Como a pandemia tem afetado profissionais já invisíveis para a sociedade

Fotografia: (1) Martine Perret/Fotos Públicas, (2) Arquivo Agência Brasil, (3) Jorge Araujo/Fotos Públicas

Mesmo antes da pandemia de Covid-19, profissionais como sepultadores, domésticas e catadores eram invisíveis para boa parte da sociedade. Agora, eles seguem exercendo trabalhos essenciais com o agravante de arriscarem constantemente suas vidas, e continuam não sendo reconhecidos por isso.

Mariana Lima

Fonte: Observatório do Terceiro Setor
Data original da publicação: 06/05/2020

A pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, tem mudado a rotina de bilhões de pessoas em todo o mundo. E no Brasil não é diferente. Muitas empresas tiveram que dar uma pausa nas atividades por tempo indeterminado, outras tiveram que se adaptar de forma brusca ao ambiente digital e muita gente tem perdido o emprego ou no mínimo uma parte da renda.

Diante deste cenário, muitos trabalhadores seguem exercendo as suas atividades quase da mesma forma de antes, com alguns cuidados a mais – e muitos riscos. É o caso de sepultadores, domésticas e catadores – profissionais muitas vezes invisíveis para boa parte da sociedade.

Para muitos desses profissionais, o único jeito de sobreviver é continuar saindo às ruas várias vezes por semana, ou mesmo todos os dias. Evitar o transporte público também não é uma opção. E a exposição ao novo coronavírus é constante.

Sem eles não há descanso final

Imagens de covas sendo abertas nos cemitérios da cidade de São Paulo circularam pelo país e pelo mundo, chamando atenção para as condições de trabalho no serviço funerário público.

Manoel Noberto Pereira, 53, começou a trabalhar como sepultador em 1997 por causa do desemprego. Atualmente no Cemitério Vila Nova Cachoeirinha, ele atua como diretor da Coordenação da Região Oeste do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindesp).

O sepultador resolveu entrar para a luta sindical em 2011 para combater o desmonte do sistema funerário público da cidade, que vem sendo agravado com o avanço da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus.

“A população acha que funcionário público é privilegiado, mas, quem trabalha em cemitério, se pedir algo é exonerado. Quando visitei alguns cemitérios da cidade para avaliar as condições antes do avanço do vírus, encontrei máscaras vencidas desde 2014 que os funcionários continuavam usando porque não tinham outra opção”.

No caso dos macacões, alguns locais chegavam a reutilizá-los (atitude não recomendada) ou a improvisar vestimentas sem aprovação da vigilância sanitária.

“Com a continuidade da pandemia e a negligência do Estado, as coisas continuarão assim. Sempre vai faltar em algum lugar”.

Atuando na diretoria do sindicato há um ano e meio, Manoel precisa circular por cemitérios que recebem os mortos pela Covid-19.

“Meus pais moram comigo, mas estão se cuidando. Eu uso os equipamentos de proteção, deixo o sapato fora de casa, tiro a roupa e vou direto para o banho, mas a preocupação é constante”.

E completa: “Mesmo sem exercer a função de agente sepultador, ainda tô cheirando a cemitério. Uma colega de profissão morreu por Covid-19 e ela trabalhava em polo de distribuição de urnas”.

Hoje, Manoel enxerga a importância de seu trabalho e a necessidade do treinamento e preparo psicológico para realizá-lo.

“Tem muito preconceito em relação a nossa profissão. As pessoas preferem ignorar esse tipo de trabalho, o que leva à invisibilidade. Mas o que seria da população sem o nosso serviço? Essa é uma das profissões mais antigas e merece ser respeitada”.

No início da pandemia, a prefeitura de São Paulo afastou 60% dos agentes sepultadores que estavam no grupo de risco – com mais de 60 anos ou com doenças pré-existentes.

Outros 220 sepultadores terceirizados foram contratados ao invés dos aprovados no concurso. De acordo com Manoel, essa situação causa conflitos entre a chefia dos agentes terceirizados e os funcionários da prefeitura.

Em casa sem renda ou indo trabalhar

De acordo com um estudo do Instituto Locomotiva, desde o início da pandemia de Covid-19, 39% dos empregadores de domésticas diaristas abriram mão do serviço destas profissionais sem manter o pagamento das diárias.

