Chile: Mobilizações regressam, fundos de pensão postos em causa

O modelo que privatiza as reformas continua a ser acarinhado pelo governo de Sebastián Piñera. Não será por acaso. É uma bandeira querida ao neoliberalismo e foi mesmo criado por um seu irmão quando pertencia ao governo de Pinochet. Sofreu esta quarta-feira um golpe quando a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que prevê que os trabalhadores possam retirar 10% destes fundos para fazer face à pandemia.

Nas ruas, o apreço pelos lucros que os fundos especulativos tiram das pensões dos trabalhadores não é o mesmo do clã Piñera. A revolta popular, que tinha sido travada pelo início do confinamento face à pandemia da covid-19, ganhou um novo fôlego com a contestação ao modelo e à resposta à crise social vivida. Houve cacerolazos mas os protestos não se ficaram pelo bater de tachos e panelas. Também existiram 28 barricadas só na capital do Chile e 61 pessoas foram detidas.

A legislação precisa ainda de ser aprovada no Senado antes de passar a ser lei. Mas o seu apoio na Câmara dos Deputados foi claro. Esta aprovou-a com 95 votos a favor, 36 contra e 22 abstenções. Tal como é claro o seu apoio no país: uma sondagem da Cadem feita este mês mostrava que 83% dos chilenos apoiam a medida.

Assim, mesmo 13 deputados da área governamental juntaram os seus votos à oposição, o que significa que a direita se dividiu fortemente. E de forma bem pouco pacífica. O deputado do partido de direita Renovación Nacional, Andrés Celis, denunciou na CNN Chile a compra de votos no campo governamental: “chateia-me que haja deputados que chamem outros deputados como intermediários de alguns ministros oferecendo algum tipo de benefício, postos de governo, benefícios para governos regionais ou cargos nos governos regionais”, afirmou, ao mesmo tempo que apontou diretamente o dedo ao deputado do seu partido Diego Schalpern como intermediário nestes negócios de votos.

A decisão não é pioneira. No Peru, onde o sistema é semelhante, foi aprovada em abril a possibilidade de levantamento de 25% dos fundos de pensões.

Pode-se dizer que Piñera tentara de tudo para impedir este desfecho. Prova disso é que nesta quarta-feira apresentou um pacote de medidas para tentar travar a medida, incluindo um bônus de 635 euros destinado à classe média com confusas condições de acesso. Um tiro que lhe saiu pela culatra já que o anúncio destas propostas foi um dos detonadores desta nova fase da indignação contra o governo.

AFP, o dinheiro do trabalho ao serviço da especulação

As AFP, Administradoras de Fundos de Pensão, são instituições privadas para as quais os chilenos são obrigados a descontar até ao momento da reforma. Aumentam os ganhos, investindo e especulando com o dinheiro que recebem. As perdas são socializadas, ao contrário dos lucros, claro.

O modelo foi criado em novembro de 1980 por um irmão do atual presidente, José Piñera, na altura ministro do Trabalho do ditador Augusto Pinochet. Começou, como de costume, por ser um sistema opcional: os trabalhadores podiam escolher manter-se no regime de pensões estatal antigo ou aderir ao novo sistema. As AFP receberiam o montante até então descontado pelo seu novo cliente.

A opcionalidade durou pouco. A partir de 31 de dezembro de 1982, todos os trabalhadores que iniciaram a sua carreira contributiva passaram a ser automaticamente incorporados nos fundos privados.

As AFP tornaram-se um negócio altamente lucrativo: em 2015 entraram nos cofres 160 mil milhões de dólares. Lucrativo para alguns, porque de um passado de segurança em que se sabia qual iria ser o valor da sua pensão, passou-se para um sistema irregular que depende dos humores dos mercados. E as pensões são baixas, queixam-se os beneficiários, muitas abaixo do salário mínimo de cerca de 400 dólares.

A teoria dos Chicago Boys, os economistas norte-americanos que influenciavam a política econômica do ditador chileno, era de que os lucros gerados desta forma acabariam por ser reinvestidos na economia. O sistema durante anos foi louvado como se houvesse um “milagre chileno”. Quem não concorda são os trabalhadores que continuam a sair às ruas contra a medida. Em 2017, as manifestações contra o atual sistema de pensões juntaram mais de dois milhões pessoas. E todo o sistema tem sido também criticado na vaga mais recente de manifestações contra a desigualdade social no Chile.

Fonte: Esquerda.net
Data original da publicação: 16/07/2020

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