Como o fascismo e o capitalismo convergiram para redefinir o governo

O fascismo é o reino absoluto do neoliberalismo.

Richard D. Wolff

Fonte: Carta Maior, com Brave New Europe
Tradução: César Locatelli
Data original da publicação: 16/10/2020

A iminente eleição [nos EUA] trouxe debates intensos sobre um capitalismo em crise, o aumento do nacionalismo e do poder do Estado e a possibilidade de um fascismo renovado. Políticas e ideologias polarizadas, ao lado de problemas sociais há muito acumulados e movimentos, moldam os objetos e tons do debate. O fascismo pode acontecer aqui? Está em andamento? Ou poderia o capitalismo atual evitar um retorno ao fascismo? Essas questões refletem o alto risco da eleição e este momento da história.

O Estado – a instituição que organiza, aplica e julga as regras que governam nosso comportamento na sociedade – deve existir no capitalismo? Essa questão tem sido importante, principalmente para certos ideólogos que defendem o capitalismo. Sua ideia principal é que os problemas da sociedade moderna são causados pelo Estado. Eles não são causados pela estrutura empregador-empregado das empresas capitalistas ou dos mercados, distribuições desiguais de riqueza e outras instituições que essas empresas apoiam. Esses ideólogos imaginam um capitalismo puro, perfeito ou bom, não distorcido por nenhum aparato de Estado. O capitalismo que eles buscam alcançar é muito utópico. Eles concluem que, ao reduzir o Estado (ruim por definição), os problemas do capitalismo moderno também podem ser reduzidos. Ao eliminar o Estado, um capitalismo assim purificado resolverá esses problemas. De libertários a charlatães do Partido Republicano, essa ideologia serve para desviar do capitalismo e direcionar ao Estado o ressentimento e a raiva justificados de suas vítimas.

Uma visão contrária sustenta que o Estado sempre existiu ao longo da história das sociedades nas quais o sistema econômico capitalista prevaleceu. Neles, o Estado – como outras instituições – refletia as condições, conflitos e movimentos particulares de cada sociedade. A economia capitalista assentou-se na fundação de empresas cuja organização interna punha, de um lado, os indivíduos participantes em uma minoria (empregadores) e, de outro lado, uma maioria (empregados). A minoria possuía e operava as empresas, tomando todas as suas decisões básicas: o que, como e onde produzir e o que fazer com a produção. A maioria vendia sua força de trabalho à minoria, possuía pouco ou nada da empresa e era excluída das decisões básicas da empresa. Um resultado dessa estrutura econômica básica era a existência de um Estado. Outro resultado era um padrão de intervenções do Estado na sociedade que reproduzia o sistema econômico capitalista prevalecente e a posição dominante dos empregadores dentro dele.

Claro, as muitas contradições internas das sociedades nas quais o capitalismo prevaleceu também influenciaram e moldaram o Estado. Os funcionários, por exemplo, podiam e muitas vezes pressionavam o Estado por intervenções que os empregadores não queriam. Seguiram-se lutas pelo Estado e suas intervenções. Os resultados individuais variaram, mas o padrão que surgiu ao longo do tempo foi um Estado que reproduzia o capitalismo. Da mesma forma, em sociedades pré-capitalistas, como as sociedades escravistas e feudais, padrões paralelos caracterizavam seus Estados. Por períodos consideráveis, esses Estados também reproduziram suas estruturas de classe: senhores e escravos na escravidão e senhores e servos no feudalismo. Normalmente, quando um Estado não reproduz mais uma estrutura de classe particular, seu fim está próximo.

As condições e os conflitos em evolução em cada sociedade determinaram o tamanho, as atividades e a história de seu Estado. Isso inclui determinar se o poder do Estado é descentralizado, centralizado ou uma combinação de ambos. As condições e conflitos sociais também determinaram a proximidade, a intensidade da colaboração e, até mesmo, a possível fusão entre o aparato estatal e a classe dominante dentro de cada sociedade. No capitalismo europeu, a descentralização inicial deu lugar a uma forte tendência à centralização do Estado. Em certas condições extremas, um Estado centralizado se fundiu com uma classe capitalista, de grandes e concentrados empregadores, em um sistema chamado fascismo. O século 20 viu vários exemplos importantes de ascensão e queda do fascismo. Agora, novamente, o fascismo surge como um possível recurso para o capitalismo em apuros.

Normalmente, a transição de Estados descentralizados para centralizados refletia as condições sociais, nas quais as classes dominantes precisavam de um poder estatal fortalecido para reproduzir o sistema que dominavam. Eles temiam que, de outra forma, as condições sociais provocassem um colapso de seu sistema e / ou movimentos para um sistema econômico diferente. Em qualquer dos casos, seu domínio social estava em jogo. Como essa situação agora está em nossa agenda histórica, o fascismo também está.

