‘Capital e Ideologia’ de Thomas Piketty: A desigualdade não é econômica ou tecnológica: ela é ideológica e política

O novo livro de Piketty, Capital e Ideologia, vai além das dinâmicas econômicas, buscando os mecanismos que nos fazem manter esse absurdo.

Ladislau Dowbor 

Fonte: Carta Maior
Data original da publicação: 31/03/2020

O novo livro de Thomas Piketty é essencialmente sobre desigualdade, o mal estrutural maior do nosso planeta. Essa polarização mundial está se tornando explosiva, na medida em que alguns grupos sociais se apropriam de maneira radicalmente desproporcional dos resultados do que a sociedade produz, inclusive fora de qualquer relação de merecimento. Trata-se de mecanismos econômicos de apropriação, mas também de poder político, de monopólio do exercício da violência, do controle das leis, e em particular de construções ideológicas que geram uma aparência de legitimidade. Daí o título da obra, Capital e Ideologia, ou seja, a riqueza das sociedades por um lado, e as justificativas de sua apropriação desequilibrada por outro.

No trabalho anterior, O Capital no Século XXI, Piketty centrou a análise no que hoje chamamos de Ocidente, ou seja, basicamente a Europa Ocidental e a América do Norte. O mecanismo central analisado era o deslocamento moderno do capitalismo produtivo para o capitalismo financeiro, partindo de uma evidência: hoje rende muito mais fazer aplicações financeiras, ou seja, especular com papéis, do que efetivamente investir na produção. Os rendimentos financeiros nas últimas décadas são da ordem de 7% a 9% ao ano, enquanto os avanços da produção de bens e serviços, resumida na cifra do PIB, cresce apenas entre 2% e 2,5%. Isso significa que há uma apropriação muito maior do produto do conjunto da sociedade por quem faz apenas aplicações financeiras.

Capital e Ideologia vai além das dinâmicas econômicas, buscando os mecanismos que nos fazem manter esse absurdo. “A desigualdade não é econômica ou tecnológica: ela é ideológica e política. Essa é sem dúvida a conclusão a mais evidente da pesquisa histórica apresentada neste livro. Em outros termos, o mercado e a concorrência, o lucro e o salário, o capital e a dívida, os trabalhadores qualificados e não qualificados, os nacionais e os estrangeiros, os paraísos fiscais e a competitividade, não existem como tais. São construções sociais e históricas que dependem inteiramente do sistema legal, fiscal, educacional e político que escolhemos instituir e adotar” (20, 633). Despido do manto protetor das “leis da economia”, o sistema é recolocado no seu devido lugar: depende dos pactos que adotamos. Cabe a nós construir novos equilíbrios.

No conjunto, o estudo nos permite entender a dinâmica diferenciada de reprodução das desigualdades. Ele se apoia nos trabalhos de uma série de pesquisadores que participam da iniciativa World Inequality Database (WID / https://wid.world ), o que permite a utilização de uma imensa riqueza de dados cientificamente organizados, segundo diversas regiões, épocas e dimensões da desigualdade. Cada visão, por exemplo, a de que políticas distributivas geraram historicamente economias mais dinâmicas, e não o inverso, é acompanhada de fontes, dados e eventualmente de gráficos que traduzem os fenômenos em imagens. A solidez científica é fundamental.

A abordagem geral é histórica, como foi o caso também do livro anterior. Isso permite que aflorem as cadeias de causalidade dos diversos fenômenos analisados, em vez de aparecerem como acontecimentos isolados. Todas as regiões do planeta fazem parte desta luta permanente entre nos livrarmos das peias do passado, mas temermos as inseguranças futuras. Tanto a visão de que a história não se repete, como a visão de que repetimos sempre os mesmos dramas têm, cada uma delas, sua dimensão de verdade. E contar ‘o caso como o caso foi’, explicitando as interações, ajuda muito. As referências e as notas também contribuem muito, tornando o livro uma ótima fonte de inspiração para leituras complementares.