Além da perda da renda, a doença é uma ameaça frequente para algumas delas, como ocorreu com a primeira vítima fatal da Covid-19 no Estado do Rio de Janeiro: uma doméstica de 63 anos com histórico de diabetes e hipertensão, contaminada pela patroa que viajou ao exterior.

A doméstica Lenita Alves, 69, passou um mês em casa após o anúncio da quarentena. No entanto, a senhora para quem trabalha tem 89 anos e pediu que Lenita retornasse.

Trabalhando desde 1994 para ela, Lenita voltou ao trabalho com a carga horária reduzida a três dias por semana e recebendo metade do salário. Por ser aposentada, não pode receber o auxílio emergencial do governo.

“Morro de medo de pegar essa doença. Não tenho plano de saúde, então se for ao hospital ou eles não vão me atender ou vou pegar o vírus só de ir lá. A única coisa que pago é o plano funerário. Pelo menos essa preocupação não tenho”, desabafa.

Moradora de Japeri, município do Rio de Janeiro, Lenita gasta uma hora e meia no trem para chegar à estação Riachuelo, na capital do estado, e ir para a casa em que trabalha.

“O trem continua lotado. Os ambulantes então, tudo gritando sem máscara. No meu bairro também. Parece Copa do Mundo com todo mundo na rua. Só colocam máscara para entrar nos mercados e quando saem tiram”.

Lenita começou a trabalhar como doméstica aos 19 anos, tendo estudado apenas até a 5ª série. “Passei apenas por duas casas de família, e ambas me trataram bem. Se não, teria ficado pouco tempo com elas”.

A doméstica conta com apoio da afilhada Juliana França para participar do projeto ‘Pela Vida das Nossas Mães‘, grupo que reúne doações e tenta garantir os direitos destas trabalhadoras.

“Uma vizinha minha é diabética e trabalha como doméstica. O patrão ficou doente e chamou ela, que agora está indo trabalhar. Pelo menos tá garantindo o dinheirinho dela. Às vezes não tem o que fazer”, revela Lenita.

A reciclagem diminui, mas não para

O comércio fechado e as cidades mais vazias também impactaram o trabalho de catadores e catadoras de materiais recicláveis, responsáveis por 90% de toda a reciclagem feita no Brasil, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A catadora Elismaura Pereira dos Santos – popularmente conhecida por Maura –, 45, puxa carroça pela cidade de São Paulo e viu seu trabalho ser impactado pela pandemia.

“O comércio fechado tem me atrapalhado bastante. O local em que repasso os materiais agora está com horário reduzido, o que tem me prejudicado”.

Com menos material disponível, a renda da família vem variando uma vez que dois dos seis filhos de Maura atuam como catadores.

“Minha sorte foi que outros catadores foram receber doações e colocaram meu nome para receber também. O aplicativo ‘Caixa Tem‘ não tá funcionando, então não recebi nenhuma parcela do auxílio ainda”.

Há 20 anos puxando carroça, Maura tem um histórico de doenças que vão de alergias a doenças respiratórias e que podem facilitar o contágio.

“Quando voltamos com as carroças para casa, lavamos tudo, até os pneus. Depois todo mundo vai pro banho e coloca as roupas na máquina pra lavar. Estamos recebendo doações de luvas e máscaras, e até de álcool em gel, mas esse tenho comprado também”.

Há quatro anos puxando carroça, Alipio da Silva Santos, 20, tem encontrado um melhor cenário em Campos dos Goytacazes, município do interior do Rio de Janeiro.

“A minha renda caiu um pouco, mas os materiais recicláveis continuam fluindo na rua. Minhas preocupações diminuíram agora que o ferro velho não tem mais risco de abaixar o preço da reciclagem”.

Ele iniciou o trabalho com reciclagem devido à dificuldade de se estabelecer em um emprego. “Comecei a catar reciclagem por causa do lucro. Depois decidi viver só disso. Vi que a reciclagem é uma profissão que salva a natureza”.

Com o que consegue com a reciclagem, junto à renda do pai e do irmão que trabalham como pedreiro e ajudante de pedreiro, Alipio consegue manter a casa mesmo sem a liberação do auxílio emergencial.

“Converso com a maioria dos catadores da região e eles não parecem preocupados com a pandemia. Não dá para se isolar totalmente, então estou levando as coisas normalmente – desde que haja reciclagem e ferro velho aberto”.

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