As vozes do Vale do Silício além dos CEOs: entrevista com Ben Tarnoff

Ben Tarnoff é trabalhador da área de tecnologia e escritor. É um dos fundadores da Logic Magazine – com foco em tecnologia –  e já escreveu para New York Times, The Guardian e Jacobin.  Entre seus textos mais interessantes, estão From Manchester to Barcelona, sobre o contexto digital contemporâneo e suas relações com o capitalismo, e The Making of the Tech Worker Movement, sobre a organização dos trabalhadores de tecnologia e as relações de classe, raça e gênero.

Em outubro, Tarnoff e Moira Weigel – autora do livro Labor of Love: the invention of dating – lançarão o livro Voices from the Valley: tech workers talk about what they do – and how they do it. A obra apresenta entrevistas anônimas e em profundidade com trabalhadores de tecnologia dos mais variados tipos, como cientista de dados, fundador de startup, cozinheiro e relações públicas. Desta forma, mostram a indústria da tecnologia além das vozes dos CEO, mostrando suas contradições e desigualdades.

Nesta entrevista ao DigiLabour, Tarnoff comenta a organização dos trabalhadores de tecnologia, tópicos do novo livro e o que seria necessário para uma cultura digital realmente democrática.

DIGILABOUR: O que foi mais surpreendente ao ouvir as diferentes vozes dos trabalhadores do Vale do Silício?

BEN TARNOFF: Uma lição importante de nosso livro é que o “trabalhador da área de tecnologia” deve ser compreendido como uma categoria mais ampla. Os trabalhadores de tecnologia não são apenas engenheiros de software ou designers de produtos. Eles são seguranças, zeladores e cozinheiros. Eles trabalham no galpão da Amazon, são motoristas de Uber e funcionários da Instacart. Qualquer pessoa que trabalhe para uma empresa de tecnologia é um trabalhador da área de tecnologia. Não importa se ele é um funcionário em tempo integral ou trabalha por tarefa, ou se seu trabalho envolve mover símbolos em uma tela ou caixas em um depósito. E essa definição mais ampla, por sua vez, nos permite ver mais claramente de onde vem a extraordinária riqueza das empresas de tecnologia. Essa riqueza não é feita somente de programação. Ela vem das contribuições de muitos tipos diferentes de trabalhadores.

DIGILABOUR: Como você analisa o atual momento da organização dos trabalhadores de tecnologia após dois anos dos primeiros movimentos?

TARNOFF: O movimento dos trabalhadores de tecnologia, na minha opinião, está perto de uma transição. Por um lado, a retaliação dos gestores contra os trabalhadores de colarinho branco que estão organizando trabalhadores em lugares como Google e Amazon criou novos desafios. Tendo como pano de fundo a instabilidade econômica produzida pela crise da Covid-19, a retaliação é provavelmente ainda mais eficaz, pois há maior medo de perder o emprego. Por outro lado, houve novos avanços: no início deste ano, os funcionários da Kickstarter votaram pela sindicalização, criando o primeiro local de trabalho sindicalizado do país para funcionários de tecnologia de colarinho branco que trabalham em tempo integral. É claro que o movimento dos trabalhadores de tecnologia obteve vitórias reais. Mas a primeira fase acabou. A novidade de certas táticas, como as cartas abertas, passou e a gestão das empresas aprendeu a ser mais sofisticada em relação a como neutralizar os esforços da organização de trabalhadores. Novos experimentos serão necessários para encontrar um caminho a seguir.

DIGILABOUR: Seu texto The Making of the Tech Worker Movement faz uma relação interessante entre a noção de classe e o movimento dos trabalhadores de tecnologia principalmente em duas dimensões: o papel das camadas médias e as relações de gênero e raça. Você poderia comentar sobre esses pontos?