Todo sistema cria suas ideologias. E o sistema capitalista criou a sua, com as correspondentes narrativas, para que pareçam legítimos os ganhos não merecidos, como tão bem o descreve Gar Alperovitz no livro Apropriação Indébita (Senac, 2010). Na ideologia que hoje persiste, os ricos seriam ricos porque trabalham mais e são engenhosos, enquanto os pobres sseriam pobres porque preguiçosos e pouco criativos. “Os indivíduos que são os mais ricos, escreve Piketty, encontram aqui argumentos para justificar a sua posição relativamente aos que são mais pobres, em nome do seu esforço e do seu mérito, mas também em nome da necessária estabilidade que beneficiará toda a sociedade. Os países ricos podem igualmente encontrar aqui razões para justificar a sua dominação sobre os mais pobres, em nome da suposta superioridade das suas regras e instituições. ” (156)

Neste sentido, Capital e Ideologia é relativamente complementar a Capital no Século XXI. Piketty investiga como, em diversas épocas e em particular nas últimas décadas, foram se organizando as ideologias que procuram justificar o injustificável, aquilo que de justo não tem nada. Nessa mesma linha, encontramos o livro The Triumph of Injustice, de Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, que pertencem ao mesmo núcleo de pesquisa. A impressão que vem com força é de que vários economistas compreenderam que, por mais absurdas que sejam, as ideologias são muito poderosas e desempenham um papel central na perpetuação das injustiças. E além das injustiças, na perpetuação de sistemas que são profundamente nocivos para a própria economia.

Há limites para a desigualdade? Ainda que haja desigualdade, e remuneração desproporcional, é possível termos razoável estabilidade se no conjunto a sociedade está avançando. Saez e Zucman se apoiam no clássico A Theory of Justice de John Rawls sobre justiça social: “É aceitável, de acordo com Rawls, que haja desigualdades econômicas e sociais se essas desigualdades aumentam o nível de vida dos membros mais vulneráveis da sociedade” (Saez, 130). Mas o que vemos hoje é um espantoso enriquecimento no topo da pirâmide, fragilização no meio, e relativa estagnação da metade mais pobre da população. É uma desigualdade que, com seus diversos impactos econômicos, políticos, culturais e ambientais, tornou-se contraproducente. Em particular, gerou fortunas pessoais superiores ao PIB de muitos países, transformando-se em fator de rupturas políticas que hoje se espalham pelo planeta.

Não é o caso aqui de fazer uma resenha no sentido clássico, pois o trabalho é muito denso e abrangente. De modo geral, esse livro do Piketty traz uma revisão, em profundidade, de várias épocas e sociedades, incluindo China, Índia e outros países (uma breve referência ao Brasil), tendo como fio condutor a explicitação dos diversos mecanismos que geraram a desigualdade, e de como foram construídas as ideologias destinadas a justificar a riqueza de uns e a miséria da maioria. No conjunto, o livro resgata a imensa importância das narrativas. Parece que o ser humano adora um belo conto, ainda que seja a vítima da história. Mas é preciso também ressaltar a solidez da estrutura do trabalho, que resulta da metodologia explícita e muito coerentemente seguida ao longo do texto.

O primeiro ponto é a interdisciplinariedade. Em nenhum momento temos as absurdas simplificações sobre o homo economicus, modelinhos pretenciosos, ou economicismos: a economia é aqui vista como uma dimensão das ciências sociais, compreensível apenas no contexto de influências culturais, sociais, geográficas. Trata-se de explicitar a evolução da sociedade de forma integrada. A economia reencontra sua utilidade analítica, o que é de extrema importância porque ela mesma tem sido utilizada como narrativa para justificar absurdos. “Essa autonomização excessiva do saber econômico é também a consequência do fato que historiadores, sociólogos, politicólogos e outros filósofos abandonaram com excessiva frequência aos economistas o estudo das questões econômicas. Ora, a economia política e histórica, tal como tentei praticá-la nesta pesquisa, refere-se a todas as ciências sociais.” (1197)

