos que valem hoje certamente não valiam no passado. Seria injusto julgar personagens e acontecimentos do passado com os olhos, os valores e as referências de hoje. Mas eu acho que há um lado saudável nisso: o de chamar a atenção para o problema do legado da escravidão entre nós.

Rua Brasil, em Acra, capital de Gana. A Rua fica no bairro do Tabons, comunidade de descendentes de escravos do Brasil que retornaram para a África. Fotografia: Laurentino Gomes/Acervo pessoal

BBC News Brasil – Como o Brasil é visto hoje nos países africanos de onde partiram escravos?

Gomes – Em todas as minhas cinco viagens por oito países africanos eu, como brasileiro, me senti sempre muito bem acolhido e bem tratado. Não observei qualquer traço de ressentimento ou cobrança relacionados à história da escravidão.

Coisa bem diferente ocorre, por exemplo, com os angolanos em relação aos portugueses, que hoje ainda são apontados como os principais culpados pelos grandes problemas do país.

Isso acontece porque o chamado processo de “descolonização” ainda é bem recente, já que a guerra contra Portugal pela independência acabou meio século atrás. O clima de má vontade de parte a parte é ainda muito grande, mas em relação ao Brasil isso não acontece.

Ao contrário: senti que, se dependesse dos africanos, a aproximação seria maior do que a que temos hoje.

BBC News Brasil – Muito se fala sobre os impactos da escravidão africana na sociedade brasileira, mas você conseguiu captar esses efeitos nas sociedades atuais da África?

Gomes – Existem estudos importantes feitos na África sobre o impacto da escravidão na demografia do continente e também no processo de desenvolvimento posterior desses países.

O tráfico de escravos drenou uma quantidade inacreditável de recursos humanos do continente africano e distorceu a economia e as relações de poder nas sociedades afetadas pelo comércio de cativos, sem contar o fato de que regiões inteiras do continente foram redesenhadas em razão do tráfico de escravos.

As marcas dessa história ainda todas lá, bem presentes.

BBC News Brasil – Muitos locais que outrora foram pontos centrais da escravidão hoje são roteiros turísticos, como os portões de não retorno. Como você percebe esse tipo de turismo moderno?

Gomes – Existem dezenas desses portões nas cidades africanas, que simbolizam antigos portos de embarque dos escravos para a América. A mais famosa e fotografada fica na Ilha de Goreia, na Baía de Dacar, capital do Senegal. Eles se orgulham com o fato de que diversas celebridades internacionais, incluindo o papa João Paulo 2º, o presidente norte-americano Barack Obama, e o sul-africano Nelson Mandela foram visitá-lo.

Uma das bases dos livros sobre a escravidão é o banco de dados Slave Voyages, que cataloga mais de 37 mil viagens de navios negreiros ao longo de três séculos e meio e registra um total de 188 portos de partida de cativos no continente africano.

Diante desses números, acho importante a existência dos portões hoje como pontos turísticos, porque ajudam na reflexão sobre a história da escravidão. O ruim disso, para mim, é que eles são pouco visitados por brasileiros.

BBC News Brasil – Quais são as influências do Brasil nos países africanos que você visitou para escrever o novo livro?

Gomes – Brasil e África compartilham raízes mais profundas do que se imagina. Fomos a maior sociedade escravagista do hemisfério Ocidental por mais de 300 anos e, além disso, 40% de todos os 12 milhões de cativos africanos trazidos para as Américas tiveram como destino nosso país. Por conta desses números expressivos, as marcas brasileiras são bem visíveis hoje no continente africano.

Em Gana e no Benim, por exemplo, encontrei uma numerosa comunidade de descendentes de ex-escravos que voltaram durante o século 19 e que, nas sociedades atuais, ocupam posições importantes da hierarquia social.

Alguns deles foram ministros, governadores e chegaram até a ser presidentes. Esses ex-escravos retornados deixaram contribuições importantes na arquitetura, nas artes e nos costumes em diversos países africanos. Na cidade de Porto Novo, no Benim, há uma mesquita muçulmana com traços arquitetônicos semelhantes às igrejas católicas brasileiras, que foi construída por escravos libertos da Bahia. O ofício deles no Brasil era justamente erguer templos católicos, e eles levaram a técnica de construção para a África.

Mesquita com estilo arquitetônico das igrejas católicas brasileiras construídas por ex-escravos que voltaram ao Benim, no oeste da África. Fotografia: Laurentino Gomes/Acervo Pessoal

Mas eu vi influência também na enorme audiência que as novelas da Rede Globo têm nos países de línguas portuguesa. É tão grande que elas chegam a mudar o sotaque e o modo de falar desses locais.

BBC News Brasil – Qual capital da África se parece mais com uma cidade brasileira de hoje?

Gomes – Praia, capital de Cabo Verde, é uma mistura de Salvador e Rio de Janeiro, com a presença constante da música da brasileira, especialmente a Bossa Nova, que é muito forte entre os compositores e intérpretes caboverdianos.