Os sistemas escravistas podem persistir em condições descentralizadas. O poder do Estado, talvez localizado nas mãos de cada senhor de escravos, supervisionava a reprodução das duas posições de produção do sistema: senhor e escravo. Por fim, quando a reprodução foi ameaçada – por perturbações nos mercados de escravos, revoltas de escravos ou lutas divisivas entre senhores – um Estado separado foi criado, com um aparato e fortalecido. Muitas vezes ele tinha seus próprios escravos (escravos do “Estado”, podemos diferenciar dos escravos “privados”, pertencentes a pessoas de fora do Estado). Esse Estado fortalecido era frequentemente integrado mais intimamente com os senhores em uma reprodução mais rígida e coordenada da escravidão. A violência por parte dos senhores e do Estado, em conjunto, contra os escravos era recorrente.

Em feudalismos descentralizados, os senhores exerciam poderes de tipo estatal ao lado de suas posições econômicas, dirigindo a produção de seus servos subordinados. No final, quando pandemias, comércio de longa distância, revoltas de servos ou guerra divisiva entre senhores (como dramatizado nas peças de Shakespeare) ameaçaram o feudalismo, um Estado centralizado surgiu entre os senhores em conflito. Esse Estado – um senhor ou rei supremo – compartilhava o poder social com a hierarquia, do que poderíamos chamar de senhores “privados”, para reproduzir o feudalismo. Na Europa medieval, Estados feudais fortalecidos evoluíram para monarquias absolutas. Estas eram alianças estreitas entre reis e hierarquias de senhores dentro de fronteiras que definiam diferentes nações. Essas alianças estreitas implantaram a violência contra servos, contra revoltas de servos, contra senhores rebeldes, contra ameaças externas e de uns contra outros.

O capitalismo, como seus predecessores, escravismo e feudalismo, emergiu em pequenas unidades de produção descentralizadas. As empresas capitalistas, como unidades de produção escravistas e feudais (plantações, solares ou oficinas), também exibiam um sistema de duas posições básicas de produção. No caso do capitalismo, essas duas posições eram empregador e empregado. As diferenças eram que, no capitalismo, nenhuma pessoa possuía outra (ao contrário da escravidão), nem uma pessoa devia obrigações trabalhistas sancionadas religiosamente a outra (ao contrário do feudalismo). Em vez disso, um mercado de força de trabalho foi estabelecido ao longo do tempo. Os empregadores eram compradores e os funcionários vendedores em uma troca no mercado.

Quando os problemas finalmente ameaçaram a reprodução do capitalismo inicial, ele fortaleceu seu aparato estatal da mesma forma que a escravidão e o feudalismo tinham feito. Um desses problemas foi a oposição, por parte de sociedades escravistas e feudais centralizadas, ao capitalismo que surgiu a partir deles. Da mesma forma, conforme o capitalismo cresceu e se expandiu em todo o mundo, ele destruiu outros sistemas que resistiam. As intervenções violentas por meio de aparelhos de Estado fortalecidos os subjugaram e reorganizaram no que mais tarde se tornaram as colônias formais e informais do capitalismo. Essas intervenções encorajaram um Estado capitalista forte e vice-versa. As demandas e revoltas dos empregados também levaram os capitalistas a construir aparatos de Estado que poderiam discipliná-los e sufocá-los. Da mesma forma, a competição “acirrada” entre os empregadores exigia um árbitro poderoso para gerenciá-los e controlá-los.

Mesmo quando o capitalismo gerou um Estado forte, houve uma hesitação notável em fazê-lo, que confundiu a história do capitalismo até hoje. A hesitação surgiu porque o capitalismo inicial – o período em que as empresas capitalistas emergentes eram relativamente pequenas e prejudicadas por poderosos Estados escravistas ou feudais – via esses Estados como seus inimigos. Os capitalistas e seus porta-vozes queriam que o Estado fosse mantido fora da economia, impedido de favorecer empresas não capitalistas em detrimento de empresas capitalistas. Eles queriam que as empresas capitalistas e os mercados, que eles dominavam cada vez mais, fossem deixados em paz pelo Estado. A hostilidade e, portanto, a hesitação em relação aos Estados fortes passaram da defesa do “laissez-faire” no século 17 para a celebração do “mercado livre” nos tempos modernos. Na última forma, é utópico, uma construção imaginária útil para projetos ideológicos que justificam o capitalismo (como “eficiente”) e para slogans libertários. Nenhum capitalismo real nos últimos séculos teve um mercado livre sem intervenções e regulamentações do Estado.

Do século 18 ao século 20, o capitalismo se espalhou globalmente a partir de seus centros iniciais na Europa Ocidental. O Estado foi crucial para essa disseminação por meio de guerras (“abertura” de regiões ao comércio) e colonizações. Os conflitos entre capitalistas, especialmente as lutas endêmicas entre capitalistas competitivos e monopolistas e entre capitalistas de diferentes nações, necessitaram de intervenção do Estado. Os conflitos e batalhas capital-trabalho sempre foram estímulos para o fortalecimento e as intervenções do Estado. Imensos estabelecimentos militares permanentes, rotinizados após a Segunda Guerra Mundial, geraram complexos militares industriais. Esses complexos, especialmente na principal potência capitalista e militar após 1945, eram exatamente o tipo de fusão do Estado e grandes capitalistas que se tornaram modelos para fusões paralelas entre outras indústrias e o Estado.

