Autoempreendedorismo: forma emergente de inserção social pelo trabalho

Cinara Rosenfield

Fonte: Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 30, n. 89, p. 115-128, out. 2015.

Resumo: O fim da norma fordista de trabalho obriga à reflexão sobre as várias formas e diferenciações que assumem o trabalho e o emprego. Essas diferenciações se encontram na origem do “embaralhamento” das fronteiras salariais e da constituição de uma “zona cinzenta” relativa às novas relações de trabalho e emprego. Este estudo se debruça sobre as configurações do autoempreendedorismo como forma emergente de inserção pelo trabalho, haja vista que trabalho e emprego não mais coincidem necessariamente. A tensão renovada entre autonomia e subordinação, identificável nas variadas formas de trabalho, atualizam questionamentos acerca da desigualdade social decorrente da inserção social pelo trabalho. A tensão se estabelece entre a necessidade de trabalhar, as possibilidades concretas de inserção no mercado de trabalho e a disponibilização de recursos pessoais objetivos (competências, habilidades, contexto do mercado de trabalho, ofertas de trabalho, identificação de nichos e franjas de trabalho e prestação de serviços, possibilidades concretas de auferir renda) e subjetivos (desejos, perspectivas, projeções pessoais, perspicácia, avaliações). A associação da vivência da desigualdade com a mobilização de recursos cria estratégias de inserção inéditas pelo trabalho.

Sumário: Introdução | O contexto do empreendedorismo na realidade brasileira | O conteúdo “cinzento” do autoempreendedorismo no Brasil | Pistas de reflexão: à guisa de conclusão | Bibliografia

Introdução

Este estudo se propõe a explorar as diferentes formas de trabalhar na sociedade pós-fordista. Trata-se de uma versão parcial resultante da exploração de dez entrevistas conduzidas no âmbito de um projeto de pesquisa mais amplo, incluindo a comparação da “zona cinzenta” do trabalho e emprego no Brasil, na França e nos Estados Unidos. O fim da norma fordista de trabalho – como norma, o que não impede a existência de trabalhos caracterizáveis como fordistas – obriga a reflexão sobre as várias formas e diferenciações que o trabalho e o emprego assumem. Essas diferenciações se encontram na origem do “embaralhamento” das fronteiras salariais e da constituição de uma “zona cinzenta” relativa às novas relações de trabalho e emprego. Essa “zona cinzenta” exige tanto a revisão quanto a criação de novos conceitos no âmbito da sociologia do trabalho. Este estudo se debruça sobre as configurações do autoempreendedorismo como forma emergente de inserção pelo trabalho, haja vista que trabalho e emprego não mais coincidem necessariamente, e propõe uma reflexão acerca da relação entre os conteúdos do autoempreendedorismo e a natureza da “zona cinzenta” do trabalho e do emprego. A tensão renovada entre autonomia e subordinação identificável nas variadas formas de trabalho atualizam questionamentos acerca da desigualdade social decorrente da inserção social pelo trabalho.

Entre as formas emergentes de inserção pelo trabalho, destaca-se o autoempreendedorismo como objeto emblemático de uma relação de trabalho em substituição a uma relação de emprego, uma vez que se tornar empreendedor de si significa uma forma de distensão da relação de emprego. A relação empregado-empregador é substituída pela relação entre o trabalhador autônomo e o(s) demandante(s) do trabalho. Tais formas emergentes colocam em xeque a oposição entre independência e assalariamento, configurando uma relação de articulação em vez de oposição (Supiot, 2000). O trabalhador assalariado é incitado a se tornar autônomo (na execução de seu trabalho, mobilizando sua subjetividade, iniciativa e criatividade) e o trabalhador autônomo/independente vê-se diante da exigência de fidelidade para com o cliente. É possível, pois, identificar um modelo dual e paradoxal: autonomia na subordinação e submissão na independência.

Diante de uma situação social concreta e de um desenho contextual do mercado de trabalho, vemos emergir uma “zona cinzenta” entendida como um processo que questiona conceitos canônicos de compreensão da inserção social pelo trabalho. Os sujeitos veem-se diante do desafio de criar formas de inserção que respondam à necessidade de trabalhar, mobilizando os recursos disponíveis de natureza pessoal e os de natureza formal/institucional, oferecidos pelo mercado de trabalho, pela sociedade e/ou pelo Estado. O pós-fordismo balança a unidade de tempo, lugar e ação (Tripier, 1998) existente na relação de emprego e é a avaliação dos sujeitos a respeito de suas possibilidades diante de uma situação dada que norteia a sua ação relativa às formas de inserção pelo trabalho. Os sujeitos passam a buscar o que chamaremos de “franjas”, interstícios entre formas canônicas de trabalho, a fim de encontrar alternativas de inserção pelo trabalho fora daquelas tidas como tradicionais. As categorias do tipo trabalho formal-informal, independente-subordinado, estável-instável, virtuoso-precário não são mais capazes de servir como parâmetros para se analisar e categorizar as formas de trabalhar. Nesse sentido, é possível conceber “a zona cinzenta” como um espaço de lacuna institucional.

O autoempreendedorismo é emblemático de uma forte autonomização do trabalhador, que mobiliza recursos próprios e institucionais para procurar formas individuais de inserção pelo trabalho, o que certamente enfraquece os meios da ação coletiva. O processo “cinzento” aqui identificado é a mobilização individual de recursos objetivos e subjetivos disponibilizados em dado contexto a fim de lograr uma inserção social pelo trabalho. É pela análise do contexto em que se encontram, associada aos recursos objetivos e subjetivos de que dispõem, que os sujeitos criam estratégias de trabalho que permitem a inserção nos interstícios – franjas – das formas tradicionais de emprego. Essas estratégias são móveis e transitórias, levando os sujeitos a refazer e reavaliar permanentemente suas estratégias, compondo assim um processo permanente de reinvenção das formas de trabalho (Dieuaide, 2013). O autoempreendedorismo constitui-se em uma estratégia propícia ao atual contexto de esfacelamento das relações tradicionais de emprego. E, como veremos a seguir, assume formas criativas, variadas e inovadoras de inserção nas franjas do mercado de trabalho.

No nível empírico propomos explorar formas diversificadas de autoempreendedorismo para fazer emergir uma realidade multifacetada. Em termos teóricos, e se inspirando no interacionismo simbólico (Schwalbe et al., 2000), o argumento é que a reprodução da desigualdade, mesmo quando aparece institucionalizada, depende da interação pessoal. Dito diferentemente, as “estruturas” e as condições sociais são reproduzidas articulando a ação por meio das dimensões institucionais. Assim, estudar qualitativamente grupos e/ou sujeitos diferentes atravessados por uma questão comum permite generalizar processos e não populações. Generalizar não significa que não estejam imersos em variações e determinações contextuais, mas que processos comparáveis ocorrem em múltiplos contextos quando atores enfrentam problemas similares ou análogos. No caso específico do contexto brasileiro, a ser aqui explorado, tal assertiva teórico-metodológica adquire particular relevância, como veremos na parte consagrada à contextualização, pois, no que tange à norma do emprego, essa jamais foi nem estável, nem homogênea, nem totalizante, o que poderia relativizar o argumento do esfacelamento da norma fordista. A diversidade pode mostrar o processo de mudança nas relações de trabalho com mais propriedade do que tratar tão somente do deslizamento das fronteiras canônicas do trabalho e do emprego.

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Cinara Rosenfield. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre – RS, Brasil.

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