Outro eixo metodológico é o uso da análise comparativa. É muito enriquecedor ver os fenômenos apresentados, com facetas diferenciadas, conforme se produziram nos Estados Unidos, na França ou na China. É muito útil, por exemplo, a descrição do sistema chinês que “desenvolveu uma economia mista fundada no equilíbrio duradouro e inédito entre propriedade pública e propriedade privada… Deter quase um terço de tudo o que se pode possuir nesse país confere ao poder público chinês, sob a orientação do PCC, possibilidades de intervenção consideráveis para decidir sobre a localização dos investimentos e a criação de empregos, e para levar a cabo políticas de desenvolvimento regional” (705). Visualizar no mesmo gráfico a evolução histórica das dimensões do setor público em diversos países ajuda muito. (706) Nas mais diversas épocas, nações se defrontaram com desafios semelhantes e diferentes ao mesmo tempo, e a compreensão de como se deram as respostas, e de como podemos traçar paralelos, amplia os horizontes. A análise comparativa nos ajuda a identificar os principais eixos estruturantes da mudança social, e a tomar um pouco de recuo para ver os problemas de maneira mais ampla.

Piketty sempre trabalhou com o longo prazo, o que o permite ressaltar as dinâmicas estruturantes que moldam o conjunto. Compreender a luta em torno do papel do Estado e, em particular, dos mais diversos sistemas de impostos, nas mais variadas civilizações, também ajuda muito. É instrutivo, por exemplo, entender como os romanos se organizavam para extrair o excedente social dos produtores rurais, como a igreja medieval organizava o seu acesso às riquezas (na época entre 25% e 30% da riqueza das atuais nações), como se deram as primeiras tentativas de aprovar impostos sobre a renda no início do século passado, como os grupos mais ricos conseguiram quebrar o sistema mais recentemente. Tudo isso permite ver a continuidade nos processos, e as diversas formas de enfrentar desafios frequentemente muito semelhantes aos que vivemos. Hoje estamos afogados no imediato, no presente, perdemos a dimensão evolutiva: o texto resgata a perspectiva.

E achei particularmente rica e inovadora a forma abrangente de analisar a desigualdade. Nas últimas décadas, conhecemos muitos avanços no mundo, com os Indicadores de Desenvolvimento Humano da ONU, com os dados sobre riqueza acumulada e não apenas da renda auferida, com os indicadores da pobreza multidimensional, e particularmente com os dados não só sobre os 10% ou 1% mais ricos, mas a identificação das gigantescas fortunas no topo da pirâmide, o 0,001% que acumula poder econômico e poder político. Piketty trabalha com essas diversas dimensões de maneira articulada, ao mesmo tempo que busca novas dinâmicas. Particularmente rico é o fato dele incluir como dimensão fundamental da desigualdade o acesso à educação, abordando-a não como gasto, mas como “investimento educacional” (ver p. 633, Justice Educative).

O amplo leque de análise converge em propostas, tornando-as claras, capazes de resgatar uma sociedade menos desigual, e que possam funcionar. Cerca de noventa páginas finais desenham o que Piketty chama de “socialismo participativo no século XXI”, com propostas tanto em nível das nações, quanto em nível internacional. De maneira muito pormenorizada, ele apresenta as medidas concretas que podemos tomar, os diversos impostos, as formas de organização e controle, enfim, as alternativas que temos para que o mundo volte a ser razoavelmente funcional. Não é a “luta final”, é o resgate de um mínimo de bom-senso.

Gostaria muito de estimular vocês a adquirirem o livro, já está em inglês, porque é uma ferramenta de trabalho fundamental, e de modo algum restrito a economistas: é para quem quer realmente entender os mecanismos e contribuir para uma sociedade melhor. Não é todo dia que lemos um livro de 1200 páginas. Sugiro ler a ampla introdução, que dá uma visão de conjunto, e a parte propositiva final, que mostra para onde tende o conjunto da obra. Isso permite, aproveitando o índice extremamente detalhado, ir pegando temas, dimensões ou épocas específicas segundo o interesse de cada um, e em suaves prestações. A arquitetura da obra é muito transparente, e cada um vai mobiliando sua cabeça segundo os vazios a preencher e as curiosidades a satisfazer. Vale muito a pena. Boa leitura.

Ladislau Dowbor é professor de economia da PUC-SP, autor de mais de 40 livros e consultor de várias agências nacionais e internacionais. Os seus trabalhos estão disponíveis, inclusive esta resenha, no blog dowbor.org, gratuitamente, no regime Open Access. Para quem queira se familiarizar com o livro anterior, O Capital no Século XXI, recomendo cinco curtos artigos sobre os principais aportes, com o título de Pikettismos (http://dowbor.org/?s=pikettismos).

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