Nos Estados Unidos, uma dessas fusões paralelas resultou no complexo médico-industrial. Ali, o papel do Estado era proteger um monopólio compartilhado entre quatro indústrias: médicos, hospitais, fabricantes de medicamentos e equipamentos médicos e seguradoras de saúde. O governo possibilitou e mantém essa sua fusão com o complexo médico-industrial. Ele faz isso de várias maneiras. Isenta o complexo da ação antitruste. O Medicare e o Medicaid, sistemas de saúde subsidiados pelo governo – seguro saúde público para idosos e pobres – cuidadosamente deixam a clientela mais jovem, mais saudável e mais lucrativa, para as seguradoras privadas de saúde. O governo evita comprar fármacos a granel e repassar as economias ao público. Finalmente, o governo geralmente bloqueia e principalmente denuncia as reformas genuinamente progressistas desse sistema médico lucrativo como “socialismo”.

De fato, se ainda não de jure, as fusões do Estado e da indústria capitalista pontuaram o crescimento do poder do Estado ao lado da concentração e centralização do capital.

Agora temos quase o mesmo acontecendo nas finanças. Os bancos centrais – em grande parte instituições estatais – há muito marcham em formação fechada com os principais bancos privados dos países capitalistas. O Federal Reserve respondeu aos três crashes capitalistas até agora neste século, não apenas aumentando sua criação de dinheiro e reduções nas taxas de juros, mas também estendendo o crédito a corporações não financeiras. O Fed compra fundos negociados em bolsa de títulos corporativos, títulos corporativos no mercado secundário e títulos lastreados em ativos com base em dívidas corporativas. Da mesma forma, o Fed agora possui um terço das hipotecas residenciais. O crédito governamental torna-se cada vez mais importante em relação ao crédito privado. O governo em breve coordenará suas decisões sobre quem receberá o crédito do governo com outras políticas governamentais, incluindo quais empresas chinesas serão banidas e quais empresas europeias serão sancionadas. Esses desenvolvimentos financeiros determinam mais marcos no caminho da fusão entre Estado e capitalistas.

Por trás do racismo, do nacionalismo e da guerra que Hitler defendeu, estava o sistema econômico central do fascismo. Isso envolveu uma fusão dos grandes capitalistas estatais e privados. O primeiro impôs as condições para que o segundo lucrasse. Por sua vez, os capitalistas acomodaram o funcionamento de suas empresas para financiar, produzir, precificar e investir de forma a apoiar as políticas do Estado fascista. A expropriação de meios de produção de propriedade privada teve como alvo subgrupos sociais selecionados (como os judeus). A arianização – não a abolição – do capitalismo privado era o objetivo do Estado.

Em contraste, os socialistas favoreciam a socialização das empresas capitalistas privadas. Não era a fusão do Estado com o capitalismo privado que os socialistas buscavam; era antes a expropriação do capitalismo privado. O Estado deveria tomar posse exclusiva dos meios de produção para operar um capitalismo de Estado. A maioria dos socialistas via o capitalismo de Estado como um estágio intermediário necessário para permitir a transição para o comunismo. Esse comunismo foi entendido como a antítese do capitalismo: propriedade social (não privada) nos meios de produção, planejamento governamental (não de mercados) para organizar a distribuição de recursos e produtos, controle e gestão de empresas pelos trabalhadores e distribuição da produção com base na necessidade, conforme determinado socialmente.

A organização econômica do fascismo é para onde o desenvolvimento econômico agora está levando o capitalismo em geral e o capitalismo dos Estados Unidos em particular. O capitalismo dos EUA agora replica uma tendência paralela de fusão com um Estado forte que caracterizou a escravidão e o feudalismo anteriormente. Os desafios sistêmicos para a reprodução do capitalismo são enfrentados com o aumento do poder do Estado, o crescimento dos grandes negócios capitalistas e, por fim, sua fusão em um fascismo. Exatamente como e quando o capitalismo evolui para o fascismo varia com as condições e desafios particulares de cada contexto nacional. Da mesma forma, as contradições internas do capitalismo – por exemplo, sua instabilidade cíclica e sua tendência ao aprofundamento da riqueza e da desigualdade de renda – podem provocar resistências de massa que podem desacelerar, interromper ou reverter a evolução, pelo menos por um tempo, ou mesmo redirecionar a transição econômica ao socialismo.

Mas a tendência do capitalismo é para a instabilidade (seus ciclos), a desigualdade (sua redistribuição ascendente da riqueza) e o fascismo (fusão Estado-capitalistas). Os primeiros 20 anos deste novo século mostram essas tendências em nítido relevo.

Richard D. Wolff é professor emérito de economia da Universidade de Massachusetts, Amherst, e professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Assuntos Internacionais da New School University, em Nova York. O programa semanal de Wolff, “Economic Update”, é distribuído por mais de 100 estações de rádio e chega a 55 milhões de receptores de TV via Free Speech TV. Seus três livros recentes com Democracy at Work são “The Sickness Is the System: When Capitalism Fails to Save Us From Pandemics or Itself”, “Understanding Marxism”, e “Understanding Socialism”.

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