TARNOFF: Neste longo ensaio, eu uso as ideias do falecido sociólogo marxista Erik Olin Wright para analisar a dinâmica de classe do movimento dos trabalhadores de tecnologia, prestando uma atenção especial ao papel dos funcionários de colarinho branco. Esses trabalhadores, eu argumento, habitam o que Wright chamou de “localizações contraditórias de classe”. Eles não são nem totalmente burgueses nem totalmente proletários, mas sua experiência de classe envolve uma combinação de elementos burgueses e proletários. Isso significa que eles são sempre puxados em duas direções opostas. Eles podem se concentrar em aspectos burgueses e se identificar com a classe capitalista ou focar nas experiências proletárias e formas alianças com a classe trabalhadora. O fator determinante aqui é a luta. A luta pode transformar a forma como os membros dessas camadas médias percebem suas experiências de classe. O movimento dos trabalhadores de tecnologia apresenta uma ilustração disso. Por meio da luta, vários funcionários de colarinho branco das empresas de tecnologia passaram a se ver como trabalhadores, a agir coletivamente como trabalhadores e a formar relações de solidariedade com seus colegas mais proletários da indústria. Essa luta foi amplamente estruturada por meio de relações de gênero e raça. Não é por acaso que a maioria dos líderes das mobilizações de colarinho branco são mulheres e pessoas de cor. As relações de gênero e raça ajudam a compor os elementos proletários da localização contraditória de classe vivida por trabalhadores de tecnologia de colarinho branco: mulheres e pessoas não brancas enfrentam assédio, discriminação e outras formas de opressão no local de trabalho, além de ganhar salários mais baixos em média. Pode-se dizer que são os membros mais proletários das camadas médias, e isso teve consequências importantes para a organização dos trabalhadores.

DIGILABOUR: Você afirma que as cooperativas de plataforma podem não acabar com os vieses algorítmicos e que seria necessário desmontar todo os modos de propriedade e organização das infraestruturas. Como fazer isso?

TARNOFF: Acredito que democratizar a internet exige transformar os seus modos de propriedade e organização. Em particular, acho que uma internet pertencente a empresas privadas e operada com fins lucrativos nunca pode ser democrática. Para garantir que todos tenham os recursos de que precisam para levar uma vida autodeterminada e oportunidades de participar das decisões que mais os afetam – resumidamente, esta é a minha definição de democracia – precisamos desenvolver estruturas digitais de propriedade pública e cooperativa, tanto no nível dos “cabos” da internet quanto das chamadas plataformas. Tais estruturas seriam mais capazes de fornecer acesso às necessidades básicas, bem como possibilitar formas de governança mais coletivas e participativas. Mas isso não significa que os difíceis problemas da vida digital – racismo algorítmico, por exemplo, ou o trabalho de moderação de conteúdo nas mídias sociais –  simplesmente desapareçam. Não podemos imaginar que transformar as formas como a internet é controlada e organizada resolverá magicamente esses problemas. No entanto, tais problemas nunca serão resolvidos dentro das restrições de um modelo dominado pelo mercado. Portanto, vejo a transformação da propriedade mais como uma condição necessária, embora não suficiente. Assim que alcançarmos isso é que o verdadeiro trabalho começa.

DIGILABOUR: Como imaginar um socialismo digital desde baixo?

TARNOFF: O grande trotskista americano Hal Draper descreveu o “socialismo desde baixo” como “a visão de que o socialismo só pode ser realizado por meio da auto emancipação de massas ativas em movimento, buscando a liberdade com suas próprias mãos, mobilizadas ‘de baixo’ em uma luta para se encarregar de seu próprio destino, como atores (não apenas objetos) no palco da História”. Ele contrastou isso com o “socialismo desde cima”: “a noção de que o socialismo (ou uma cópia razoável dele) deve ser entregue às massas agradecidas, de uma forma ou de outra, por uma elite governante, e isso não está, de fato, sob seu controle”. Eu acho que esta é uma boa maneira de colocar a questão. Quanto ao conteúdo do socialismo, ou o que realmente queremos dizer com este termo, é, obviamente, algo debatido incessantemente. Eu me esquivaria ligeiramente da questão para dizer que o socialismo é simplesmente uma sociedade organizada em torno do princípio “de cada um, de acordo com sua capacidade para cada um de acordo com suas necessidades”. Isso implica uma reconstrução de todas as esferas da vida social, incluindo aquelas moldadas ou mediadas por tecnologias digitais. Portanto, sinto-me razoavelmente confiante em descrever o que pode parecer mais democrático – e quais passos podemos dar nesse sentido – mas eu não ousaria tentar prever quais formas uma internet socialista pode assumir. Contudo, espero estar vivo para ver isso.

Fonte: DigiLabour
Data original da publicação: 27/09/2020

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