Luanda, capital de Angola, lembra muito o Rio, incluindo as muitas favelas que compõem a periferia pobre da cidade. O biotipo das pessoas, o jeito de falar e de se comportar também lembram muito o carioca.

Tive a mesma sensação em relação à Bahia quando fui para Gana, Senegal e Benim, de onde, por sinal, vieram muitos cativos africanos para trabalhar nos engenhos de açúcar do Recôncavo Baiano.

No Benim, especialmente, me impressionou a quantidade de templos e símbolos ligados à prática do candomblé. A culinária desses países também é muito parecida com a nossa: marcada pelo uso de ingredientes como a pimenta-malagueta, a mandioca, o feijão, o quiabo, o inhame e o milho. Qualquer brasileiro que visitar a África, pelo menos nessas regiões, vai se sentir imediatamente em casa.

BBC News Brasil – Nesses países que visitou, você notou que o Brasil é um destino de migrantes africanos?

Gomes – O Brasil ocupa esse lugar sim. A migração para o Brasil ainda é muito forte entre os angolanos, os nigerianos e os cabo verdianos.

Encontrei muitas pessoas que já tinham morado e estudado no Brasil e conheci outras muitas com desejo de viver pelo menos algum tempo neste outro lado do Atlântico.

Fiquei bastante surpreso ao ver que os africanos têm muita informação sobre o Brasil, acompanham de perto das notícias a nosso respeito e até se ressentem pelo fato de a recíproca não ser a mesma.

Nós, aqui no Brasil, acompanhamos pouco o que acontece na África. O turismo daqui para lá também é muito reduzido. Muitos brasileiros preferem passar férias na Flórida, em Los Angeles e Las Vegas, nos Estados Unidos – que não têm nada a ver com a nossa cultura -, do que fazer uma visita, mesmo que rápida e uma só vez na vida, aos países africanos em que estão plantadas as nossas raízes mais profundas. Há ainda muito preconceito no Brasil em relação a África, o que é uma pena.

BBC News Brasil – Você chegou a presenciar a reação dos africanos às eleições no Brasil?

Gomes – Não, mas observei um grande desconforto em relação ao que estava acontecendo ainda durante o governo Michel Temer.

O Brasil mantém uma política meio esquizofrênica em relação à África, com surtos de aproximação que se alternam com distanciamentos abruptos.

O último desses surtos ocorreu durante os 14 anos de administração petista, em que o governo brasileiro derramou muito dinheiro nos países africanos para obras de infraestrutura, usando como duto as empreiteiras que, mais tarde, estariam envolvidas na Operação Lava Jato.

Hoje é só um distanciamento e até uma má vontade dos dois lados: encontrei obras paradas, projetos interrompidos e embaixadas e consulados com dificuldades até para pagar as contas, incluindo o aluguel, como resultado dos cortes do orçamento no Itamaraty. Entre os governos locais, até pouco tempo atrás habituados a conviver com a generosidade do dinheiro do BNDES e de outras linhas de financiamentos brasileiras, impera agora uma franca revolta contra o governo do presidente Michel Temer, que fechou a torneira quando chegou.

BBC News Brasil – O que mais o impressionou nessas viagens a África?

Gomes – A presença chinesa que substituiu o vácuo deixado pelo Brasil.

Encontrei projetos chineses espalhados por todos os lugares: em Cabo Verde, Angola e Moçambique – para citar apenas três dos países africanos de língua portuguesa que visitei no meu trabalho de reportagens.

São obras gigantescas identificadas com placas, também enormes, escritas em mandarim. A agressividade chinesa na África podia ser medida, entre outras providências, pela criação do Fórum de Macau, organismo de cooperação com as nações lusófonas na África, iniciativa que tem o óbvio propósito de se contrapor à CPLP, a Comunidade dos Países de Línguas Portuguesa.

O Brasil, embora seja um dos fundadores da CPLP, nunca deu a devida importância à entidade.

BBC News Brasil – Como escritor de sucesso com a trilogia 18081822 e 1889, qual é a sua expectativa sobre as reações em torno desse novo trabalho?

Gomes – Acredito que a escravidão seja o assunto mais importante de toda a história brasileira.

Tudo que já fomos no passado, o que somos hoje e o que seremos no futuro tem a ver com as nossas raízes africanas e a forma como nos relacionamos com elas. Minha trilogia segue a fórmula dos meus livros anteriores, pelo uso de uma linguagem simples, fácil de entender, capaz de atrair a atenção mesmo de leitores mais jovens e não habituados a estudar o tema. Mas espero dar uma contribuição pessoal para o desafio brasileiro de encarar a sua própria história escravagista e dela tirar lições que nos ajudem a construir o futuro.

Fonte: BBC News Brasil
Texto: Vinícius Mendes
Data original da publicação: 20/11/2018

One Response

  • Ótima entrevista com Laurentino Gomes. Aguardo o lançamento pra fazer uma boa e prazerosa leitura. Tenho e li os livros 1808,1822;e 1889.

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