As reformas trabalhistas da crise e seu significado

Antonio Baylos

A crise e as políticas de austeridade nos países europeus superendividados, como o caso da Espanha, estão gerando efeitos devastadores sobre distintos âmbitos da vida social, sobre a cultura e o direito, em especial o direito do trabalho. Em uma nova versão do essencialismo econômico, a hegemonia no discurso político e midiático do neoliberalismo está produzindo, no contexto de uma situação de excepcionalidade social, uma racionalidade dominante que tem como característica principal a generalização da competência como norma de conduta e a empresa como modelo de subjetivização. Em seu aspecto social, esse processo implica a tendência à individualização das relações sociais às custas das solidariedades coletivas com a polarização extrema entre ricos e pobres.

Esses processos refletem o fato inegável da apropriação do Estado pelo capital financeiro globalizado, que requer expressamente desse o pagamento continuado e total da dívida, em uma espécie de processo de subsunção que expulsa a política, entendida como o debate sobre as opções de organização da vida social em torno dos valores democráticos, e anula a soberania do Estado, entendida como a capacidade de decisão e de compromisso político e jurídico no que concerne a um sistema de direitos individuais e coletivos. Esses só podem ter virtualidade se não colidirem, mesmo que minimamente, com a demanda por pagamento de juros sobre dívidas e respeito pelos investimentos feitos por grandes corporações transnacionais e conduzidas por instituições financeiras internacionais. Daí a situação de excepcionalidade política e social que acompanha essas tendências em ação que constituem uma constante da globalização contemporânea, que se manifesta especialmente na Europa através do estabelecimento de um modelo neoautoritário de relações trabalhistas e de contração do Estado social, frente à colocação em prática da “nova” governança econômica.

Isso levou a uma mudança significativa na forma de representar o trabalho, com uma perda de seu valor político e democrático. As fraturas da tutela laboral levaram à generalização dos fenômenos de segmentação e fragmentação do trabalho. O trabalho como base de direitos da cidadania se viu corroído por tais transformações. Existe uma forte compulsão em relação às figuras sociais que tornam o trabalho invisível, figuras construídas a partir do consumo, do mercantilismo ou da livre iniciativa, o “empreendimento”.

O direito do trabalho da crise difunde nas relações de trabalho um desequilíbrio radical entre a liberdade da empresa e o direito ao trabalho, de modo que o conteúdo trabalhista desse último fica, em grande parte, anulado. Esta operação foi surpreendentemente aprovada pelo Tribunal Constitucional espanhol, capturado pela lógica partidária do governo do PP. Tudo isso sobre a base de promover a criação de empregos, diz-se, frente a um quadro permanente onde milhões de cidadãs e cidadãos se encontram privados dele. O trabalho, que é medido apenas em termos econômicos de volume de emprego, se pretende que seja um espaço habitado por sujeitos com cada vez menos direitos políticos e civis. Sujeitos considerados como tais em relação ao que custam economicamente ao empregador e em quanto seu trabalho se incorpora em uma organização produtiva determinada unilateralmente, com fracos controles públicos e coletivos, pelo empregador.

A tendência para a mercantilização do trabalho destrói o valor democrático do mesmo. É uma deriva autoritária cujos custos sociais e pessoais são imensos. As mudanças do trabalho exigem mudanças para enfrentá-lo, mudanças na cultura jurídica, nas políticas previstas, nas decisões sobre a estratégia sindical, nas resoluções governamentais e nas opções eleitorais. O direito do trabalho se apresenta então claramente como um espaço de luta pelos direitos individuais e coletivos que exige uma nova formulação do quadro institucional garantido pelo Estado e o fortalecimento da dimensão autônoma e coletiva da representação do trabalho e seus meios de ação. A reivindicação do trabalho como um fenômeno civilizatório, claramente formulado na própria noção de trabalho decente e nos princípios e direitos fundamentais da OIT de 1998, cria uma tensão no próprio espaço da técnica jurídica e das formas de produção normativa entre um sistema de direitos reconhecido a nível internacional e transnacional e as “políticas” que, sem modificá-lo formalmente, passam a lhe degradar e a lhe dar novos conteúdos. Constrói-se assim, desde ideias estereotipadas como “estabilidade financeira”, “luta contra o desemprego” e “desenvolvimento da competitividade”, um processo que subverte as regras democráticas, invalida os orçamentos do Estado social e cria uma situação de excepcionalidade que tende a se tornar permanente.

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