Campos do pós-abolição: identidades laborais e experiência “negra” entre os trabalhadores do café no Rio de Janeiro (1931-1964)

André Cicalo

Fonte: Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 35, n. 69, p. 101-130, jan./jun. 2015.

Resumo: Este artigo explora se e como sinais de uma experiência afro-brasileira vieram à tona durante a existência do SCEC, um sindicato de carregadores e ensacadores de café que prosperou no porto do Rio de Janeiro entre 1931 e 1964 Apesar da forte presença de trabalhadores afrodescendentes no SCEC, o legado negro estava em grande parte ausente do discurso oficial do sindicato, que, em vez disso, colocava a ênfase na classe, no nacionalismo e em outros valores não relacionados à cor. Esse fato não está completamente desconectado do contexto sociopolítico do Brasil naquela época, dominado pelo sistema do trabalhismo e pela ideologia da democracia racial. No entanto, saliento que marcadores de um “campo negro” não eram completamente estranhos ao SCEC. Eles ainda sobrevivem nas memórias dos ensacadores e estão refletidos nos padrões raciais que tradicionalmente caracterizaram o cais do porto do Rio de Janeiro.

Sumário: Raça e etnicidade no cais do porto do Rio de Janeiro: um panorama da literatura | Como ser uma classe “respeitável”: unidade, catolicismo e nação no discurso oficial do SCEC | Raça, memória da escravidão e legado afro-brasileiro entre os trabalhadores portuários | Conclusão: campos pós-abolição dos trabalhadores portuários entre a cidadania e a exclusão | Referências

Em março de 1945, um repórter do jornal A Manhã perguntou ao trabalhador portuário João Baptista Ribeiro Fragrante qual era sua opinião sobre a legislação trabalhista promovida por Getúlio Vargas. O entrevistado afirmou que “o proletário antes de Getúlio Vargas, era um mero escravo econômico, que teve a sua lei de ventre livre em 1930 e a sua lei Áurea nos artigos 136 e 137 da Constituição de 10 de novembro de 1937!”. Desta forma, Fragrante enalteceu os direitos trabalhistas que haviam sido concedidos desde o início do governo Vargas, o qual começou com a Revolução de 1930 e evoluiu para o regime autoritário e corporativista do Estado Novo em 1937. Só com o sistema de proteções estabelecido por Vargas, esclareceu Fragrante, os trabalhadores conseguiram alcançar “estabilidade, férias, salário, horário de trabalho, justiça, etc. …”. Com a legislação anterior, de fato, “não tínhamos nós, trabalhadores, proteção alguma, salvo a lei de acidentes de trabalho, mesmo assim sem a perfeição da de hoje, onde os nossos direitos são realmente assegurados” (“Em 1937…”, A Manhã, 1945, p.3). Fragrante foi apresentado como membro do Sindicato dos Carregadores e Ensacadores de Café do Rio de Janeiro (SCEC), uma organização sindical que existiu entre 1931 e 1985 na zona portuária do Rio de Janeiro. Os ensacadores, a grande maioria dos quais era afro-brasileira, descarregavam cargas de café vindas de áreas do interior do Sudeste, processavam e misturavam a matéria-prima nos armazéns do porto e estocavam misturas de café em sacas para embarque e exportação. Tratava-se de trabalhadores avulsos, isto é, trabalhadores não especializados que ofereciam sua força braçal diariamente nos diversos armazéns no cais do porto, sem qualquer contrato laboral.

A matéria do jornal acrescentava informações valiosas sobre a trajetória do entrevistado. Fragrante havia nascido 38 anos antes, no interior de Minas Gerais. Ele havia chegado ao Rio de Janeiro, analfabeto, aos 16 anos, “animado de sonhos e de esperanças” (“Em 1937…”, A Manhã, 1945, p.3). Em 1927, com 20 anos, começou a trabalhar como ensacador. Em 1931, estava entre os membros fundadores do SCEC, do qual mais tarde se tornou também secretário e presidente. Entusiasta da legislação trabalhista de Getúlio Vargas, Fragrante afirmou que o Estado Novo lhe havia dado não apenas direitos trabalhistas básicos, mas também as condições materiais para estudar e se tornar contador, melhorando suas perspectivas de vida (“Em 1937…”, A Manhã, 1945, p.3). Uma foto em preto e branco fornece informações visuais sobre o entrevistado: um homem de cor preta que está sentado a uma mesa de escritório, elegantemente vestido com paletó e gravata. Reconheço que a referência de Fragrante à Lei do Ventre Livre e à Lei Áurea chamaram particularmente minha atenção em virtude da aparência fenotípica dele. Sancionada em 1871, a Lei do Ventre Livre estabeleceu a liberdade para os filhos de escravos africanos e afrodescendentes, ao passo que a Lei Áurea aboliu a escravidão inteiramente em 1888. Apesar disso, a menção de Fragrante às leis de abolição da escravidão foi aplicada ao campo do trabalho, aparentemente não relacionado à cor. A questão que fica é se havia algo de racial ou “negro” sob o testemunho de Fragrante. Minha premissa é que qualquer referência racial seria uma exceção gritante no marco do discurso público do SCEC. Minha análise do arquivo histórico desse sindicato mostra, na realidade, que os ensacadores limitavam seu discurso oficial a conceitos de unidade sindical e profissional, fé católica, família e nação, sem levar em consideração quaisquer referências políticas e étnico-raciais negras. Absolutamente nada no arquivo do sindicato sugeriria que os ensacadores eram predominantemente afro-brasileiros, afora a boa quantidade de fotografias antigas que resgatei dos armários empoeirados do SCEC.

Partindo da entrevista de Fragrante ao jornal, esse artigo investiga se e como um “campo negro” ou uma “experiência negra” emergiram no SCEC sob o véu de grande silêncio institucional. Em seu estudo de quilombos no Rio de Janeiro do século XIX, Flávio dos Santos Gomes destaca a presença de um “campo negro”. Ele apresenta esse conceito como uma rede social complexa e multifacetada que foi implementada por africanos e afrodescendentes, produzindo movimentos sociais, conflitos e práticas econômicas com diferentes interesses (1996, p.36; Cruz, 2000, p.277-278). Proponho que, apesar de a presença de uma experiência afro-brasileira ser amplamente minimizada nos documentos oficiais do SCEC, um campo negro vem à tona de diversas formas no cais do porto em meados do século XX. Primeiramente, um campo negro emerge na prevalência demográfica de trabalhadores negros no porto do Rio de Janeiro e, ainda mais consistentemente, dentro de sindicatos específicos. Em segundo lugar, ele sobrevive na memória dos ensacadores, em alguns casos explicitamente e, em outros, filtrado através do discurso de identidade de classe. O campo negro dos ensacadores, como sugere (Gomes 1996) para os quilombos, era certamente cruzado por redes de solidariedade e conflito. Além disso, ele também era influenciado pelo conjunto de exclusões que os trabalhadores portuários negros tinham de enfrentar na sociedade brasileira e se refletiam no porto mais ou menos automaticamente. Desta perspectiva, a presença de um campo negro no cais do porto do Rio de Janeiro também é algo que vai além das intenções oficiais do SCEC e da reflexividade de seus membros.

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André Cicalo. Marie Curie IOF Fellow, King’s College of London. London, UK.

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