Com motoristas empregados, o Uber acaba?

Fotografia: George Leuzinger

Os saltos tecnológicos do capitalismo e a regulação da economia digital.

Cássio Casagrande

Fonte: Jota
Data original da publicação: 01/03/2021

Nas duas últimas semanas, as empresas que contratam trabalhadores para serviços de transporte ou entrega via aplicativos sofreram duras derrotas na Europa. Decisões do judiciário da Holanda e a do Reino Unido, em instância final, reconheceram, respectivamente, que entregadores e motoristas recrutados por aplicativos são trabalhadores com direitos sociais. Na Itália, a fiscalização do trabalho, a partir de iniciativa do Ministério Público, aplicou multa de 733 milhões de euros às empresas Just Eat, Uber Eats, Glovo e Deliveroo, que atuam na entrega de comida. A autuação foi pelo não reconhecimento do vínculo de emprego com os ciclistas e motociclistas.

Diante dessas decisões, alguns exclamam: “as empresas vão deixar a Europa”; “haverá desemprego, pois contratarão menos pessoas”; “a decisão inviabiliza o ‘modelo de negócios’ dos aplicativos”; “as corridas e entregas ficarão mais caras e as empresas vão quebrar”. Será?

O capitalismo é um sistema que, em sua lógica, visa a maximização do lucro em um ambiente de livre concorrência e por isso depende do progresso constante da tecnologia. Desde a invenção do tear mecânico e da máquina a vapor, o capitalismo industrial passa por saltos de progresso tecnológico periódicos, que aumentam a produtividade e a competitividade das empresas e, ao mesmo tempo, provocam profundos impactos na vida das pessoas – positivos e negativos.

Os bens de consumos ficam mais baratos e acessíveis, as comunicações e os transportes são acelerados, surgem novos ricos em profusão e há um aumento da oferta de trabalho. Mas os saltos tecnológicos também levam à exploração indevida do homem e dos recursos da natureza. Formas tradicionais de produção artesanal são destruídas; novas estruturas de exploração do trabalho geram exaustão, doenças profissionais e acidentes fatais; rios e mares são poluídos; a vida comunitária e a solidariedade são dissolvidas por mudanças demográficas bruscas. Mercados tradicionais se desestabilizam e surgem novos conflitos de interesses, inclusive entre empresas.  Desequilíbrios econômicos afetam o mercado interno e o comércio entre as nações – e como consequência há conflitos nacionais e internacionais.

Como reação a esses efeitos deletérios colaterais do progresso tecnológico, grupos sociais se organizam politicamente e lutam por direitos, buscando impor certos limites à lógica estrita do lucro acima de tudo.

Criam-se leis trabalhistas, normas de proteção ao meio-ambiente e de zoneamento urbano, regras de proteção à concorrência e ao consumidor, entre outras. Em cada uma das “revoluções industriais”, os donos do capital resistem e tentam obstruir essas leis progressistas, alegando que elas “levariam à perda de competitividade”, “aumentariam o preço dos bens de consumo” e “destruiriam o sistema”.

É o que a história nos mostra: no século XIX, a invenção do descaroçador de algodão aumentou brutalmente a área de seu cultivo e expandiu o emprego de mão-de-obra escrava no Sul dos EUA; os plantadores alegavam que a emancipação dos negros poria fim à cultura algodoeira e encareceria o preço das roupas.

Os industriais ingleses sustentavam que o fim do trabalho infantil colocaria em risco a sobrevivência da indústria têxtil.

Nos anos 1920, as empresas de construção civil de Nova-Iorque sustentavam que leis de responsabilidade civil por acidente de trabalho impediriam a construção de arranha-céus (nessa época, a cada andar construído, um operário morria ou ficava incapacitado para sempre).

Mais recentemente, no Brasil, durante a Constituinte, representantes do capital alegavam que a licença-gestante faria com que as empresas deixassem de contratar mulheres. Depois, quando se concederam todos os direitos trabalhistas às empregadas domésticas, sustentou-se que elas ficariam sem trabalho.

Bem, com sabemos, o cenário “catastrófico” para o capitalismo nunca se seguiu à aprovação de direitos sociais decorrentes dos impactos de saltos tecnológicos ou de mudanças políticas. Pelo contrário, o sistema capitalista ficou mais eficiente e mais humano, legitimando-se, inclusive, perante os regimes democráticos, onde desequilíbrios brutais de riqueza podem gerar insatisfação e instabilidade, levando a revoltas e até mesmo a revoluções contra o próprio capitalismo.

Claro que nestas etapas de reivindicações e conquistas de novos direitos, empresas por vezes não conseguem acompanhar as mudanças, ficam para trás ou quebram. Mas essa “destruição criativa” é da essência do próprio capitalismo – e é salutar, como ensinou o genial economista austríaco Schumpeter. Empresas ineficientes serão substituídas (na verdade, devoradas) por outras mais eficientes.

Tudo isso apenas está se repetindo agora na “quarta” revolução industrial. O trabalho com a intermediação de aplicativos gerou uma massa de trabalhadores precários, destituídos de qualquer proteção. Cedo ou tarde, pelo legislativo ou pelo judiciário, a regulação virá. Se o Uber não conseguir manter certos direitos sociais para seus motoristas, a empresa pode, sim, desaparecer. E isso não é ruim, pelo contrário. Será substituída por outras mais eficientes. O mais provável é que ela puramente se adapte (já o está fazendo em estados como Nova Iorque e Califórnia, onde é obrigada por lei a pagar salário mínimo e limitar a jornada de motoristas).

Mas as corridas e entregas vão ficar mais caras para os consumidores se direitos forem reconhecidos aos motoristas? Provavelmente sim, porque hoje elas estão artificialmente baratas, pois o “modelo de negócios” destas empresas inclui superexplorar trabalhadores e sonegar contribuições fiscais e previdenciárias (e na verdade somos nós contribuintes que estamos subsidiando a empresa). O aumento no preço dos bens de consumo e serviço em razão da criação de direitos sociais é inevitável, e é um progresso.

Do contrário, vamos defender que nossas roupas sejam feitas por crianças trabalhando em regime de servidão ou que se restabeleça o transporte urbano por tração humana. Creio que não queremos voltar aos tempos do “King Cotton” no Sul dos EUA, nem ao Brasil Império do palanquim e da liteira.

Cássio Casagrande é Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.

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